segunda-feira, 5 de outubro de 2015

[ Quem veio primeiro: o Ovo ou a Galinha? ] - por Edson Pereira & Luiz Andrade



O dilema do ovo e da galinha ainda não tem uma solução consensual. Assim, para discuti-lo, é conveniente apresentar os principais caminhos e abordagens dos programas de pesquisa que abordam a questão da origem da vida.



A hipótese do ovo


Em 1953, o biólogo norte-americano James Watson e o físico inglês Francis Crick publicaram o modelo da dupla hélice, que explicava a estrutura da molécula de DNA, e sugeriram que ela preenchia os requisitos para servir como um código, armazenando informação sobre a constituição e o funcionamento do organismo, e para transferir tal informação, por cópia, aos descendentes dele. No final do artigo, publicado na revista científica Nature, eles afirmam: “O pareamento específico que postulamos sugere de pronto um possível mecanismo copiador para o material genético.”


Era o começo daquilo que chamamos aqui de a hipótese do ovo (origem da vida com base em compostos moleculares de ácidos nucléicos ou similares). A partir desse momento, começou a ruir a idéia de que a vida teria se originado de um coacervado protéico, já que se tornou difícil imaginar como tais estruturas poderiam evoluir até uma forma de vida, por mais primitiva que fosse, sem um código genético.


Antes mesmo da descoberta de Watson e Crick, o químico irlandês John Bernal (1901-1971) afirmara, em 1951, que o ‘polímero primordial’, com o qual a vida teria começado, deveria ser capaz de estocar informação e de se autoduplicar. O DNA e as proteínas eram os candidatos naturais a esse papel. Sabia-se que era possível obter polímeros similares a proteínas e com atividade catalítica a partir do aquecimento de misturas de aminoácidos. Era impossível, porém, imaginar como esses ‘precursores’ manteriam um mecanismo eficiente de estoque e transmissão de informações, já que se formavam em um processo altamente aleatório.


Após 1953, desvendada a estrutura do DNA, as moléculas de ácidos nucléicos (DNA/RNA) ganharam papel central nos estudos sobre a origem da vida. Elas estocam e replicam a informação genética, mas precisam das proteínas para a autoduplicação. Isso significa que, nas condições da Terra primitiva, não serviriam de molde para uma ‘cópia’ sem a ajuda de enzimas. O DNA é ainda altamente resistente à decomposição por hidrólise, o que, no caso de polímeros precursores semelhantes ao DNA, dificultaria a reciclagem dos monômeros, ou seja, a reutilização ou rearranjo deles. Portanto, parece improvável a colonização do ambiente aquático da Terra primitiva por polímeros primordiais de DNA.


Nos anos 70, nos Estados Unidos, as equipes do bioquímico Thomas Cech (norte-americano) e do biólogo Sidney Altman (canadense) comprovaram, em estudos independentes, que certas seqüências de RNA (chamadas de ‘introns’) eram capazes de acelerar a velocidade de algumas reações. Ou seja, atuavam como enzimas. Esses trabalhos inauguraram aquilo que se convencionou chamar de estudos sobre a origem da vida a partir de ‘um mundo de RNAs’.


Em 1986, descobriu-se que os introns participavam do autoprocessamento do RNA precursor: introns purificados, postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, mostraram-se capazes de retirar uma base de um deles e transferi-la para outro. Assim, a partir de duas moléculas de mesmo tamanho (n), o intron produz uma molécula acrescida de uma base (n+1) e outra diminuída de uma (n-1) e assim sucessivamente (n+2 e n-2, n+3 e n-3, n+4 e n-4 etc.) (figura 3).


Essa síntese não se dá ao acaso: depende, em parte, da seqüência de bases do intron, de modo que a nova seqüência é semelhante à do intron que a sintetiza. Este, por atuar como enzima, foi chamado de ‘ribozima’. Isso abriu a perspectiva teórica de um RNA capaz de copiar a si próprio, o que solucionaria o dilema do ovo e da galinha. No final dos anos 80, porém, cientistas como o bioquímico Robert Shapiro e o biólogo molecular Gerald Joyce indagaram: nas condições da Terra primitiva, o RNA poderia ser sintetizado a uma velocidade maior que a da sua decomposição por radiação ultravioleta, por hidrólise ou por reações com outras moléculas? A resposta foi não.


A partir daí, tem sido procurado outro polímero primordial com capacidade de auto-replicação. No momento, as pesquisas envolvem compostos com comportamento semelhante ao dos RNAs – os ‘análogos de RNA’, como aciclonucleosídeos deriva-


Figura 3. Quando purificados e postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, os íntrons (seqüências de RNA) retiram uma base e a transferem para outro fragmento



Vger= ∆[C] dos de glicerol. Tais compostos atraem grande interesse porque são muito mais resistentes que a ribose (presente no RNA). Portanto, podem ter se acumulado, nos ambientes aquáticos da Terra primitiva, em quantidade suficiente para a formação posterior dos ácidos nucléicos. O problema, nesse caso, é demonstrar a possibilidade da passagem de ‘um mundo de análogos de RNA’ para ‘um mundo de RNAs’.


Como se vê, a proposta da origem da vida a partir de um ‘polímero primordial’ de ácidos nucléicos ou análogos (o ovo) é rica em respostas que geram novas perguntas.




A hipótese da galinha


Mesmo após a descoberta do DNA, a hipótese da galinha (a origem da vida com base em compostos moleculares protéicos) manteve-se viva, graças ao trabalho de seus defensores, que buscaram argumentos a seu favor. O primeiro foi obtido em 1953 por um estudante de química norte-americano, Stanley Miller. Ele reproduziu, em laboratório, as condições que se acreditava serem as da atmosfera primitiva da Terra, conseguindo a formação de mais de 12 aminoácidos, alguns deles descritos depois em meteoritos. Hoje, esse experimento é contestado, pois moléculas orgânicas só se formariam se a atmosfera fosse quimicamente redutora, algo que não se considera possível na Terra primitiva.


Na época, o experimento gerou nova pergunta: os aminoácidos primordiais, nas condições pré-bióticas, poderiam ter se ligado para formar peptídios (os


‘tijolos’ das proteínas)? A resposta foi dada pelo biofísico norte-americano Sidney Fox e seu grupo em estudos sobre a polimerização de misturas de aminoácidos pela ação do calor. Ele aqueceu, a 170oC, uma mistura seca de aminoácidos por três horas, e obteve um sólido com aparência de plástico. Ao moer o material e misturá-lo à água, descobriu que uma parcela (até 15% do peso) era solúvel e continha cerca de 50 aminoácidos combinados. Fox chamou esse produto solúvel de ‘proteinóide’ e vem seguindo essa linha de pesquisa por toda a sua vida.


O grupo de Fox verificou depois que os proteinóides eram capazes de formar vesículas (microesferas). Estas, segundo Fox, teriam servido como fronteiras para células primitivas. Essa idéia é contestada por muitos, mas o citologista belga Christian De Duve (Nobel de medicina em 1974) ressalta sua importância: os proteinóides têm alguma atuação catalítica fraca e sua composição em aminoácidos é relativamente constante e reproduzível, apesar das condições aleatórias da receita. Isso indica que as ligações entre os aminoácidos da mistura inicial não ocorreriam só ao acaso, mas certas associações seriam privilegiadas.


Outro argumento é o de que, devido à natureza estritamente físico-química dos fatores envolvidos, a formação de proteinóides pode ter permanecido constante nas prováveis condições (calor intenso) anteriores ao surgimento de seres vivos, até que tais condições se alteraram. Ainda que a formação do ‘proteinóide’ pudesse aumentar, na Terra primitiva, restava um problema: haveria suficiente diversidade de ‘proteínas precursoras’ (ou ao menos de peptídios) com atividade catalítica?


A resposta foi fornecida, antes que a pergunta surgisse, pelo químico alemão Heinrich Wieland (1877- 1957), quando este demonstrou que aminoácidos contendo grupamentos do tipo tiol (tioésteres) podiam formar peptídios em temperaturas mais baixas que as usadas por Fox e na ausência de catalisadores. A importância do achado seria notada quando o bioquímico alemão (naturalizado norte-americano) Fritz Lipmann (1899-1986) descobriu que certos peptídios bacterianos (como o antibiótico gramididina-S) são sintetizados na natureza a partir de tioésteres. O próprio Lipmann sugeriu que o mecanismo de formação de peptídios, dependente de tioésteres, pode ter precedido o mecanismo sintetizador de proteína, dependente de RNA, na evolução da vida.


De Duve, no livro Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, argumenta que tioésteres são relevantes para a formação de peptídios por duas razões principais: 1) tioésteres são essenciais no metabolismo atual (razão que chamou de ‘congruência’); e 2) o grupamento tiol deriva do ácido sulfídri-


Figura 4. Sistema isocitrato/ octanol, onde micelas artificiais se auto-replicam, ou seja, mostram-se capazes de efetuar uma síntese orgânica a partir das propriedades estruturais definidas pelo próprio sistema co (H2S), o gás pútrido que impregnava o cenário físico-químico do berço da vida. Ele acrescenta ain- da o achado recente do grupo de Miller que mostra a viabilidade da síntese pré-biótica de dois tióis naturais, a coenzima-M (importante em bactérias produtoras de metano) e a cisteamina (componente indispensável da coenzima-A, essencial a todos os seres vivos atuais).


Mesmo aceitando o papel-chave dos tioésteres, resta uma dúvida: sua formação exigiria um aporte de energia. O próprio De Duve propôs uma solução: tioésteres se formariam espontaneamente a partir dos ácidos livres e dos tióis em um meio aquoso quente e ácido. Um meio assim é pouco aconchegante para seres vivos, mas trabalhos recentes indicam que bactérias termoacidófilas, de origem muito antiga, vivem em hábitats parecidos, perto de jatos hidrotérmicos submarinos.


Nem ovo, nem galinha: o chocar


Uma solução possível para o dilema ‘ovo/galinha’ – a autopoiese – desvia o eixo de discussão do problema, que passa de ‘como a vida se originou’ para ‘como a vida funciona’. Essa idéia orienta outros grupos de pesquisa que contribuem para o debate sobre a origem da vida. A autopoiese, como visto, é definida como uma rede de produção de moléculas constitutivas que regenera a si mesma, continuamente, e ao mesmo tempo especifica, através de uma fronteira física, o domínio onde essa rede se realiza. Essa definição não destaca qualquer molécula ou função.


Vários grupos usam esse referencial teórico em suas pesquisas. Um trabalho muito interessante, liderado pelo químico italiano Pier Luigi Luisi na Suíça, envolve a chamada ‘vida mínima sintética’: a tentativa de realizar a autopoiese usando apenas sistemas de reações químicas. Luisi produziu, com um sistema formado por isocitrato e octanol, micelas (pequenos agregados de compostos) que se auto-replicam, ou seja, efetuam uma síntese orgânica autônoma a partir das propriedades do seu sistema molecular. Tais micelas (figura 4) devem ser consideradas ‘vida sintética mínima’.


Tal afirmação parece um anticlímax, diante das discussões já apresentadas. É importante salientar, porém, que seu caráter radical baseia-se exatamente no desvio da questão (de como a vida começou para como a vida funciona, ainda que em uma condição sintética mínima). Luisi de fato conseguiu demonstrar um operar autopoiético mínimo, que não invoca moléculas ‘especiais’, como proteínas ou ácidos nucléicos.


Outra abordagem interessante é a do biólogo norte-americano Stuart Kaufman. Ele também propõe que a origem da vida nas condições da Terra primitiva pode estar associada a dinâmicas coletivamente ordenadas em sistemas complexos de reações químicas, descartando a necessidade de uma hierarquia molecular para isso.


A descoberta de seres como os micoplasmas, que têm em torno de 600 genes codificantes e um metabolismo baseado em, talvez, mil pequenas moléculas, levou Kaufman a afirmar que nenhuma molécula se auto-replica, e sim o sistema como um todo. Assim, a reprodução de um micoplasma (e de todos os seres vivos conhecidos) seria uma autocatálise. Essa hipótese considera que o problema da origem da vida deve passar pela autocatálise do sistema, como um todo, e não de uma molécula em especial. Kaufman argumenta que sistemas de reações químicas suficientemente complexos, como os que provavelmente existiram nos oceanos primitivos, poderiam alcançar uma diversidade molecular tal que levaria à formação de subsistemas que fossem autocatalíticos – ou seja, vivos.


Segundo o cientista, a razão entre reações e moléculas cresce à medida que aumenta a diversidade molecular de um sistema. Assim, quando essa diversidade atingir certo nível, quase todo polímero irá catalisar pelo menos uma reação. Em um nível crítico de diversidade, emergem do sistema geral inúmeros conjuntos de reações catalíticas conectadas. Se os polímeros que atuam como catalisadores forem também os produtos das reações catalisadas, cada subsistema que emerge pode se tornar coletivamente autocatalítico, ou seja, realizar a auto-reprodução.


John Bernal definia o ‘polímero primordial’ como aquele que deveria apresentar a capacidade de ‘autoduplicação e estocagem de informação genética’. Com base nesse argumento, é legítimo perguntar: como sistemas coletivamente autocatalíticos mantêm sua informação genética? Ou seja, tais sistemas podem evoluir, no sentido darwiniano da palavra? Esse é, certamente, o ponto mais frágil de hipóteses sobre a origem da vida como a de Kaufman. No entanto, alguns acreditam que, dentro de um amplo conjunto de sistemas autocatalíticos, podem ter surgido subsistemas moleculares que evoluíram no sentido de produzir ácidos nucléicos, ou seja, um código genético.


Esse talvez seja mais um dos momentos da história da biologia em que uma contradição (o dilema do ovo e da galinha) é ultrapassada por um novo modo de olhar o problema. No entanto, ainda parece cedo para avaliar, com o distanciamento necessário, o verdadeiro impacto desse novo ponto de vista sobre os programas de pesquisa e as soluções propostas para o problema da origem da vida na Terra.


Sugestões para leitura


DUVE, C. Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1997. 


EL HANI, C. N. & VIDEIRA, A. A. P. (org.) O que é a vida? Para entender a biologia do século XXI, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000. 


MARGULIS, L. & SAGAN, C. O que é vida? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002. 


MATURANA, H. & Varela, F. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo, Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. 


MURPHY, M. P. & O’Neill, L. A. J. (org.). O que é vida? 50 anos depois: especulações sobre o futuro da biologia, São Paulo, Ed. Unesp, 1997.


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Obs: trecho extraído de
O Que é Vida?

Luiz Antônio Botelho Andrade 
Departamento de Imunobiologia, Universidade Federal Fluminense

Edson Pereira da Silva 

Departamento de Biologia Marinha, Universidade Federal Fluminense 

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CIÊNCIA HOJE • vol. 32 • nº 191 • Março de 2003 • pag 16

Artigo publicado na Revista CIÊNCIA HOJE, Vol. 32, nº 191; 
tratando sobre as discussões sobre as origens da vida no planeta

Fonte: http://filosobio.blogspot.com.br/2015/10/o-que-e-vida-edson-pereira-luiz-andrade.html


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Porque as galinhas cruzam as estradas?
de Luiz Andrade

https://vimeo.com/40129504

Luiz Andrade e Edson Pereira da Silva - autores do livro intitulado "Porque as galinhas cruzam as estradas" - foram entrevistados por Jô Soares no dia 19 de março de 2012. O Programa foi veiculado pela Rede Globo de Televisão no dia 3 de abril de 2012. Neste video (editado) foi introduzido uma imagem do Cubo de Necker e a ilusão que pode ser provocada pelo mesmo quando o observador (câmera) se desloca.



https://twitter.com/vieiralent/status/187571693424877568


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