domingo, 17 de agosto de 2014

Os “fatos científicos” como objetos do estudo histórico-sociológico

Ludwik Fleck:Os “fatos científicos” como objetos do estudo histórico-sociológico

Elizabete Satie Henna
COC/FIOCRUZ

A obra de Ludwik Fleck, “Gênese e desenvolvimento de um fato científico: introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento”, tem grande importância para o estudo histórico-sociológico da ciência. Apesar de ter sido esquecida por anos, vem sendo citada por autores reconhecidos, como Thomas Kuhn e Bruno Latour1,2. Lothar Schäfer e Thomas Schnelle a consideram um “clássico da teoria da ciência”3. Publicada pela primeira vez em alemão, na Basiléia, em 1935, “(re)aparece em 1979” 4, traduzida para o inglês e apresentada por Kuhn.
Adentremos no livro5, apresentando resumidamente seus argumentos, em cada um de seus três capítulos. No capítulo 1, Fleck se debruça sobre o surgimento do conceito da sífilis, utilizando fontes históricas a partir do final século XV. Antes desse período não havia como diferenciá-la de outras doenças que também acometiam os órgãos genitais.
O contexto europeu do final do séc. XV favoreceu o acúmulo de doenças e epidemias. Era preciso dar explicações para esses males. Daí começa a se desenvolver o conceito da sífilis. Existiam várias explicações possíveis, que estabeleciam entre si uma relação de “efeito mútuo”, de colaboração e antagonismo.
A primeira era uma ideia ético-mística, oriunda dos astrólogos e religiosos. Para a astrologia, que era a ciência dominante da época, o surgimento da doença se explicaria por uma conjunção astral entre Saturno e Júpiter, na data de 25 de novembro de 1484, sob influência do signo de Escorpião em Marte. Escorpião era o signo que regia as regiões venéreas do corpo, o que contribuiu para uma primeira especificidade da doença: seu “caráter venéreo”. Para os religiosos, essa doença foi enviada por Deus para que os homens “evitem o pecado da luxúria”. Assim, chegou-se a uma idéia de “epidemia venérea”.
Outra ideia nasce no meio farmacêutico, ou da “empiria médica”, que distinguiu dentre várias “moléstias cutâneas”, um grupo que progredia ou até se curava com pomadas de mercúrio. Dentro desse grupo estaria a sífilis.
E havia também a posição dos médicos que “duvidavam” da existência da sífilis. Para eles, o que se denomina sífilis poderia ser “diversas outras doenças”. Essa posição aparece tanto em textos do século XVI quanto do século XIX. Fleck ressalta o argumento do Dr. Josef Hermann, do final do século XIX, de que o exame de sangue deveria ser “premissa máxima” para reconhecer a existência da doença. O argumento é importante porque evidencia “o grito pelo exame de sangue”, a necessidade desse exame para se chegar ao diagnóstico preciso da doença.
Para Fleck, o conceito de sífilis se define por proposições oriundas de vários outros conceitos. É aqui que entra em cena o “condicionamento cultural e histórico da suposta escolha epistemológica” (FLECK, 2010: 49). Por exemplo, no século XVI não faria sentido, considerando aquele contexto histórico-social, recusar o conceito “místico-ético” da sífilis em prol de um conceito “científico patogênico”.
No capítulo 2, Fleck aprofunda sua análise de como se desenvolve o conceito de doença, o processo de conhecimento, introduzindo a ideia de “coletivo de pensamento”. No processo do conhecimento, existe uma relação entre três elementos: o sujeito, o objeto e o “estado do saber”. O “processo de conhecimento não é o processo individual de uma ‘consciência em si’ teórica; é o resultado de uma atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber ultrapassa os limites dados a um indivíduo” (FLECK, 2010: 81).
Por exemplo, para que um sujeito entenda o que é a sífilis, numa definição moderna, e possa identificá-la, deve saber o que é a “sorologia”, o que é um “agente patológico”, uma “bactéria” etc. Os cientistas devem ter sido iniciados para executarem esse experimento. “Prepara-se um intelecto para uma área, acolhe-se o mesmo num mundo fechado, dá-se a ele uma espécie de bênção de iniciação” (FLECK, 2010: 99). Ou seja, o sujeito deve estar em contato com várias formas de pensar que o formam como cientista.
Fleck define então “coletivo de pensamento” como “a comunidade das pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de pensamentos”. Daí resulta “em cada uma dessas pessoas, um portador do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento” (FLECK, 2010: 82).
O capítulo 3 é dedicado à “reação de Wasserman”, que foi um divisor de águas. O experimento permitiu que a sífilis fosse melhor delimitada, além de dar origem à sorologia. Trata-se de um experimento complicado, que envolve conceitos de “química”, “químico-física”, “patologia” e “fisiologia”. São realizados vários testes, sendo necessárias várias amostras de sangue, para haver a comprovação da sífilis. E apesar de todos os “procedimentos de segurança”, sempre pode surgir algo inesperado. Apesar de ter um “esquema fixo”, a reação ocorre com várias modificações. “Baseia-se em cálculos quantitativos precisos, mas sempre o olhar experimentado, o ‘sentir sorológico’, é mais importante que o cálculo” (FLECK, 2010: 98). Nos congressos promovidos por Wassermann as mesmas amostras de sangue eram analisadas por diferentes sorologistas, muito conceituados, mas os resultados não coincidiam. No entanto, essa reação foi amplamente aceita e intensamente utilizada pelos médicos.
Chegou-se então a um “fato científico”. Nota-se que, longe de ser uma descoberta isolada, o “fato científico” é construído de modo coletivo, sendo influenciado por saberes pré-existentes na cultura do cientista e passível de dúvidas, pois as provas podem tanto validar quanto contestá-lo. O fato só será “fato” se aceito pela comunidade científica.       
Fleck afirma que a própria origem do pensamento do homem está “no meio social onde vive, na atmosfera social na qual respira, e ele não tem como pensar de outra maneira a não ser daquela que resulta necessariamente das influências do meio social que se concentram no seu cérebro” (FLECK, 2010: 90).
Então, os “fatos científicos” devem ser objetos de estudo histórico-sociológico, pois vimos que as explicações lógico-formais não dão conta de explicar sua existência. Uma série de fatores, como investimento, apoio, “estado do saber”, “coletivos de pensamento”, aceitação pela comunidade científica etc, geram e definem se um “fato científico” existirá ou não.

REFERÊNCIAS
1. KUNH, Thomas S. (2011) A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Editora Perspectiva.
2. LATOUR, Bruno e WOOLGAR, Steven (1997). A Vida de Laboratório: a produção dosfatos científicos. Rio de Janeiro, RelumeDumará.
3. SCHÄFER, L.; SCHNELLE, T. “Introdução: Fundamentação da perspectiva sociológica de Ludwik Fleck na teoria da ciência”. In: FLECK, Ludwik (2010) Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico: introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Belo Horizonte, Fabrefactum Editora.
4. CONDÉ, M. “Prefácio à edição brasileira. Um livro e seus prefácios: de pé de página a novo clássico”. In: FLECK, Ludwik (2010) Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico:introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Belo Horizonte, Fabrefactum Editora.
5. FLECK, Ludwik (2010) Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico: introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Belo Horizonte, Fabrefactum Editora. •

Fonte: http://www.sbhc.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=772