quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Nelson Vaz - LINGUAGEAR NOS TORNOU HUMANOS


Nelson M. Vaz

FILOGÊNESE OU ONTOGÊNESE Como nada parte do zero, exceto o Big-Bang, como quer a maioria dos cientistas, podemos discutir a gênese da vida humana de muitos pontos de partida, com diversas escalas de tempo, atualidade e complexidade. Se o adjetivo "humano" é o que nos importa mais, podemos nos afastar de problemas sérios como a gênese molecular da vida, a gênese das células, a gênese dos animais na explosão Cambriana, para nos concentrarmos nos últimos 6-8 milhões de anos. Ou podemos decidir que a paleoantropologia está além de nossos limites e não nos determos naquilo que separou o humano do chimpanzé e dos bonobos. Se partirmos do Homo sapiens sapiens já constituído como uma linhagem, poderemos considerar aquilo que, afinal, o distingue de outras linhagens de primatas.
Em resumo, por um lado, temos a opção de considerar problemas evolutivos básicos sobre a origem das diversas linhagens de seres vivos, entre as quais nos incluímos como mais uma linhagem. Incluídos nessa opção estão problemas fundamentais à bioquímica, na genética e na biologia propriamente dita. Por outro lado, temos a opção de discutir o que temos de especial nas origens (na gênese) do ser humano já configurado como linhagem. Mesmo aí, há uma dicotomia: podemos considerar o Homo sapiens sapiens ainda nômade, no pastoreio pré-agrícola, ou tomar como ponto de partida o chamado grande salto para a frente (the great leap forward) que deu origem à cultura, à religião, às artes, à civilização, enfim. Todas essas são preocupações para o lado, digamos, filogênico da gênese da vida humana.
Finalmente, há ainda sua dimensão ontogênica, que levanta um debate com profundo significado ético e muito atual, que Francisco Mauro Salzano discute em detalhe (pp. 57-59 desta edição). No outro extremo da vida humana, aquele próximo a seu fim, há um dilema semelhante em relação às pessoas atingidas por lesões ou enfermidades que as colocam em estados ditos "vegetativos", sem possibilidade de recuperação. Embriões humanos, que ainda não viveram uma vida autônoma, e seres humanos que perderam totalmente sua autonomia ao viver podem ser objeto de considerações éticas semelhantes — embora possa haver casos, dentre os últimos, em que já se tenha optado durante a vida normal sobre o que fazer com o próprio corpo nessas situações.
A meu ver, as discussões sobre a gênese da vida humana dependem da definição de diferenças entre nosso viver como Homo sapiens sapiens, como organismos de primatas com características zoológicas especiais, e nosso viver como pessoas, como seres humanos no conviver com outros seres humanos. De certa forma, Salzano indaga onde colocar um limite ontogênico entre um embrião de H. sapiens e um ser humano em formação. Para isso, é importante explicitar um consenso sobre aquilo que nos caracteriza como seres humanos, como pessoas. Similarmente, no decurso da filogênese, podemos indagar como e por que surgiram os seres humanos com sua conduta característica.
A PERGUNTA ZERO Nenhum de nós tem a pretensão de responder cabalmente à pergunta sobre a gênese da vida humana, uma pergunta que pode ser entendida como a origem das realidades humanas, ou de nosso entendimento sobre o mundo — enfim, a pergunta que muitos vêem como a maior e mais complexa de todas as perguntas, cuja resposta conteria a explicação de quase tudo. Mas, em meu modo de ver, antes dessa pergunta "número um", há uma "pergunta zero", usualmente negligenciada, que, mesmo quando explicitada, não é compreendida ou aceita por muitos. Essa "pergunta zero" será meu fio orientador.
"Como somos capazes de perguntar qualquer coisa?" — ou seja, "como somos capazes de conversar, ouvir, entender e falar a outros seres humanos?" —, um problema intimamente ligado à linguagem e à natureza do ser humano. Como se dá esse nosso experienciar da realidade? O que tem ele em comum com o experienciar de outras realidades por outros seres vivos? Todos concordamos em que uma mosca enxerga; mexemos a mão, e ela voa. Mas, curioso, o que ela vê? O que é ver? Enfim, nossa tarefa poderia tomar o rumo dessas indagações.
Aceitar ou rejeitar essa "pergunta zero" delineia dois caminhos distintos. Posso não aceitá-la e admitir que o "processamento de informações", a consciência e o conversar são propriedades dos seres humanos. Se faço isso, encontro-me imediatamente colocado em um mundo, uma realidade que quero explicar mas, ao mesmo tempo, me sinto alienado, estranho a essa realidade que habito e, se contemplo meu próprio corpo, ele também me parece algo estranho. Por outro lado, se aceito essa "pergunta zero", me encontro com a minha biologia de Homo sapiens sapiens, isto é, vejo a mim mesmo como um primata linguageante que vive a participar de conversas com outros seres humanos. Posso aceitar que, de alguma forma, preciso explicar essa minha conduta com base em minha biologia deHomo sapiens sapiens, de primata, apoiado em minha dinâmica estrutural e relacional como um sistema vivo.
BIOLOGIA DA COGNIÇÃO E DA LINGUAGEM Se aceito e discuto essa "pergunta zero", a discussão se dará em uma arena que é essencialmente biológica, mas levanta preocupações de natureza ética e trata de temas que preocupam filósofos e profissionais de várias outras áreas. Essa é a postura seguida na biologia da cognição e da linguagem (Maturana, 2002; Maturana & Poerksen, 2004), um corpo de conhecimentos originado do pensamento do neurobiólogo chileno Humberto Maturana, que ele assim define:
A biologia da cognição é uma proposta explicativa que tenta mostrar como os processos cognitivos humanos brotam da operação de seres humanos como sistemas vivos. Como tal, a biologia da cognição envolve reflexões orientadas para compreender os sistemas vivos, sua história evolutiva, a linguagem como um fenômeno biológico, a natureza das explicações, e a origem da humanidade. Como uma reflexão sobre como nós fazemos o que fazemos como observadores, ela é um estudo na epistemologia do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, como uma reflexão sobre como nós existimos na linguagem como seres linguageantes, ela é um estudo em relações humanas (Maturana, 1997).
Maturana é também conhecido como o autor da teoria da autopoiese, mas esta é de certo modo enganadora. A noção de autopoiese (autocriação/manutenção) é central, mas por si mesma insuficiente para expressar as propostas da biologia da cognição e da linguagem e não deve ser entendida como um princípio explicativo:
A autopoiese, a organização autopoiética, em meu modo de ver, como a concebo, é a organização de uma classe de sistemas que satisfazem esta organização. Não é mais que isso. Os sistemas vivos são sistemas autopoiéticos no espaço molecular, i.e., sistemas autopoiéticos cujos componentes são moléculas, nos quais as produções são produções moleculares […]. Nesta maneira de ver, não vejo a autopoiese como um paradigma explicativo para os sistemas (em geral), mas sim como a caracterização de uma certa classe de sistemas, que são exatamente isto: sistemas caracterizados por sua organização autopoiética. Você me pede um paradigma explicativo. Para mim, um paradigma explicativo é o das explicações científicas, no sentido pelo qual entendo paradigmas explicativos como procedimentos capazes de gerar explicações. Portanto, não considero a autopoiese como um paradigma explicativo (Maturana, 1997).
Uma das frases famosas atribuídas a Albert Einstein diz que: "O mais incompreensível a respeito do Universo é que ele seja compreensível". Maturana, por sua vez, diz que o Universo não existiria se não fosse compreensível; na verdade, ele não fala do Universo, mas sim de multiversa, de múltiplas realidades em que podemos estar imersos em nosso viver humano. Ele diz que seu objetivo não é explicar "o que é a realidade", mas sim explicar como fazemos o que fazemos e que a "pergunta zero" é: "Explicar o observador em seu observar". Outro pensador importante do século XX, Heinz von Foerster, é conhecido como o criador da "cibernética de segunda ordem", ou seja, aquela que inclui o observador na observação. Maturana diz que isso é um adiamento do problema, pois, para caracterizar o observador na observação, é necessário invocar um meta-observador colocado em um meta-meio, que por sua vez também requer um meta-meta-observador, e isso cria uma regressão infinita. É necessário, portanto, darmos conta do que se passa conosco, humanos, quando observamos, isto é, fazemos distinções de objetos e fenômenos enquanto participamos do linguagear com outros seres humanos (Maturana & Mpodozis, 1987). Ou, em termos mais gerais: "Como experienciamos a realidade humana?".
Perguntas desse tipo, em geral, são encaradas como pertinentes à neurobiologia, ao estudo do sistema nervoso e, mais particularmente, do cérebro e da consciência humana. Mas é evidente que experienciar realidades não se restringe a seres humanos ou a animais dotados de um sistema nervoso; plantas e seres unicelulares também exibem condutas que, evidentemente, são "cognitivas", ou seja, expressam como ações efetivas alguma forma do conhecer. Maturana afirma que um protozoário tem um "sistema nervoso" molecular, não-neuronal, com o qual ele se mantém em congruência com suas circunstâncias (conserva sua "adaptação"). Enfim, temos um espaço no qual podemos discutir "as bases biológicas do conhecer" — encarado como o desempenho de ações efetivas. Ou seja, um ser vivo "sabe" continuar vivo; nós, como seres humanos, dotados desses organismos de Homo sapiens sapiens, sabemos conversar.
Assim como Gregory Bateson (1973), Maturana não está em busca de "princípios explicativos" (Maturana, 1987) e se detém em explicitar a natureza das explicações, em geral, e daquilo que caracteriza as explicações científicas (Maturana, 1990). Um aspecto peculiar em sua abordagem é a descrição de sistemas "fechados" em sua organização, dos quais os sistemas vivos, como sistemas autopoiéticos, são apenas um exemplo. Para ele, o sistema nervoso é uma rede neuronal fechada, na qual estados relativos de atividade neuronal podem apenas conduzir a outros estados relativos de atividade neuronal. Ele assim descreve um rádio como um sistema "fechado" em si mesmo:
Considere um rádio portátil. É um sistema fechado no fluir da eletricidade. A antena não traz a corrente elétrica. A antena encontra ondas eletromagnéticas (um domínio), estas afetam o fluir da eletricidade (um domínio diferente) e isto produz um som (um terceiro domínio). O rádio não recebe corrente elétrica da antena. A corrente elétrica não é um input. Nada externo penetra no rádio (comunicação pessoal ao autor).
Na obra de Maturana "viver, como um processo, é um processo cognitivo" e descrever como um ser vivo conhece equivale a identificar quais são as ações eficazes que ele desempenha, segundo o ponto de vista de um observador humano. Uma aranha conhece várias coisas: sabe fazer uma teia, sabe achar um parceiro sexual, sabe fugir de predadores, andar pelo chão da floresta… sabe, enfim, "aranhar". Então, o conhecer, nesse modo de ver, é o conjunto de ações efetivas. Por isso, discutir a origem da vida — e da vida humana, em particular — implica descrever as ações que constituem o conhecer. Essa preocupação está explícita no título de um livro recente: Do ser ao fazer (Maturana & Poerksen, 2004). Para Maturana (1985), "a mente não está na cabeça: a mente está na conduta".
E, se vamos falar da vida humana, se vamos enfatizar esse ponto, temos de adentrar a filogênese, quando aparecem condutas e características que vamos chamar de, efetivamente, humanas. Os chimpanzés e os bonobos são nossos primos mais próximos, e a grande pergunta seria: "o que aconteceu nesses 4 a 6 milhões de anos atrás, durante os quais nós nos transformamos em primatas que conversam, que falam uns com os outros, enquanto os chimpanzés não fazem isso?". Porque é desse conversar, é a partir dessa coordenação de condutas consensuais que nós transformamos o planeta da maneira que transformamos e criamos a cultura humana; primeiro a agricultura, depois cidades, e agora somos assim, como uma doença de pele em volta de todo o planeta.
Como seres humanos, vivemos imersos em um fluir incessante de ações que Maturana chama de "linguagear". A linguagem é usualmente entendida como a transmissão de informação simbólica. Mas, em seu trabalho, Maturana deixa o conceito de informaçãocompletamente de fora; diz que os símbolos são secundários ao ato de linguagear, que é essa coordenação de condutas. Então, o linguagear é um modo de viver caracteristicamente humano, no qual somos imersos desde crianças. Em nossa educação, aprendemos e nos transformamos nessa coordenação de condutas com outros seres humanos. Eu consigo, eventualmente, coordenar condutas e coordenar coordenações de condutas com o meu cachorro. Mas o meu cão não vive em coordenação de condutas; ele não vive na linguagem; ele não linguageia com outros cães. Mas eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora, continuamente. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desse tipo de atividade.
Somos imersos nesse linguagear desde crianças. Em nossa educação, aprendemos, nos transformamos durante essa coordenação de condutas com outros seres humanos. E eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desta atividade: o conversar. Então, a "gênese da vida humana", para mim, é a gênese do conversar. O conversar é uma fusão do linguagear — que é essa coordenação de coordenação de condutas —, com o emocionar. As emoções são estados do corpo. Chego em casa depois de um engarrafamento de uma hora e meia gritando com o cachorro, empurrando a cadeira e minha mulher diz: "Você nem me beijou?". Eu respondo: "Ah, eu vou me mudar dessa cidade" —, porque nesse estado emocional eu não consigo beijar ninguém.Quer dizer, as emoções são estados do corpo que delimitam os domínios de ação. Então, ao coordenar condutas com outros seres humanos, eu gero emoções, vivo emoções, e vou nessa cadeia de coordenações com emoções. E vou conversando. E quem não conversa não é humano. Isso lembra um pouco o Abelardo Chacrinha, não é? — que dizia: "Quem não se comunica, se estrumbica". Mas, para Maturana, a comunicação não existe; o que existe é essa coordenação de condutas. E, se não houver um acoplamento estrutural entre os parceiros, não acontece nada.
Como se situam essas afirmações em relação aos grandes campos da pesquisa biológica, tais como a genética e a teoria evolutiva?
A GENÉTICA A genética sempre foi importante na discussão das questões biológicas mais profundas, desde que a semente e o ovo são objetos tentadores como possibilidades de estudar o viver, nos quais o viver parece condensado em uma essência. Ultimamente, a genética molecular e a genômica alcançaram uma grande proeminência na biologia, graças a experimentos possibilitados pela metodologia de análise e manipulação de ácidos nucleicos. O projeto Genoma Humano, que pode ser considerado um marco na biologia, levantou uma grande coleção de novas perguntas e teve um aspecto frustrante por não revelar nada espetacular, ou particular, em relação à natureza humana (Keller, 2002).
A grande importância da genética se traduz na composição do painel de cientistas reunidos pela SBPC para discutir "A gênese da vida humana": dos seis cientistas presentes, dois são geneticistas conhecidos (Antonio Cordeiro e Francisco Salzano) e um terceiro, bioquímico (Hernan Chaimovich), estuda soluções coloidais e a importância de ácidos nucleicos na origem da vida. Dos três cientistas restantes, dois estão ligados a temas biomé­dicos: um é microbiologista (Isaac Roitman), e eu mesmo (Nelson Vaz) sou imunologista. O cientista restante, um físico, presentemente estuda a teologia e a ciência das religiões (Eduardo da Cruz). Então, é natural que uma parte significativa dos temas abordados durante nossa discussão envolva problemas genéticos. No entanto, a perspectiva genética se modificou tanto nos últimos anos que o próprio significado do termo "gene" foi posto em discussão (Keller, 2002). Trata-se, portanto, de entender os problemas genéticos por novos enfoques.
No âmbito da biologia da cognição e da linguagem, Maturana fala de um "genótipo total", que inclui muito mais que o DNA; diz que tudo o que se passa no ser vivo precisa ser permitido pelo genótipo, mas argumenta que: "o genótipo determina apenas a possibilidade inicial"; todo o resto é determinado (especificado, orientado, guiado) pela maneira de viver, por uma dinâmica de um "fenótipo ontogênico" em um "nicho ontogênico" (Maturana & Mpodozis, 2000).
A EVOLUÇÃO A discussão sobre a gênese da vida humana está também muito relacionada à teoria da evolução, uma área que atravessa um período de intenso interesse. Devemos a Darwin dois importantes apercebimentos: primeiro, que todos os seres vivos estão relacionados por uma descendência comum (propinquity of descent); segundo, que uma explicação inicial para o surgimento dos seres vivos que encontramos atualmente adaptados aos mais diferentes meios é o processo que ele denominou seleção natural. Em meados do século XX, um grupo de cientistas de diversas áreas, variando da genética de populações à paleontologia (T. Dobzhansky, E. Mayr, G. Gaylord Simpson e G. L. Stebbins), acrescentou muitos aspectos às idéias de Darwin, criando o neo-darwinismo, ou teoria sintética da evolução, um conjunto de postulados que, de certa forma, representa o esqueleto central do pensamento biológico contemporâneo tradicional.
Muitos pesquisadores ressaltam que algo que a teoria sintética deixou flagrantemente de fora foi a biologia do desenvolvimento e sua subdisciplina, a embriologia, que prosseguiram como disciplinas isoladas, até que nos anos 1990 surgiu o campo hoje denominado "evo-devo" (evolutionary developmental biology), impulsionado pela nova metodologia desenvolvida na genética molecular, mas buscando resultados mais amplos que os anteriormente contemplados. Os pesquisadores em "evo-devo" se notabilizaram por enfrentar problemas como os da origem de estruturas biológicas complexas, como olhos, asas, corações e cérebros.
Esse grande progresso na "evo-devo" teve como contrapartida o recrudescimento de movimentos antievolucionistas, apoiados em crenças religiosas ou místicas (o criacionismo). Massimo Pigliucci (2001) afirma não compreender
porque a existência de fenômenos naturais que são atualmente difíceis de explicar, por um lado, reforçam a opinião de que "há algo errado com a teoria" (como querem os criacionistas que defendem o "intelligent design" e, por outro lado, tornam vocais os defensores da teoria sintética, que insistem em que "não há nada errado e tudo já foi explicado". Por sua própria natureza, a ciência lida com coisas e fenômenos para os quais nós não dispomos de explicações.
Ou seja, devemos admitir que há problemas para os quais não temos explicações, mas que isso não nos obriga a aceitar uma solução transcendente (divina ou extraterrestre) para os mesmos.
Nosso problema não é o de um "projeto inteligente", mas sim um processo inteligível. A nova maneira de formular a problemática biológica, que enfatiza a flexibilidade somática, tem sido amplamente descrita em livros recentes (Pigliucci, 2001; West Eberhard, 2003; Kirschner & Gehart, 2005; Jablonka & Lamb, 2005; Pigliucci & Kaplan, 2006; entre muitos outros).
Antes do surgimento do "evo-devo", a teoria evolutiva tinha deficiências mais sérias, tais como um exagero sobre a importância de genes individuais como unidades determinantes do desenvolvimento, além de crenças incorretas, como a que ficou conhecida como "lei biogenética" de Haeckel, hoje rejeitada pela maioria dos biólogos. Exagerando semelhanças entre embriões de espécies animais diferentes durante o chamado "estágio filotípico", Haeckel propôs que "a ontogênese recapitula a filogênese", afirmando, por exemplo, que um embrião humano atravessa o desenvolvimento de outros animais, que tem guelras de peixes e exibe uma cauda. Na realidade, houve uma confusão entre o que foi proposto por Von Baer, ao estabelecer aspectos comuns em formas de embriões de uma dada classe, enquanto Haeckel propôs que organismos de surgimento mais recente na evolução passavam por estágios em que se assemelhavam ao estágio adulto de organismos mais primitivos. Darwin apoiava a visão de Von Baer, mas sua opinião foi eclipsada pela interpretação de Haeckel1. Maturana diverge radicalmente de todos os biólogos em sua interpretação do processo evolutivo, que ele define como uma deriva natural. Juntamente com Mpodozis, ele propõe que a seleção natural pode ser legitimamente encarada como o resultado do processo evolutivo, mas não como seu mecanismo (Maturana & Mpodozis, 2000). Mas esta é uma outra história.

Nelson M. Vaz é professor-titular aposentado do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG). É membro da Academia Brasileira de Ciências, sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Imunologia e membro honorário da Sociedade Portuguesa de Imunologia.


NOTAS
1. Haeckel tinha opiniões ainda mais radicais, precursoras do nazismo. Ele propunha, por exemplo, que: "As raças inferiores estão fisiologicamente mais próximas dos mamíferos — macacos e cães — que dos europeus civilizados. Devemos, portanto, atribuir um valor totalmente diferente às suas vidas" e "Ele (Jesus) é geralmente considerado como sendo puramente judeu. Porém, as características que distinguem Sua personalidade elevada e nobre, que conferem uma impressão distinta à sua religião, certamente não são judias. São aspectos da raça ariana superior" (Haeckel apud Gilbert, 2001).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATESON, G. 1973. Steps to an ecology of mind. Nova York: Ballantine Books.
GILBERT, Scott. 2001. Teaching evolution through development. 61st Annual Meeting of the Society for Developmental Biology. Madison, Wisconsin.
JABLONKA, E. & LAMB, M. J. 2005. Evolution in four dimensionsGenetic, epigenetic, behavioral and symbolic variation in the history of life. Cambridge: MIT Press.
KELLER, Evelyn Fox. 2002. O século do gene. Tradução de Nelson M. Vaz. Belo Horizonte: Crisálida.
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____. 1987. "Everything is said by an observer". In Gaia: a way of knowing. Political implications of the new biology. Edição de W. I. Thompson. New York: Lindisfarne Press.
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____. 2002. "Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition". Cybernetics & Human Knowing 9 (3-4), pp. 5-34 [pdf disponível por meio de maturana@matriztica.org].
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____. 2006. "Have we solved Darwin’s dilemma?". American Scientist, 94 (3), pp. 272-273.
PIGLIUCCI, M. & KAPLAN, J. 2006. Making sense of evolution: the conceptual foundations of evolutionary biology. Chicago: University of Chicago Press.
WEST EBERHARD, M. J. 2003. Developmental plasticity and evolution. Oxford: Oxford University Press.



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