segunda-feira, 5 de outubro de 2015

[ O Que é Vida? ] - por Edson Pereira & Luiz Andrade


O Que é Vida?



Luiz Antônio Botelho Andrade 
Departamento de Imunobiologia, Universidade Federal Fluminense

Edson Pereira da Silva 

Departamento de Biologia Marinha, Universidade Federal Fluminense 

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CIÊNCIA HOJE • vol. 32 • nº 191 • Março de 2003 • pag 16
Artigo publicado na Revista CIÊNCIA HOJE, Vol. 32, nº 191; 
tratando sobre as discussões sobre as origens da vida no planeta

Fonte: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAcyIAK/que-vida

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[Texto adaptado via OCR]

A vida constitui apenas uma parte ínfima do universo conhecido.

A origem dos seres vivos intriga o homem desde que o fenômeno vida ganhou, no século 19, uma ciência inteiramente dedicada a ele, a biologia. O estudo dessa questão baseou-se, por muito tempo, na idéia de que a vida teria surgido a partir de ‘moléculas precursoras’, sejam elas proteínas ou ácidos nucléicos (DNA/RNA). No final do século passado, porém, um novo modelo mudou o foco do problema – de ‘como a vida apareceu’ para ‘como a vida funciona’ –, levando a novas perguntas, que inspiram pesquisas com resultados instigantes.

(...)

A singularidade do fenômeno "vida" é perturbadora. A vida faz parte dos chamados ‘sistemas complexos’, para os quais o tempo é irreversível e construtivo – ou seja, pode-se reconstruir a história da evolução dos seres vivos e da própria vida, mas é impossível definir sua trajetória futura.


A vida é ainda um sistema altamente organizado, em contraste com um universo que sempre tende ao aumento da desordem (entropia), como afirma a segunda lei da termodinâmica. A contradição, porém, é apenas aparente. O aumento da organização do mundo vivo é local: diz respeito só aos seres vivos e não a todo o universo. Assim, tais seres absorvem do meio a energia (alimentos, no caso dos heterotróficos, e luz solar, no caso dos autotróficos) necessária para suas atividades e para manter sua organização, mas no balanço final o universo continua tendendo à desordem.

Mas, afinal, o que é vida? É uma pergunta difícil. Para entendê-la integralmente e assumir criticamente as conseqüências de qualquer de suas possíveis respostas, é necessário percorrer a história, já longa, da própria pergunta.

Uma pergunta sem lugar

As idéias sobre o mundo vivo não mudaram muito da Antigüidade até o Renascimento. Isso porque, nesse longo período, a pergunta ‘o que é vida?’ não teve um lugar próprio na filosofia ou na ciência, ou seja, o fenômeno vivo não foi concebido como uma questão em si. Nesse período, o interesse restringiu-se ao entendimento da ordem do universo – o vivo era apenas mais uma manifestação dessa ordem.

Os filósofos gregos mais antigos pretendiam compreender o universo pela arché (origem, princípio): para Tales (c. 624-545 a.C.), a origem de tudo era a água; para Anaxímenes (morto em torno de 500 a.C.), era o ar. Partindo deles, e passando por sábios como Aristóteles (384-322 a.C.), com seu sistema de causas (material, formal, motriz e final) que explicariam a essência das coisas, chegouse ao Renascimento ainda com a concepção de que cada corpo do mundo (estrela, pedra, planta, animal) seria sempre o produto de uma combinação específica de matéria e forma.

Por esse ponto de vista, a natureza – que coloca forma na matéria para criar astros, minerais ou seres vivos – é apenas um princípio que atua sob a condução de Deus. Logo, todo o universo tem uma só ordem e esta deve ser desvendada pela leitura cuida dosa da vontade divina. Tal leitura é uma decifração dos signos, ou seja, as formas do mundo. Podese dizer que, até o século 16, o papel do homem era o de decifrar um universo cifrado por Deus. A vida não suscitara uma discussão específica. A pergunta ‘o que é vida?’ não faz sentido nesse mundo. É uma pergunta sem lugar.


Uma pergunta fora do lugar

Na época clássica (séculos 17 e 18), ocorre uma ruptura com a idéia do universo como um conjunto de signos. Todas as coisas, inclusive os seres vivos, ganham uma especificidade. A forma visível deixa de ser um signo que pode informar sobre uma essência oculta, um testemunho das intenções da natureza, e passa a ser, ela mesma, o objeto de estudo. O conhecimento agora se dá pela observação e análise cuidadosa da natureza. O que importa é a vontade humana de saber, não a vontade do criador. O que se quer desvendar não é mais a ‘criação’, mas o ‘funcionamento’ da natureza.

Entretanto, embora nesse mundo os seres vivos sejam reconhecidos, seu estudo é parte das ciências físicas, hegemônicas na época. Conhecer o vivo implica entender seu funcionamento, com base no modelo de uma máquina. O vivo integra a grande mecânica que faz o universo girar e deve ser entendido pelas leis físicas.

Nesse período surge o animismo, ou seja, a idéia de continuidade entre matéria bruta e matéria viva. Os dois componentes presentes nas idéias animistas são uma valorização do vivo e de sua singularidade e uma reação ao mecanicismo dominante. A partir dessa reação surge a idéia de uma ‘força vital’ – notase, nessa expressão, que a natureza da explicação ainda vem das ciências físicas (força), mas já se busca uma especificidade, com o adjetivo (vital).

Assim, na época clássica, dominada pelo mecanicismo cartesiano, a vida passa a ser compreendida como mais uma máquina. Por isso, a pergunta ‘o que é vida’?, nesse período, está fora do lugar.

O lugar da pergunta

A analogia entre o ser vivo e uma máquina a vapor, surgida no século 18, ainda como herança do mecanicismo, será fundamental para a elaboração do conceito do vivo como um conjunto organizado e de qualidades específicas. A partir dessa analogia e das posições animistas, surgirá no final do século 18 uma concepção – o vitalismo – decisiva para a separação dos seres vivos do mundo das coisas e para a constituição de um novo campo do conhecimento: a biologia.

Se em seu início o estudo do funcionamento dos seres vivos – a fisiologia – usa métodos e conceitos da física e da química, as analogias e modelos usados acabam por transformar radicalmente a representação que se faz desses seres. Assim, o corpo vivo deixa de ser um conjunto de elementos (os órgãos) que funcionam e torna-se um conjunto de funções, cada uma com exigências precisas. O que confere ao vivo suas propriedades é um sistema de relações que produz um todo, não se reduz às partes. Surge então a idéia de um conjunto de qualidades específicas, que o século 19 chamará de vida.

Para o vitalismo, há uma descontinuidade intransponível entre a matéria bruta e a viva. O vitalismo, por assim dizer, cria a vida. Mas o que esta vem a ser? O século 19 contrapõe o vivo ao inanimado a partir da idéia de ordem que vence o caos. Para vencer o caos, o vivo conta com forças de formação e regulação – o que o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) chamou de “princípios interiores de ação”. Com isso, surge um objeto de conhecimento novo: a vida. Um novo campo exige renovados métodos, conceitos e linguagem, ou seja, demanda uma ciência nova: a biologia. É aí que a pergunta ‘o que é vida?’ fará sentido, será ouvida e produzirá respostas.

Três diferentes respostas, ou tendências, sustentaram, no século 20, a maioria dos estudos sobre a origem da vida. Essas tendências, descritas a seguir, têm grande número de adeptos (em livros didáticos, na mídia e em programas de pesquisa) e são, portanto, importantes para qualquer discussão sobre ‘o que é vida’.

Vida: um ‘pacote’ de predicados

Para alguns, a vida pode ser definida como um conjunto de propriedades ou funções dos seres vivos. Assim, bastaria identificá-las para considerar vivo um sistema ou organismo. Entre esses predicados típicos do vivo destacam-se as capacidades de nascer, crescer, viver e morrer. Outros, na mesma linha de raciocínio, defendem que essa lista deve ser estendida para explicar um fenômeno tão complexo quanto a vida. A lista ampliada teria mais propriedades (metabolismo, reprodução, código genético, evolução) e até estruturas ditas essenciais (ácidos nucléicos, células e outras).

Em princípio, ninguém discordaria com veemência dessas listas, mas elas têm duas fragilidades. Primeiro, muitos outros sistemas complexos exibem uma ou várias dessas características. Estrelas, por exemplo, nascem, crescem e morrem. Os vírus são um caso especial: eles seriam vivos (nesse caso, a definição acima estaria incorreta), pré-vivos (seriam

Escultura de criança andróide por Pierre Jaquet-Droz (c.1772). Na época clássica, a vida era entendida como uma máquina algo anterior à vida, na evolução), paravivos (seriam parasitos celulares) ou pós-vivos (teriam evoluído a partir de estruturas genéticas)? O segundo ponto frágil decorre do primeiro: como definir o momento da transição de inanimado para vivo? Imaginar um momento em que todos os predicados surgissem a um só tempo é muito próximo de imaginar o instante da ‘criação divina’.

A vida como um código

Em 1943, o austríaco Erwin Schrödinger (1887- 1961), que 10 anos antes havia recebido o prêmio Nobel de física, fez uma série de palestras sobre a vida. O conteúdo de suas palestras (reunidas no livro O que é vida?, de 1944) teve grande influência nos meios científicos, inclusive na descoberta da estrutura da molécula de DNA e no desenvolvimento da biologia molecular. Mais que tudo, esse trabalho é um testemunho da influência, no campo da biologia, de idéias reducionistas, tendo como arauto um dos melhores filhos da ‘ciência por excelência’, a física moderna.

Schrödinger falou sobre dois temas básicos: a natureza da hereditariedade e a ordem a partir da desordem. Na essência, suas idéias são simples: o gene deveria ser um tipo de cristal aperiódico, que armazenaria informação através de um código em sua estrutura. Essa profética afirmação seria confirmada com o modelo de dupla hélice do DNA. Quanto ao segundo tema, Shrödinger ressaltou que o ser vivo mantém sua ordem interna aumentando a desordem no meio externo, e portanto sem contrariar a segunda lei da termodinâmica.

Em um desdobramento dessas idéias, o bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976), que ganharia o Nobel de medicina em 1965, definiu a vida, no livro O acaso e a necessidade (de 1970), como um sistema capaz de se perpetuar no tempo graças à manutenção de sua informação. Esta, segundo ele, estaria situada em um programa genético. Assim, todo ser vivo tem: 1. um projeto interno, que se realiza em suas estruturas (propriedade chamada de ‘teleonomia’); 2. capacidade de realizar tais estruturas, sem interferência de forças externas (isso depende, portanto, de interações ‘morfogenéticas’ internas); e 3. poder de reproduzir e transmitir, inalterada, a informação sobre a própria estrutura (propriedade chamada de ‘invariância’).

Esse ponto de vista enfatiza a importância do código e do programa genético para explicar o fenômeno complexo da vida. Isso influenciou fortemen- te os avanços da biologia molecular e fortaleceu a idéia, dominante até hoje, de que a compreensão da vida se reduz ao conhecimento da estrutura e do funcionamento dos genes.



A vida como um operar

Um modelo alternativo para explicar o que é vida – a ‘autopoiese’ – foi proposto pelos neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1947-2001). Pode-se condensar a nova idéia em dois aforismos: ‘viver é conhecer’ e ‘conhecer é fazer’. Para eles, todo ser vivo, ao interagir com o meio, é capaz de conhecer, ou exibir uma conduta adequada (um ‘operar efetivo’), mas sua identidade (organização) não se altera nos limites ou domínios de sua existência (ver ‘Sistema, organização e estrutura’).


Segundo o modelo da autopoiese, todos os seres vivos (os organismos atuais e aqueles que já existiram) têm uma mesma organização. Isso poderia explicar por que se usa, desde sempre, apenas uma palavra – vida – para distinguir todos os seres que denominamos vivos. Todo ser vivo é considerado, nesse modelo, uma unidade autopoiética (um sistema), cuja organização é definida por uma rede de interações moleculares concatenadas, que produz: 1) os próprios componentes que participam das




Sistema, organização e estrutura


O modelo da autopoiese exige uma redefinição de termos como sistema, organização e estrutura. ‘Sistema’ seria qualquer coleção de elementos que, através de suas interações preferenciais, estabelece uma fronteira operacional, que o separa de outros elementos com os quais também pode interagir. Já a ‘organização’ é dada pelas relações (entre componentes) que devem existir ou ocorrer para que algo exista. A organização confere a um conjunto de elementos sua unidade de classe. Para designar um objeto (uma cadeira, por exemplo) precisamos reconhecer as relações entre seus componentes (pernas, encosto e assento) que tornam o ‘sentar’ possível. Já a ‘estrutura’ (cujo conceito deriva do conceito de organização) é o conjunto das relações efetivas entre os componentes de uma organização ou de um sistema. No exemplo da cadeira, ela pode ser descrita especificando-se, além das relações entre seus componentes (pernas, assento e encosto), os diferentes materiais (madeira, plástico, couro, ferro, alumínio) de que é feita. Assim, a mesma organização pode ser efetivada por diferentes estruturas.


Na maioria dos textos sobre o metabolismo, o programa genético (código), está hierarquicamente acima do resto das biomoléculas participantes da rede metabólica. Assim, os ácidos nucléicos (genes) ganham posição de destaque nessa percepção linear e unidirecional do metabolismo: ‘DNA e/ou RNA Proteínas.’ O modelo da autopoiese, porém, enfatiza a circularidade, ou fechamento operacional, da rede metabólica, levando a nova representação: ‘DNA e/ou RNA Proteínas.’

Essa idéia pode ser visualizada em uma concepção do organismo na qual o código não tem posição ‘superior’ e pode ser representado por pontos indiferenciados (figura 1). Não são destacados, nessa concepção, este ou aquele ponto ou mesmo a complexidade das reações pontuais de catálise (aceleração de reações bioquímicas por enzimas). O que é ressaltado é o sistema que emerge, como um todo, e que assume uma configuração autocatalítica, já que várias biomoléculas atuam, simultaneamente, como catalisadores e como substratos para reações. 



Nutrientes Membrana


Excreções pare a célula do entorno, também é essencial para a existência do vivo: inúmeras reações catalíticas e autocatalíticas só ocorrem de modo eficiente e concatenado dentro dos limites da célula. Fora deles, com os componentes diluídos no meio, algumas dessas reações nunca ocorreriam, por razões termodinâmicas ou pela improbabilidade de encontros efetivos. Assim, toda célula viva tem uma membrana plasmática contínua, delgada e permeável, que permite trocas entre ela e o meio, mas preserva sua identidade molecular (figura 2).


Em suma, a autopoiese vê a organização do vivo como uma rede de produção de moléculas constitutivas que se regenera continuamente e, ao mesmo tempo, define (através de uma fronteira) o domínio onde tal rede se realiza. É importante ressaltar que tudo isso são ‘comentários de um observador’. Para Maturana, as explicações que criamos sobre o mundo real não são ‘a realidade’, mas ‘ recortes da realidade’.







O ovo ou a galinha?


A observação das formas atuais de vida indica que mesmo o mais simples dos seres vivos é um sistema altamente complexo, onde se destacam duas classes de moléculas: 1) as ‘proteínas’, que constituem a maquinaria enzimática que realiza as reações catalíticas que mantêm a vida; e 2) os ‘ácidos nucléicos’, responsáveis pela manutenção e herança das informações do operar do ser vivo.


Proteínas realizam as reações vitais, mas só operam segundo o código contido no DNA, e este também é inoperante sem o aparato protéico/enzimático especificado por ele próprio. A total interdependência entre essas moléculas essenciais remete a uma das principais questões ligadas à origem da vida: o chamado ‘dilema do ovo e da galinha’. Na origem da vida na Terra, quem veio primeiro: os genes ou as proteínas?


É possível imaginar a presença, nos oceanos primitivos, de sistemas organizados de reações enzimáticas, do tipo coarcevados (gotículas ricas em certos compostos que surgem por separação de fase em soluções coloidais), mas como se perpetuariam e evoluiriam sem um código genético? Os ácidos nucléicos também poderiam surgir nas condições da Terra primitiva, mas como formariam um sistema complexo e organizado sem interagir com o aparato protéico/enzimático?


O dilema do ovo e da galinha ainda não tem uma solução consensual. Assim, para discuti-lo, é conveniente apresentar os principais caminhos e abordagens dos programas de pesquisa que abordam a questão da origem da vida.


Figura 1. Representação de uma rede metabólica circular que produz, para um observador, um fechamento operacional


Figura 2. A organização do vivo como uma rede circular de produção de moléculas constitutivas que no seu operar especifica uma fronteira




A hipótese do ovo


Em 1953, o biólogo norte-americano James Watson e o físico inglês Francis Crick publicaram o modelo da dupla hélice, que explicava a estrutura da molécula de DNA, e sugeriram que ela preenchia os requisitos para servir como um código, armazenando informação sobre a constituição e o funcionamento do organismo, e para transferir tal informação, por cópia, aos descendentes dele. No final do artigo, publicado na revista científica Nature, eles afirmam: “O pareamento específico que postulamos sugere de pronto um possível mecanismo copiador para o material genético.”


Era o começo daquilo que chamamos aqui de a hipótese do ovo (origem da vida com base em compostos moleculares de ácidos nucléicos ou similares). A partir desse momento, começou a ruir a idéia de que a vida teria se originado de um coacervado protéico, já que se tornou difícil imaginar como tais estruturas poderiam evoluir até uma forma de vida, por mais primitiva que fosse, sem um código genético.


Antes mesmo da descoberta de Watson e Crick, o químico irlandês John Bernal (1901-1971) afirmara, em 1951, que o ‘polímero primordial’, com o qual a vida teria começado, deveria ser capaz de estocar informação e de se autoduplicar. O DNA e as proteínas eram os candidatos naturais a esse papel. Sabia-se que era possível obter polímeros similares a proteínas e com atividade catalítica a partir do aquecimento de misturas de aminoácidos. Era impossível, porém, imaginar como esses ‘precursores’ manteriam um mecanismo eficiente de estoque e transmissão de informações, já que se formavam em um processo altamente aleatório.


Após 1953, desvendada a estrutura do DNA, as moléculas de ácidos nucléicos (DNA/RNA) ganharam papel central nos estudos sobre a origem da vida. Elas estocam e replicam a informação genética, mas precisam das proteínas para a autoduplicação. Isso significa que, nas condições da Terra primitiva, não serviriam de molde para uma ‘cópia’ sem a ajuda de enzimas. O DNA é ainda altamente resistente à decomposição por hidrólise, o que, no caso de polímeros precursores semelhantes ao DNA, dificultaria a reciclagem dos monômeros, ou seja, a reutilização ou rearranjo deles. Portanto, parece improvável a colonização do ambiente aquático da Terra primitiva por polímeros primordiais de DNA.


Nos anos 70, nos Estados Unidos, as equipes do bioquímico Thomas Cech (norte-americano) e do biólogo Sidney Altman (canadense) comprovaram, em estudos independentes, que certas seqüências de RNA (chamadas de ‘introns’) eram capazes de acelerar a velocidade de algumas reações. Ou seja, atuavam como enzimas. Esses trabalhos inauguraram aquilo que se convencionou chamar de estudos sobre a origem da vida a partir de ‘um mundo de RNAs’.


Em 1986, descobriu-se que os introns participavam do autoprocessamento do RNA precursor: introns purificados, postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, mostraram-se capazes de retirar uma base de um deles e transferi-la para outro. Assim, a partir de duas moléculas de mesmo tamanho (n), o intron produz uma molécula acrescida de uma base (n+1) e outra diminuída de uma (n-1) e assim sucessivamente (n+2 e n-2, n+3 e n-3, n+4 e n-4 etc.) (figura 3).


Essa síntese não se dá ao acaso: depende, em parte, da seqüência de bases do intron, de modo que a nova seqüência é semelhante à do intron que a sintetiza. Este, por atuar como enzima, foi chamado de ‘ribozima’. Isso abriu a perspectiva teórica de um RNA capaz de copiar a si próprio, o que solucionaria o dilema do ovo e da galinha. No final dos anos 80, porém, cientistas como o bioquímico Robert Shapiro e o biólogo molecular Gerald Joyce indagaram: nas condições da Terra primitiva, o RNA poderia ser sintetizado a uma velocidade maior que a da sua decomposição por radiação ultravioleta, por hidrólise ou por reações com outras moléculas? A resposta foi não.


A partir daí, tem sido procurado outro polímero primordial com capacidade de auto-replicação. No momento, as pesquisas envolvem compostos com comportamento semelhante ao dos RNAs – os ‘análogos de RNA’, como aciclonucleosídeos deriva-


Figura 3. Quando purificados e postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, os íntrons (seqüências de RNA) retiram uma base e a transferem para outro fragmento



Vger= ∆[C] dos de glicerol. Tais compostos atraem grande interesse porque são muito mais resistentes que a ribose (presente no RNA). Portanto, podem ter se acumulado, nos ambientes aquáticos da Terra primitiva, em quantidade suficiente para a formação posterior dos ácidos nucléicos. O problema, nesse caso, é demonstrar a possibilidade da passagem de ‘um mundo de análogos de RNA’ para ‘um mundo de RNAs’.


Como se vê, a proposta da origem da vida a partir de um ‘polímero primordial’ de ácidos nucléicos ou análogos (o ovo) é rica em respostas que geram novas perguntas.




A hipótese da galinha


Mesmo após a descoberta do DNA, a hipótese da galinha (a origem da vida com base em compostos moleculares protéicos) manteve-se viva, graças ao trabalho de seus defensores, que buscaram argumentos a seu favor. O primeiro foi obtido em 1953 por um estudante de química norte-americano, Stanley Miller. Ele reproduziu, em laboratório, as condições que se acreditava serem as da atmosfera primitiva da Terra, conseguindo a formação de mais de 12 aminoácidos, alguns deles descritos depois em meteoritos. Hoje, esse experimento é contestado, pois moléculas orgânicas só se formariam se a atmosfera fosse quimicamente redutora, algo que não se considera possível na Terra primitiva.


Na época, o experimento gerou nova pergunta: os aminoácidos primordiais, nas condições pré-bióticas, poderiam ter se ligado para formar peptídios (os


‘tijolos’ das proteínas)? A resposta foi dada pelo biofísico norte-americano Sidney Fox e seu grupo em estudos sobre a polimerização de misturas de aminoácidos pela ação do calor. Ele aqueceu, a 170oC, uma mistura seca de aminoácidos por três horas, e obteve um sólido com aparência de plástico. Ao moer o material e misturá-lo à água, descobriu que uma parcela (até 15% do peso) era solúvel e continha cerca de 50 aminoácidos combinados. Fox chamou esse produto solúvel de ‘proteinóide’ e vem seguindo essa linha de pesquisa por toda a sua vida.


O grupo de Fox verificou depois que os proteinóides eram capazes de formar vesículas (microesferas). Estas, segundo Fox, teriam servido como fronteiras para células primitivas. Essa idéia é contestada por muitos, mas o citologista belga Christian De Duve (Nobel de medicina em 1974) ressalta sua importância: os proteinóides têm alguma atuação catalítica fraca e sua composição em aminoácidos é relativamente constante e reproduzível, apesar das condições aleatórias da receita. Isso indica que as ligações entre os aminoácidos da mistura inicial não ocorreriam só ao acaso, mas certas associações seriam privilegiadas.


Outro argumento é o de que, devido à natureza estritamente físico-química dos fatores envolvidos, a formação de proteinóides pode ter permanecido constante nas prováveis condições (calor intenso) anteriores ao surgimento de seres vivos, até que tais condições se alteraram. Ainda que a formação do ‘proteinóide’ pudesse aumentar, na Terra primitiva, restava um problema: haveria suficiente diversidade de ‘proteínas precursoras’ (ou ao menos de peptídios) com atividade catalítica?


A resposta foi fornecida, antes que a pergunta surgisse, pelo químico alemão Heinrich Wieland (1877- 1957), quando este demonstrou que aminoácidos contendo grupamentos do tipo tiol (tioésteres) podiam formar peptídios em temperaturas mais baixas que as usadas por Fox e na ausência de catalisadores. A importância do achado seria notada quando o bioquímico alemão (naturalizado norte-americano) Fritz Lipmann (1899-1986) descobriu que certos peptídios bacterianos (como o antibiótico gramididina-S) são sintetizados na natureza a partir de tioésteres. O próprio Lipmann sugeriu que o mecanismo de formação de peptídios, dependente de tioésteres, pode ter precedido o mecanismo sintetizador de proteína, dependente de RNA, na evolução da vida.


De Duve, no livro Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, argumenta que tioésteres são relevantes para a formação de peptídios por duas razões principais: 1) tioésteres são essenciais no metabolismo atual (razão que chamou de ‘congruência’); e 2) o grupamento tiol deriva do ácido sulfídri-


Figura 4. Sistema isocitrato/ octanol, onde micelas artificiais se auto-replicam, ou seja, mostram-se capazes de efetuar uma síntese orgânica a partir das propriedades estruturais definidas pelo próprio sistema co (H2S), o gás pútrido que impregnava o cenário físico-químico do berço da vida. Ele acrescenta ain- da o achado recente do grupo de Miller que mostra a viabilidade da síntese pré-biótica de dois tióis naturais, a coenzima-M (importante em bactérias produtoras de metano) e a cisteamina (componente indispensável da coenzima-A, essencial a todos os seres vivos atuais).


Mesmo aceitando o papel-chave dos tioésteres, resta uma dúvida: sua formação exigiria um aporte de energia. O próprio De Duve propôs uma solução: tioésteres se formariam espontaneamente a partir dos ácidos livres e dos tióis em um meio aquoso quente e ácido. Um meio assim é pouco aconchegante para seres vivos, mas trabalhos recentes indicam que bactérias termoacidófilas, de origem muito antiga, vivem em hábitats parecidos, perto de jatos hidrotérmicos submarinos.


Nem ovo, nem galinha: o chocar


Uma solução possível para o dilema ‘ovo/galinha’ – a autopoiese – desvia o eixo de discussão do problema, que passa de ‘como a vida se originou’ para ‘como a vida funciona’. Essa idéia orienta outros grupos de pesquisa que contribuem para o debate sobre a origem da vida. A autopoiese, como visto, é definida como uma rede de produção de moléculas constitutivas que regenera a si mesma, continuamente, e ao mesmo tempo especifica, através de uma fronteira física, o domínio onde essa rede se realiza. Essa definição não destaca qualquer molécula ou função.


Vários grupos usam esse referencial teórico em suas pesquisas. Um trabalho muito interessante, liderado pelo químico italiano Pier Luigi Luisi na Suíça, envolve a chamada ‘vida mínima sintética’: a tentativa de realizar a autopoiese usando apenas sistemas de reações químicas. Luisi produziu, com um sistema formado por isocitrato e octanol, micelas (pequenos agregados de compostos) que se auto-replicam, ou seja, efetuam uma síntese orgânica autônoma a partir das propriedades do seu sistema molecular. Tais micelas (figura 4) devem ser consideradas ‘vida sintética mínima’.


Tal afirmação parece um anticlímax, diante das discussões já apresentadas. É importante salientar, porém, que seu caráter radical baseia-se exatamente no desvio da questão (de como a vida começou para como a vida funciona, ainda que em uma condição sintética mínima). Luisi de fato conseguiu demonstrar um operar autopoiético mínimo, que não invoca moléculas ‘especiais’, como proteínas ou ácidos nucléicos.


Outra abordagem interessante é a do biólogo norte-americano Stuart Kaufman. Ele também propõe que a origem da vida nas condições da Terra primitiva pode estar associada a dinâmicas coletivamente ordenadas em sistemas complexos de reações químicas, descartando a necessidade de uma hierarquia molecular para isso.


A descoberta de seres como os micoplasmas, que têm em torno de 600 genes codificantes e um metabolismo baseado em, talvez, mil pequenas moléculas, levou Kaufman a afirmar que nenhuma molécula se auto-replica, e sim o sistema como um todo. Assim, a reprodução de um micoplasma (e de todos os seres vivos conhecidos) seria uma autocatálise. Essa hipótese considera que o problema da origem da vida deve passar pela autocatálise do sistema, como um todo, e não de uma molécula em especial. Kaufman argumenta que sistemas de reações químicas suficientemente complexos, como os que provavelmente existiram nos oceanos primitivos, poderiam alcançar uma diversidade molecular tal que levaria à formação de subsistemas que fossem autocatalíticos – ou seja, vivos.


Segundo o cientista, a razão entre reações e moléculas cresce à medida que aumenta a diversidade molecular de um sistema. Assim, quando essa diversidade atingir certo nível, quase todo polímero irá catalisar pelo menos uma reação. Em um nível crítico de diversidade, emergem do sistema geral inúmeros conjuntos de reações catalíticas conectadas. Se os polímeros que atuam como catalisadores forem também os produtos das reações catalisadas, cada subsistema que emerge pode se tornar coletivamente autocatalítico, ou seja, realizar a auto-reprodução.


John Bernal definia o ‘polímero primordial’ como aquele que deveria apresentar a capacidade de ‘autoduplicação e estocagem de informação genética’. Com base nesse argumento, é legítimo perguntar: como sistemas coletivamente autocatalíticos mantêm sua informação genética? Ou seja, tais sistemas podem evoluir, no sentido darwiniano da palavra? Esse é, certamente, o ponto mais frágil de hipóteses sobre a origem da vida como a de Kaufman. No entanto, alguns acreditam que, dentro de um amplo conjunto de sistemas autocatalíticos, podem ter surgido subsistemas moleculares que evoluíram no sentido de produzir ácidos nucléicos, ou seja, um código genético.


Esse talvez seja mais um dos momentos da história da biologia em que uma contradição (o dilema do ovo e da galinha) é ultrapassada por um novo modo de olhar o problema. No entanto, ainda parece cedo para avaliar, com o distanciamento necessário, o verdadeiro impacto desse novo ponto de vista sobre os programas de pesquisa e as soluções propostas para o problema da origem da vida na Terra.


Sugestões para leitura


DUVE, C. Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1997.


EL HANI, C. N. & VIDEIRA, A. A. P. (org.) O que é a vida? Para entender a biologia do século XXI, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.


MARGULIS, L. & SAGAN, C. O que é vida? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002.


MATURANA, H. & Varela, F. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo, Porto Alegre, Artes Médicas, 1997.


MURPHY, M. P. & O’Neill, L. A. J. (org.). O que é vida? 50 anos depois: especulações sobre o futuro da biologia, São Paulo, Ed. Unesp, 1997.



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Luiz Antonio Andrade e Edson Pereira da Silva 
(UFF)

O que é vida? Qual a sua origem? Essas questões fundamentais ainda estão em aberto. Contudo, tão instigantes quanto as possíveis respostas são as reflexões e hipóteses provisoriamente construídas e eventualmente abandonadas com o objetivo de respondê-las. A história desse percurso - que envolve muitas idas e vindas em temas da biologia, genética e epistemologia - é o assunto do livro “Por que as galinhas cruzam as estradas?”,  lançado no final de 2011 pelos biólogos  Luiz Antonio Botelho Andrade e Edson Pereira da Silva, e do nosso próximo Colóquio, 3 de julho, terça-feira, às 16 horas.

Uma revisão das teses e antíteses surgidas no rastro dos debates sobre o surgimento da vida e a evolução das espécies, “Por que as galinhas cruzam as estradas?” é uma indicação bem humorada dos autores, ambos professores e pesquisadores da UFF, de que as diversas teorias evolutivas da vida apontam para uma estrada que qualquer ser vivo tem que cruzar - a evolução darwiniana – e procuram uma resposta final para o conhecido dilema do ovo e da galinha – afinal, quem veio primeiro?

Luiz Antonio Botelho de Andrade tem doutorado em Imunobiologia pela Universidade de Paris VI e Instituto Pasteur, França (1990). É graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com mestrado em Bioquímica e Imunologia também pela UFMG, em 1983. Trabalha nas áreas de Imunologia, Educação e Epistemologia, e atua principalmente nos seguintes temas: Imunologia, Biologia do Conhecimento e Ensino de Ciências.

Edson Pereira da Silva tem doutorado em Genética pela University of Wales-Swansea (1998) e pós-doutorado em Genética Molecular pela University of Swansea. É graduado em Biologia Marinha pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (1988), com mestrado em Genética também pela UFRJ, em 1991. Trabalha na área de Genética, com ênfase em Genética de Populações de Organismos Marinhos, atua principalmente nos seguintes temas: Genética Molecular, Conservação, Bioinvasão, Teoria Evolutiva, Epistemologia e Ensino de Ciências.
Os encontros do Ciclo de Colóquios acontecem semanalmente, sempre às 16 horas, no auditório do 6. andar do CBPF, localizado na rua Dr. Xavier Sigaud, 150, Urca, próximo ao shopping Rio Sul. A programação do evento pode ser acompanhada em www.coloquioscbpf.blogspot.com.

Fonte: http://portal.cbpf.br/coloquio/porque-as-galinhas-cruzam-as-estradas-historia-das-ideias-sobre-a-vida-e-sua-origem/952

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Um comentário:

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