quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Nelson Vaz - LINGUAGEAR: O MODO DE VIDA QUE NOS TORNOU HUMANOS

Ciência e Cultura

On-line version ISSN 2317-6660

Cienc. Cult. vol.60 no.spe1 São Paulo July 2008

 http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252008000500011&script=sci_arttext


O LINGUAGEAR É O MODO DE VIDA QUE NOS TORNOU HUMANOS

Nelson M. Vaz

FILOGÊNESE OU ONTOGÊNESE Como nada parte do zero, exceto o Big-Bang, como quer a maioria dos cientistas, podemos discutir a gênese da vida humana de muitos pontos de partida, com diversas escalas de tempo, atualidade e complexidade. Se o adjetivo "humano" é o que nos importa mais, podemos nos afastar de problemas sérios como a gênese molecular da vida, a gênese das células, a gênese dos animais na explosão Cambriana, para nos concentrarmos nos últimos 6-8 milhões de anos. Ou podemos decidir que a paleoantropologia está além de nossos limites e não nos determos naquilo que separou o humano do chimpanzé e dos bonobos. Se partirmos do Homo sapiens sapiens já constituído como uma linhagem, poderemos considerar aquilo que, afinal, o distingue de outras linhagens de primatas.
Em resumo, por um lado, temos a opção de considerar problemas evolutivos básicos sobre a origem das diversas linhagens de seres vivos, entre as quais nos incluímos como mais uma linhagem. Incluídos nessa opção estão problemas fundamentais à bioquímica, na genética e na biologia propriamente dita. Por outro lado, temos a opção de discutir o que temos de especial nas origens (na gênese) do ser humano já configurado como linhagem. Mesmo aí, há uma dicotomia: podemos considerar o Homo sapiens sapiens ainda nômade, no pastoreio pré-agrícola, ou tomar como ponto de partida o chamado grande salto para a frente (the great leap forward) que deu origem à cultura, à religião, às artes, à civilização, enfim. Todas essas são preocupações para o lado, digamos, filogênico da gênese da vida humana.
Finalmente, há ainda sua dimensão ontogênica, que levanta um debate com profundo significado ético e muito atual, que Francisco Mauro Salzano discute em detalhe (pp. 57-59 desta edição). No outro extremo da vida humana, aquele próximo a seu fim, há um dilema semelhante em relação às pessoas atingidas por lesões ou enfermidades que as colocam em estados ditos "vegetativos", sem possibilidade de recuperação. Embriões humanos, que ainda não viveram uma vida autônoma, e seres humanos que perderam totalmente sua autonomia ao viver podem ser objeto de considerações éticas semelhantes — embora possa haver casos, dentre os últimos, em que já se tenha optado durante a vida normal sobre o que fazer com o próprio corpo nessas situações.
A meu ver, as discussões sobre a gênese da vida humana dependem da definição de diferenças entre nosso viver como Homo sapiens sapiens, como organismos de primatas com características zoológicas especiais, e nosso viver como pessoas, como seres humanos no conviver com outros seres humanos. De certa forma, Salzano indaga onde colocar um limite ontogênico entre um embrião de H. sapiens e um ser humano em formação. Para isso, é importante explicitar um consenso sobre aquilo que nos caracteriza como seres humanos, como pessoas. Similarmente, no decurso da filogênese, podemos indagar como e por que surgiram os seres humanos com sua conduta característica.
A PERGUNTA ZERO Nenhum de nós tem a pretensão de responder cabalmente à pergunta sobre a gênese da vida humana, uma pergunta que pode ser entendida como a origem das realidades humanas, ou de nosso entendimento sobre o mundo — enfim, a pergunta que muitos vêem como a maior e mais complexa de todas as perguntas, cuja resposta conteria a explicação de quase tudo. Mas, em meu modo de ver, antes dessa pergunta "número um", há uma "pergunta zero", usualmente negligenciada, que, mesmo quando explicitada, não é compreendida ou aceita por muitos. Essa "pergunta zero" será meu fio orientador.
"Como somos capazes de perguntar qualquer coisa?" — ou seja, "como somos capazes de conversar, ouvir, entender e falar a outros seres humanos?" —, um problema intimamente ligado à linguagem e à natureza do ser humano. Como se dá esse nosso experienciar da realidade? O que tem ele em comum com o experienciar de outras realidades por outros seres vivos? Todos concordamos em que uma mosca enxerga; mexemos a mão, e ela voa. Mas, curioso, o que ela vê? O que é ver? Enfim, nossa tarefa poderia tomar o rumo dessas indagações.
Aceitar ou rejeitar essa "pergunta zero" delineia dois caminhos distintos. Posso não aceitá-la e admitir que o "processamento de informações", a consciência e o conversar são propriedades dos seres humanos. Se faço isso, encontro-me imediatamente colocado em um mundo, uma realidade que quero explicar mas, ao mesmo tempo, me sinto alienado, estranho a essa realidade que habito e, se contemplo meu próprio corpo, ele também me parece algo estranho. Por outro lado, se aceito essa "pergunta zero", me encontro com a minha biologia de Homo sapiens sapiens, isto é, vejo a mim mesmo como um primata linguageante que vive a participar de conversas com outros seres humanos. Posso aceitar que, de alguma forma, preciso explicar essa minha conduta com base em minha biologia deHomo sapiens sapiens, de primata, apoiado em minha dinâmica estrutural e relacional como um sistema vivo.
BIOLOGIA DA COGNIÇÃO E DA LINGUAGEM Se aceito e discuto essa "pergunta zero", a discussão se dará em uma arena que é essencialmente biológica, mas levanta preocupações de natureza ética e trata de temas que preocupam filósofos e profissionais de várias outras áreas. Essa é a postura seguida na biologia da cognição e da linguagem (Maturana, 2002; Maturana & Poerksen, 2004), um corpo de conhecimentos originado do pensamento do neurobiólogo chileno Humberto Maturana, que ele assim define:
A biologia da cognição é uma proposta explicativa que tenta mostrar como os processos cognitivos humanos brotam da operação de seres humanos como sistemas vivos. Como tal, a biologia da cognição envolve reflexões orientadas para compreender os sistemas vivos, sua história evolutiva, a linguagem como um fenômeno biológico, a natureza das explicações, e a origem da humanidade. Como uma reflexão sobre como nós fazemos o que fazemos como observadores, ela é um estudo na epistemologia do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, como uma reflexão sobre como nós existimos na linguagem como seres linguageantes, ela é um estudo em relações humanas (Maturana, 1997).
Maturana é também conhecido como o autor da teoria da autopoiese, mas esta é de certo modo enganadora. A noção de autopoiese (autocriação/manutenção) é central, mas por si mesma insuficiente para expressar as propostas da biologia da cognição e da linguagem e não deve ser entendida como um princípio explicativo:
A autopoiese, a organização autopoiética, em meu modo de ver, como a concebo, é a organização de uma classe de sistemas que satisfazem esta organização. Não é mais que isso. Os sistemas vivos são sistemas autopoiéticos no espaço molecular, i.e., sistemas autopoiéticos cujos componentes são moléculas, nos quais as produções são produções moleculares […]. Nesta maneira de ver, não vejo a autopoiese como um paradigma explicativo para os sistemas (em geral), mas sim como a caracterização de uma certa classe de sistemas, que são exatamente isto: sistemas caracterizados por sua organização autopoiética. Você me pede um paradigma explicativo. Para mim, um paradigma explicativo é o das explicações científicas, no sentido pelo qual entendo paradigmas explicativos como procedimentos capazes de gerar explicações. Portanto, não considero a autopoiese como um paradigma explicativo (Maturana, 1997).
Uma das frases famosas atribuídas a Albert Einstein diz que: "O mais incompreensível a respeito do Universo é que ele seja compreensível". Maturana, por sua vez, diz que o Universo não existiria se não fosse compreensível; na verdade, ele não fala do Universo, mas sim de multiversa, de múltiplas realidades em que podemos estar imersos em nosso viver humano. Ele diz que seu objetivo não é explicar "o que é a realidade", mas sim explicar como fazemos o que fazemos e que a "pergunta zero" é: "Explicar o observador em seu observar". Outro pensador importante do século XX, Heinz von Foerster, é conhecido como o criador da "cibernética de segunda ordem", ou seja, aquela que inclui o observador na observação. Maturana diz que isso é um adiamento do problema, pois, para caracterizar o observador na observação, é necessário invocar um meta-observador colocado em um meta-meio, que por sua vez também requer um meta-meta-observador, e isso cria uma regressão infinita. É necessário, portanto, darmos conta do que se passa conosco, humanos, quando observamos, isto é, fazemos distinções de objetos e fenômenos enquanto participamos do linguagear com outros seres humanos (Maturana & Mpodozis, 1987). Ou, em termos mais gerais: "Como experienciamos a realidade humana?".
Perguntas desse tipo, em geral, são encaradas como pertinentes à neurobiologia, ao estudo do sistema nervoso e, mais particularmente, do cérebro e da consciência humana. Mas é evidente que experienciar realidades não se restringe a seres humanos ou a animais dotados de um sistema nervoso; plantas e seres unicelulares também exibem condutas que, evidentemente, são "cognitivas", ou seja, expressam como ações efetivas alguma forma do conhecer. Maturana afirma que um protozoário tem um "sistema nervoso" molecular, não-neuronal, com o qual ele se mantém em congruência com suas circunstâncias (conserva sua "adaptação"). Enfim, temos um espaço no qual podemos discutir "as bases biológicas do conhecer" — encarado como o desempenho de ações efetivas. Ou seja, um ser vivo "sabe" continuar vivo; nós, como seres humanos, dotados desses organismos de Homo sapiens sapiens, sabemos conversar.
Assim como Gregory Bateson (1973), Maturana não está em busca de "princípios explicativos" (Maturana, 1987) e se detém em explicitar a natureza das explicações, em geral, e daquilo que caracteriza as explicações científicas (Maturana, 1990). Um aspecto peculiar em sua abordagem é a descrição de sistemas "fechados" em sua organização, dos quais os sistemas vivos, como sistemas autopoiéticos, são apenas um exemplo. Para ele, o sistema nervoso é uma rede neuronal fechada, na qual estados relativos de atividade neuronal podem apenas conduzir a outros estados relativos de atividade neuronal. Ele assim descreve um rádio como um sistema "fechado" em si mesmo:
Considere um rádio portátil. É um sistema fechado no fluir da eletricidade. A antena não traz a corrente elétrica. A antena encontra ondas eletromagnéticas (um domínio), estas afetam o fluir da eletricidade (um domínio diferente) e isto produz um som (um terceiro domínio). O rádio não recebe corrente elétrica da antena. A corrente elétrica não é um input. Nada externo penetra no rádio (comunicação pessoal ao autor).
Na obra de Maturana "viver, como um processo, é um processo cognitivo" e descrever como um ser vivo conhece equivale a identificar quais são as ações eficazes que ele desempenha, segundo o ponto de vista de um observador humano. Uma aranha conhece várias coisas: sabe fazer uma teia, sabe achar um parceiro sexual, sabe fugir de predadores, andar pelo chão da floresta… sabe, enfim, "aranhar". Então, o conhecer, nesse modo de ver, é o conjunto de ações efetivas. Por isso, discutir a origem da vida — e da vida humana, em particular — implica descrever as ações que constituem o conhecer. Essa preocupação está explícita no título de um livro recente: Do ser ao fazer (Maturana & Poerksen, 2004). Para Maturana (1985), "a mente não está na cabeça: a mente está na conduta".
E, se vamos falar da vida humana, se vamos enfatizar esse ponto, temos de adentrar a filogênese, quando aparecem condutas e características que vamos chamar de, efetivamente, humanas. Os chimpanzés e os bonobos são nossos primos mais próximos, e a grande pergunta seria: "o que aconteceu nesses 4 a 6 milhões de anos atrás, durante os quais nós nos transformamos em primatas que conversam, que falam uns com os outros, enquanto os chimpanzés não fazem isso?". Porque é desse conversar, é a partir dessa coordenação de condutas consensuais que nós transformamos o planeta da maneira que transformamos e criamos a cultura humana; primeiro a agricultura, depois cidades, e agora somos assim, como uma doença de pele em volta de todo o planeta.
Como seres humanos, vivemos imersos em um fluir incessante de ações que Maturana chama de "linguagear". A linguagem é usualmente entendida como a transmissão de informação simbólica. Mas, em seu trabalho, Maturana deixa o conceito de informaçãocompletamente de fora; diz que os símbolos são secundários ao ato de linguagear, que é essa coordenação de condutas. Então, o linguagear é um modo de viver caracteristicamente humano, no qual somos imersos desde crianças. Em nossa educação, aprendemos e nos transformamos nessa coordenação de condutas com outros seres humanos. Eu consigo, eventualmente, coordenar condutas e coordenar coordenações de condutas com o meu cachorro. Mas o meu cão não vive em coordenação de condutas; ele não vive na linguagem; ele não linguageia com outros cães. Mas eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora, continuamente. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desse tipo de atividade.
Somos imersos nesse linguagear desde crianças. Em nossa educação, aprendemos, nos transformamos durante essa coordenação de condutas com outros seres humanos. E eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desta atividade: o conversar. Então, a "gênese da vida humana", para mim, é a gênese do conversar. O conversar é uma fusão do linguagear — que é essa coordenação de coordenação de condutas —, com o emocionar. As emoções são estados do corpo. Chego em casa depois de um engarrafamento de uma hora e meia gritando com o cachorro, empurrando a cadeira e minha mulher diz: "Você nem me beijou?". Eu respondo: "Ah, eu vou me mudar dessa cidade" —, porque nesse estado emocional eu não consigo beijar ninguém.Quer dizer, as emoções são estados do corpo que delimitam os domínios de ação. Então, ao coordenar condutas com outros seres humanos, eu gero emoções, vivo emoções, e vou nessa cadeia de coordenações com emoções. E vou conversando. E quem não conversa não é humano. Isso lembra um pouco o Abelardo Chacrinha, não é? — que dizia: "Quem não se comunica, se estrumbica". Mas, para Maturana, a comunicação não existe; o que existe é essa coordenação de condutas. E, se não houver um acoplamento estrutural entre os parceiros, não acontece nada.
Como se situam essas afirmações em relação aos grandes campos da pesquisa biológica, tais como a genética e a teoria evolutiva?
A GENÉTICA A genética sempre foi importante na discussão das questões biológicas mais profundas, desde que a semente e o ovo são objetos tentadores como possibilidades de estudar o viver, nos quais o viver parece condensado em uma essência. Ultimamente, a genética molecular e a genômica alcançaram uma grande proeminência na biologia, graças a experimentos possibilitados pela metodologia de análise e manipulação de ácidos nucleicos. O projeto Genoma Humano, que pode ser considerado um marco na biologia, levantou uma grande coleção de novas perguntas e teve um aspecto frustrante por não revelar nada espetacular, ou particular, em relação à natureza humana (Keller, 2002).
A grande importância da genética se traduz na composição do painel de cientistas reunidos pela SBPC para discutir "A gênese da vida humana": dos seis cientistas presentes, dois são geneticistas conhecidos (Antonio Cordeiro e Francisco Salzano) e um terceiro, bioquímico (Hernan Chaimovich), estuda soluções coloidais e a importância de ácidos nucleicos na origem da vida. Dos três cientistas restantes, dois estão ligados a temas biomé­dicos: um é microbiologista (Isaac Roitman), e eu mesmo (Nelson Vaz) sou imunologista. O cientista restante, um físico, presentemente estuda a teologia e a ciência das religiões (Eduardo da Cruz). Então, é natural que uma parte significativa dos temas abordados durante nossa discussão envolva problemas genéticos. No entanto, a perspectiva genética se modificou tanto nos últimos anos que o próprio significado do termo "gene" foi posto em discussão (Keller, 2002). Trata-se, portanto, de entender os problemas genéticos por novos enfoques.
No âmbito da biologia da cognição e da linguagem, Maturana fala de um "genótipo total", que inclui muito mais que o DNA; diz que tudo o que se passa no ser vivo precisa ser permitido pelo genótipo, mas argumenta que: "o genótipo determina apenas a possibilidade inicial"; todo o resto é determinado (especificado, orientado, guiado) pela maneira de viver, por uma dinâmica de um "fenótipo ontogênico" em um "nicho ontogênico" (Maturana & Mpodozis, 2000).
A EVOLUÇÃO A discussão sobre a gênese da vida humana está também muito relacionada à teoria da evolução, uma área que atravessa um período de intenso interesse. Devemos a Darwin dois importantes apercebimentos: primeiro, que todos os seres vivos estão relacionados por uma descendência comum (propinquity of descent); segundo, que uma explicação inicial para o surgimento dos seres vivos que encontramos atualmente adaptados aos mais diferentes meios é o processo que ele denominou seleção natural. Em meados do século XX, um grupo de cientistas de diversas áreas, variando da genética de populações à paleontologia (T. Dobzhansky, E. Mayr, G. Gaylord Simpson e G. L. Stebbins), acrescentou muitos aspectos às idéias de Darwin, criando o neo-darwinismo, ou teoria sintética da evolução, um conjunto de postulados que, de certa forma, representa o esqueleto central do pensamento biológico contemporâneo tradicional.
Muitos pesquisadores ressaltam que algo que a teoria sintética deixou flagrantemente de fora foi a biologia do desenvolvimento e sua subdisciplina, a embriologia, que prosseguiram como disciplinas isoladas, até que nos anos 1990 surgiu o campo hoje denominado "evo-devo" (evolutionary developmental biology), impulsionado pela nova metodologia desenvolvida na genética molecular, mas buscando resultados mais amplos que os anteriormente contemplados. Os pesquisadores em "evo-devo" se notabilizaram por enfrentar problemas como os da origem de estruturas biológicas complexas, como olhos, asas, corações e cérebros.
Esse grande progresso na "evo-devo" teve como contrapartida o recrudescimento de movimentos antievolucionistas, apoiados em crenças religiosas ou místicas (o criacionismo). Massimo Pigliucci (2001) afirma não compreender
porque a existência de fenômenos naturais que são atualmente difíceis de explicar, por um lado, reforçam a opinião de que "há algo errado com a teoria" (como querem os criacionistas que defendem o "intelligent design" e, por outro lado, tornam vocais os defensores da teoria sintética, que insistem em que "não há nada errado e tudo já foi explicado". Por sua própria natureza, a ciência lida com coisas e fenômenos para os quais nós não dispomos de explicações.
Ou seja, devemos admitir que há problemas para os quais não temos explicações, mas que isso não nos obriga a aceitar uma solução transcendente (divina ou extraterrestre) para os mesmos.
Nosso problema não é o de um "projeto inteligente", mas sim um processo inteligível. A nova maneira de formular a problemática biológica, que enfatiza a flexibilidade somática, tem sido amplamente descrita em livros recentes (Pigliucci, 2001; West Eberhard, 2003; Kirschner & Gehart, 2005; Jablonka & Lamb, 2005; Pigliucci & Kaplan, 2006; entre muitos outros).
Antes do surgimento do "evo-devo", a teoria evolutiva tinha deficiências mais sérias, tais como um exagero sobre a importância de genes individuais como unidades determinantes do desenvolvimento, além de crenças incorretas, como a que ficou conhecida como "lei biogenética" de Haeckel, hoje rejeitada pela maioria dos biólogos. Exagerando semelhanças entre embriões de espécies animais diferentes durante o chamado "estágio filotípico", Haeckel propôs que "a ontogênese recapitula a filogênese", afirmando, por exemplo, que um embrião humano atravessa o desenvolvimento de outros animais, que tem guelras de peixes e exibe uma cauda. Na realidade, houve uma confusão entre o que foi proposto por Von Baer, ao estabelecer aspectos comuns em formas de embriões de uma dada classe, enquanto Haeckel propôs que organismos de surgimento mais recente na evolução passavam por estágios em que se assemelhavam ao estágio adulto de organismos mais primitivos. Darwin apoiava a visão de Von Baer, mas sua opinião foi eclipsada pela interpretação de Haeckel1. Maturana diverge radicalmente de todos os biólogos em sua interpretação do processo evolutivo, que ele define como uma deriva natural. Juntamente com Mpodozis, ele propõe que a seleção natural pode ser legitimamente encarada como o resultado do processo evolutivo, mas não como seu mecanismo (Maturana & Mpodozis, 2000). Mas esta é uma outra história.

Nelson M. Vaz é professor-titular aposentado do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG). É membro da Academia Brasileira de Ciências, sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Imunologia e membro honorário da Sociedade Portuguesa de Imunologia.


NOTAS
1. Haeckel tinha opiniões ainda mais radicais, precursoras do nazismo. Ele propunha, por exemplo, que: "As raças inferiores estão fisiologicamente mais próximas dos mamíferos — macacos e cães — que dos europeus civilizados. Devemos, portanto, atribuir um valor totalmente diferente às suas vidas" e "Ele (Jesus) é geralmente considerado como sendo puramente judeu. Porém, as características que distinguem Sua personalidade elevada e nobre, que conferem uma impressão distinta à sua religião, certamente não são judias. São aspectos da raça ariana superior" (Haeckel apud Gilbert, 2001).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATESON, G. 1973. Steps to an ecology of mind. Nova York: Ballantine Books.
GILBERT, Scott. 2001. Teaching evolution through development. 61st Annual Meeting of the Society for Developmental Biology. Madison, Wisconsin.
JABLONKA, E. & LAMB, M. J. 2005. Evolution in four dimensionsGenetic, epigenetic, behavioral and symbolic variation in the history of life. Cambridge: MIT Press.
KELLER, Evelyn Fox. 2002. O século do gene. Tradução de Nelson M. Vaz. Belo Horizonte: Crisálida.
KIRSCHNER, M. W. & GERHART, J. C. 2005. The plausibility of life: resolving Darwin’s dilemma. New Haven: Yale University Press.
MATURANA, H. R. 1985. "The mind is not in the head". J. Social Biol. Struct. 8, pp. 308-311.
____. 1987. "Everything is said by an observer". In Gaia: a way of knowing. Political implications of the new biology. Edição de W. I. Thompson. New York: Lindisfarne Press.
____. 1990. "Science and daily life: the ontology of scientific explanations". In Self-organization: portrait of a scientific revolution. Edição de W. Krohn, G. Kuppers e H. Nowotny. Dordrecht: Kluwer Academic.
____. 1997. "Autopoiese: núcleo duro e cinturón protector hace mucho, muchíssimo, tiempo". Entrevista realizada por Victor Bronstein e Alejandro Piscitelli, Buenos Aires [disponível em www.matriztica.org].
____. 2002. "Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition". Cybernetics & Human Knowing 9 (3-4), pp. 5-34 [pdf disponível por meio de maturana@matriztica.org].
MATURANA, H. R. & MPODOZIS, J. 1987. "Perception: behavioral configuration of the object".Arch. Biol. Med. Exp. (Santiago) 20 (3-4), pp. 319-324.
____. 2000. "The origin of species by means of natural drift". Revista Chilena de Historia Natural, 73, pp. 261-310 .
MATURANA, H. & B. POERKSEN. 2004. From being to doing: the origins of biology of cognition. Heidelberg: Carl-Auer.
PIGLIUCCI, M. 2004. Phenotypic evolution, beyond nature and nurture (syntheses in ecology and evolution). Baltimore: The John Hopkins University Press.
____. 2006. "Have we solved Darwin’s dilemma?". American Scientist, 94 (3), pp. 272-273.
PIGLIUCCI, M. & KAPLAN, J. 2006. Making sense of evolution: the conceptual foundations of evolutionary biology. Chicago: University of Chicago Press.
WEST EBERHARD, M. J. 2003. Developmental plasticity and evolution. Oxford: Oxford University Press.

Maturana - A escuta do Outro através da (Objetividade) -com parênteses-

Maturana (2001) escreve sobre experiências das ilusões e das percepções. Na vida cotidiana e na experiência humana não podemos distinguir entre a ilusão e a percepção.

Segundo Maturana (2001), quando “sentimos” que nosso trem está partindo, na verdade estamos parados e o trem no trilho ao lado é que está em movimento. “Essa é a deliciosa ilusão de que partimos quando ainda não partimos.” (MATURANA, 2001, p. 25). Na reflexão se reconhece que explicar o erro e a ilusão exige uma referência em um determinado ambiente.

Para Maturana (2001), as explicações do conhecer implicam o conhecedor, que é o ser humano. Ele alerta que explicar é uma operação distinta da experiência que se quer explicar, ou seja, uma coisa é a experiência e outra é a explicação da experiência. O fato é que, na experiência, não vemos o que vemos. O explicar é sempre uma reformulação da experiência que se explica, mas nem toda reformulação da experiência é uma explicação. Uma explicação é uma reformulação da experiência aceita por um observador. A explicação tem a ver com aquele que aceita a explicação como reformulação da experiência.

De acordo com Maturana (2001) há dois modos fundamentais de aceitar reformulações da experiência, que ele chama de caminhos da objetividade. A objetividade entre parênteses e a objetividade sem parênteses. No caminho explicativo da objetividade sem parênteses se assume explícita ou implicitamente que é possível distinguir entre ilusão e percepção, porque se admite referência a algo, independente do observador. Os modos de vida do ser humano, bem como as ações e emoções podem ser entendidas a partir da objetividade sem parênteses ou da objetividade entre parênteses. As observações realizadas sob a lógica da objetividade sem parênteses exigem um observar das coisas e dos fenômenos como se apresentam. No observar, tendo como referência o contexto da objetividade sem parênteses, “[...] meu escutar no explicar é um escutar fazendo referência a entes que existem independente de mim – matéria, energia, consciência, Deus.” (MATURANA, 2001, p. 34). No caminho da objetividade sem parênteses o outro, a realidade, os fenômenos são concebidos como estranhos e existentes em domínios de realidades diferentes do observador. 

Segundo Maturana (2001), os processos cognitivos e as experiências do explicar se encontram correlacionados aos fenômenos do vivo, em correlação com o mundo em que vive. As explicações, observações e aceitações do explicar ocorrem como legítimas na corporeidade e não exclusivamente na razão. É na dimensão biológica que ocorre o explicar e o observar. No caminho explicativo da objetividade sem parênteses a pergunta pela origem biológica da cognição não aparece. Nesse caminho explicativo, toda verdade objetiva é universal e válida para qualquer observador, porque independe do que ele faz. São as realidades, os dados, as medições, a objetividade que validam o dizer.  

Por outro lado, para Maturana (2001), a objetividade entre parênteses constitui o caminho explicativo que não se prende a uma verdade absoluta, ou a um acesso privilegiado. Nele se aceitam inúmeras verdades e diversas realidades conforme os diferentes domínios que envolvem o explicar e o observador. Nesse sentido, o ser humano, em sua dimensão biológica, não pode distinguir entre ilusão e percepção. No caminho da objetividade entre parênteses, o observador encontra verdades diferentes, ou seja, o mundo e a realidade não falam por si sós. O ser humano não pode ser entendido como estando fora do universo, somos nós, os seres humanos que falamos a respeito do mundo natural. Não se trata de negar que vivemos em um mundo de objetos, mas de reconhecer que tal mundo vai se constituindo na interação do viver do observador nas linguagens e nas culturas.


Para Maturana (2001, p. 38):
[...] a realidade é sempre um argumento explicativo. Disso podemos nos dar conta agora. Na objetividade entre parênteses há tantas realidades quantos domínios explicativos, todas legitimas. Elas não são formas diferentes da mesma realidade, não são visões distintas da mesma realidade. Não! Há tantas realidades – todas diferentes, mas igualmente legítimas – quanto domínios de coerência operacional explicativa, quantos modos de reformular a experiência, quantos domínios cognitivos pudermos trazer à mão.

Para Maturana (2001), no caminho da objetividade sem parênteses “toda afirmação cognitiva é uma petição de obediência.” (MATURANA, 2001, p. 36). No caminho explicativo de objetividade sem parênteses, o explicador não é responsável pela validade do que diz por que a realidade é independente dele. A negação do outro é responsabilidade desse outro, já que “O outro se nega a si mesmo.” (MATURANA, 2001, p. 38). Porém, no caminho explicativo da objetividade entre parênteses, o outro pode estar em um domínio de realidade diferente daquele do explicador, igualmente válido, ainda que não lhe agrade. O outro pode, então, ser negado não porque esteja equivocado, mas porque está em um domínio de realidade que não agrada ao primeiro. 

Maturana (2001) considera que as relações com o outro implicam a aceitação do outro como legítimo na convivência, em que as relações fundadas na negação, na obediência, no preconceito, não são consideradas relação social. As formas de proceder negam a condição biológica de seres dependentes do amar e, assim, negam o outro como legítimo na relação social.

Quando ocorre a negação do outro, como legítimo na relação social, estamos em relação de competição. No entanto, a formação humana se constrói em uma história de convivência, de forma que a maneira como vivemos caracteriza o modo como nos formamos ao longo de nosso existir.

Assim, a aceitação do outro como legítimo na relação constitui uma garantia de que o outro irá aceitar a si mesmo, se respeitar, aceitar e respeitar o outro.




Fonte:

PRÁTICAS EDUCATIVAS QUE PERMEIAM A FORMAÇÃO HUMANA - pag 23
http://www.unoesc.edu.br/images/uploads/mestrado/Rosane_Rosalen.pdf

AUTOPOIESIS: an introduction — implications and applications

“Em meu comentário reflito sobre questões conceituais e epistemológicas. Em particular, questiono a ideia de tentar definir os sistemas sociais. Também imagino se em muitos casos o conceito de autopoiese é usado sem cuidado como um mero sinônimo de auto­organização.”
- Humberto Maturana 
em
"Entendendo os sistemas sociais?"
Publicado em Março de 2014 em Constructivist Foundations
(http://www.univie.ac.at/constructivism/journal/9/2/187.maturana)
Tradução de Vitor Pordeus e Nelson Vaz.
http://imanentemente.blogspot.ca/2014/04/entendendo­os­sistemas­sociais­de.html


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Autopoiesis: The organization of living systems, its characterization and a model

F.G. Varela, H.R. Maturana, R. Uribe
Facultad de Sciencias e Departamenta de Electricidad, University of Chile, Santiago, Chile

Volume 5, Issue 4, May 1974, Pages 187–196

Available online 30 September 2003

http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0303264774900318

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Social Autopoiesis?


Hugo Urrestarazu 
EA Principals Inc.

March 15, 2014

Constructivist Foundations Journal, Volume 9, Number 2, Pages 153–166 

Abstract:      
> Context • In previous papers, I suggested six rules proposed by Varela, Maturana and Uribe as a validation test to assess the autopoietic nature of a complex dynamic system. Identifying possible non-biological autopoietic systems is harder than merely assessing self-organization, existence of embodied boundaries and some observable autonomous behavioural capabilities: any rigorous assessment should include a close observation of the “intra-boundaries” phenomenology in terms of components’ self-production, their spatial distribution and the temporal occurrence of interaction events. 

> Problem • Under which physical and components’ relational conditions can some social systems be properly considered as autopoietic unities compliant with the six rules? 

> Results • Dynamic systems can be classified according to “degrees of autonomous behaviour” that they may acquire as a result of the emergence of organizational closure (i.e., autonomy). Also, the different “degrees of attainable systemic autonomy” depend on the “degrees of autonomy” shown by a system’s dynamic components. For human social systems, a necessary balance between individuals’ autonomy and the heteronomous behaviour brought about on people by social norms (laws, culture, tradition or coercion) sets limits to the “degree of systemic autonomy” that human organizations may acquire. Therefore social systems, defined as dynamic systems composed of physical agents, could not attain the high “levels of systemic autonomy” ascribable to autopoietic systems without constraining the autonomy of agents to “levels” that are incompatible with spontaneous human behaviour. Also, social organizations seen as composed of physical agents interacting in physical space cannot be construed as autopoietic systems. Alternatively, if seen as composed of “process-like” entities, where agents participate as actors within processes, some social systems could be described as autopoietic wholes existing in the abstract space in which we distinguish interactions between processes, provided that we can assess compliance with the rules for some specific cases.

> Implications • These conclusions contribute to the debate on the possible autopoietic nature of some human social systems and to grasping the opportunity to shift focus to the more interesting issue of the “degrees of systemic autonomy” that human organizations could acquire (if needed) without imposing unbearable limitations on the autonomy of human actors. Also, the conceptual framework of this explanatory approach could be used in practical terms to assist the development of new dynamic modelling languages capable of simulating social systems.

Keywords: Autopoiesis, autonomy, heteronomy, self-organization, social system, organizational closure, causation, Maturana, Varela, Luhmann

http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2486900

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An introduction to autopoiesis—Implications and applicationsJohn Mingers

Abstract

Maturana and Varela have developed a theory to explain the particular character of living systems. Such systems, they claim, have an “autopoietic,” or self-producing, organization. This term is now used widely, although often without a proper understanding of the detail of the theory. Moreover, the concept has been applied to other systems, such as societies and institutions, in a rather naïve manner. It is a very important theory, with far-reaching consequences both for science and for social intervention, but it must be correctly appreciated and applied. The aim of this paper is to aid that process by, first, elucidating the theoretical ideas and, second, critically evaluating its implications and applications.

Key words
autopoiesis organization information social systems

http://link.springer.com/article/10.1007/BF01059497
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The philosophical implications of Maturana's cognitive theoriesJohn Mingers

Abstract

Maturana and Varela have developed important theories about living systems (autopoiesis) and also about the brain/nervous system and cognition. These theories have strongly subjectivist implications leading to the view that our explanations and descriptions reflect the structure of the subject, rather than that of an objective world, and that we therefore construct the world which we experience. This paper analyzes Maturana's ideas in terms of the main philosophical traditions — empiricism, idealism, and realism — showing that they are a blend of both realist and antirealist positions. It then provides a critique of Maturana's radical subjectivism and argues that his theory is best seen as compatible with critical realism.

Key wordsautopoiesis cognition epistemology ontology critical realism

http://link.springer.com/article/10.1007/BF01059640
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THE PROBLEMS OF SOCIAL AUTOPOIESIS
JOHN MINGERS 
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03081079208945073
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Can Social Systems be Autopoietic? Bhaskar's and Giddens’ Social Theories

JOHN MINGERS

http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-5914.2004.00256.x/abstract?userIsAuthenticated=false&deniedAccessCustomisedMessage=

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Primeiramente, são necessárias breves palavras introdutórias sobre a autopoiese, uma vez que percebo não ser bastante conhecida e difundida no meio acadêmico, e mesmo nos meios mais profissionais, a teoria autopoiética.
Surge, em meados da década de 70, uma concepção biológica que tenta explicar o fenômeno da vida, o mistério da força vital. Dois pesquisadores chilenos, Humberto Maturana eFrancisco Varela (em "De maquinas y seres vivos", Santiago, 1973), desenvolveram a chamada teoria autopoiética para dar solução à tal mistério. Nas palavras dos próprios autores, "a autopoiese no espaço físico constitui a condição última, necessária e suficiente da própria vida" (1). Explicou-se que o fenômeno da vida se dá através da autonomia e de relações dadas entre os diversos elementos de um sistema, no caso específico, biológico. O corpo sistêmico em que essas relações são desenvolvidas é dotada de uma organização formada da estrutura de seus elementos. E esse sistema é clausuramente fechado, realizado em um meio próprio (espécie de ambiente), donde se realiza o processo de (re)produção de seus elementos, mantendo-se toda a organização, mesmo que a estrutura não seja a mesma (2). Esse fechamento do sistema ao meio e produção do seus próprios elementos constituintes é visto, pelos chilenos, como uma autoprodução (autós - por si próprio; poiesis - criação, produção) (3).
Já no início da década de 80, a idéia dos sistemas autopoiéticos da biologia chega às ciências sociais, tendo destaque os trabalhos de Peter HejlStafford Beer e, principalmente, do sociólogo alemão Niklas Luhmann. Sobre a teoria sistêmica, segue as palavras de Willis Filho (1991, p. 185):
"A teoria sistêmica, como se vê, é dotada de uma universalidade(...). A essa universalidade se associa uma outras característica sua, que ao mesmo tempo é um dos conceitos básicos por ela empregados: a reflexividade. Por pretender uma universalidade, de tudo poder explicar, a teoria de sistemas há de, por si mesma, explicar a si própria. Isso a confere uma terceira característica, que é também atribuída aos sistemas por ela estudados: a auto-referência."
Especificamente sobre a idéia de sociedade enquanto sistema autopoiético, Luhmann entende que os elementos que compõem a estrutura desse sistema e que se relacionam entre si, principalmente em caráter autoprodutivo, são comunicações. Essas comunicações, então, servem-se de um processo circular e interativo (abandona-se na teoria autopoiética a idéia de hierarquia), onde cada elemento mantém uma relação com um outro, dotando esse sistema, pois, de organização (autopoiética).
Mas foi percebido que um modelo desse tipo seria extremamente complexo ao se tentar explicar, em seu contexto, que áreas do conhecimento como a política, o direito e a economia, entre outros, fossem elementos simples, sendo assim, atos comunicativos. Então se parte para uma nova concepção com relação à esses componentes (política, direito etc.), epistemologicamente falando, a situação em um nível diferente. Para tal, vejamos as palavras de José Engrácia Antunes, no prefácio da edição portuguesa da obra de Gunther Teubner, "O direito como sistema autopoiético" (4) (1993, p. XIII):
"...a Sociedade aparece concebida como um sistema autopoiético de comunicação, ou seja, um sistema caracterizado pela organização auto-reprodutiva e circular de actos de comunicação. Ora LUHMANN sustenta que a partir desse circuito comunicativo geral e no seio do sistema social, novos e específicos circuitos comunicativos se vão gerando e desenvolvendo: logo que estes circuitos emergentes atinjam um determinado grau de complexidade e perficiência na sua própria organização auto-reprodutiva - o que pressupõe a emergência de um código binário específico que guie as operações auto-reprodutivas sistémicas -, eles autonomizam-se do sistema social geral, originandosubsistemas sociais autopoiéticos de segundo grau. Assim, por exemplo, o sistema jurídico tornou-se num subsistema social funcionalmente diferenciado graças ao desenvolvimento de um código binário próprio ("legal/ilegal") (5): é esse código que, operando como centro de gravidade de uma rede circular e fechada de operações sistémicas, assegura justamente a originária auto-reprodução recursiva de seus elementos básicos e a sua autonomia em face dos restantes subsistemas sociais..."
Assim visto, teríamos que o direito enquadra-se na teoria social (sistêmica) autopoiética como um subsistema de segundo grau, de autonomia em relação aos outros subsistemas garantida pelo desenvolvimento de um código binário "lícito/ilícito" (6). Isso, notoriamente, amplia a autonomia do sistema jurídico em relação aos diversos subsistemas de segundo grau, mas o limita dentro do meio do sistema social.
É aqui que surge um dos problemas mais grave da adoção de um modelo sistêmico autopoiético para o direito: como conciliar a relação do direito com outros sistemas, como o político, o econômico e o ético, sabendo que um sistema autopoiético é dotado de clausura organizacional? Como conciliar uma teoria autopoiética do direito com o seu fim de justiça? Marcelo Neves (1994, p. 122) traz que a "autonomia do sistema não é, então, nada mais do que o operar conforme o próprio código (...), a ‘auto-aplicação do código ao código’ (...) implica (...) imobilidade do sistema jurídico, na medida em que a capacidade de conexão da reprodução autopoiética é, dessa maneira, bloqueada." Isso implica em que Luhmann adota uma certa "visão positivista" do direito, enquanto sistema autônomo enclausurado. O doutor professor pernambucano continua (1994, p. 122):
"Pressuposto que à positividade do Direito é inerente não apenas a supressão da determinação imediata do Direito pelos interesses, vontades e critérios políticos dos ‘donos do poder’, mas também a neutralização moral do sistema jurídico, torna-se irrelevante para Luhmann uma teoria da justiça como critério exterior ou superior do sistema jurídico: ‘Todos os valores que circulam no discurso geral da sociedade são, após a diferenciação de um sistema jurídico, ou juridicamente irrelevantes, ou valor próprio do Direito’..."
Assim sendo, parece-me que Luhmann consegue resolver o problema da fundamentação da "norma hipotética fundamental" de Kelsen (7), uma vez que a vigência do código "lícito/ilícito" independe dessa norma, o mesmo se aplicando à "norma de reconhecimento" de Hart.
Também, como dito anteriormente, não se classifica hierarquicamente os elementos do sistema jurídico, como o fazem os positivistas (principalmente normativistas), já que as relações que se dão, no caso, entre as normas não seria relações imperativas, melhor, hierárquicas. Segundo a teoria autopoiética, essas relações são circulares e fechadas, fazendo-se desse ciclo uma auto(re)produção dos elementos devido à sua organização, autonomia e auto-referencialidade.
O problema de se conseguir manter uma teoria da justiça como anterior ao Direito, positivo e autopoiético, mostra-se enquanto enfocarmos a utilização do direito não apenas no sistema jurídico, mas principalmente também no sistema social.
Não podemos esquecer que a (auto)produção do subsistema jurídico, enquanto esse é parte do sistema social geral e maior, também é uma produção desse próprio sistema social. E assim como a autopoiese realizada nos diversos subsistemas de segundo grau são, conseqüentemente, autopoiese do sistema social de primeiro grau. Verificando que há nesse sistema social geral uma diversidade de subsistemas autônomos entre si, mas elementos do sistema de primeiro grau, o que cada subsistema produz interferirá na órbita dos outros somente enquanto interferência no meio do sistema de primeiro grau.
Assim, nenhum subsistema interferirá diretamente no outro, mas suas interferências ocorrerão enquanto observadas do meio do sistema social. É nesse sistema, de primeiro grau, que se pode pensar em "interferência subsistêmica", não de forma direta, mas de forma eficaz; apontando uma possível solução para a idéia lógica de que o direito necessita de um fim social, justo e humanista. Pode-se pensar, então, em ideais democráticos (auto)produzidos no subsistema político em conjunto com uma visão autopoiética do direito.
Do contrário, teremos, ao meu ver, um sistema autônomo jurídico sem fundamentação, o que me parece irracional, do ponto de vista filosófico. Da mesma forma, seria encerrada a eterna busca da "essência do direito", já que segundo uma teoria (autopoiética) desprovida de fundamentação sistêmica, seria irrelevante esse fator. Dando ao sistema jurídico uma clausura sistêmica, em que seu aspecto autônomo seria utilizado apenas em função de uma autopoiese dos seus elementos, o direito seria realmente visto como uma máquina. E penso que essa visão deve ser transferida para o sistema social, onde o processo de realização autopoiética se concretiza de forma absoluta.
Desprover o direito de fundamento é caminhar no sentido de uma "abertura" à justificação de regimes autoritários. É o mesmo problema da "norma hipotética fundamental" desprovida de conteúdo. E é exatamente por isso que me parece, mesmo frente à minha inexperiência científica, que não se deve conceber um tal sistema jurídico.
O eminente professor Willis Santiago Guerra Filho, nos agradecimentos de seu compêndio sobre esse assunto (1997, p. 5) fala que tal obra "testemunha a superação de preconceitos do autor em relação à teoria que constitui seu objeto..." Caso esteja eu cometendo preconceitos, espero um dia me redimir dos tais.

NOTAS
  1.  MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. "Autopoiesis and cognition: the realization of the Living". Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1980. cit., XVII.
  2.  GUERRA FILHO, Willis S. "O direito como sistema autopoiético", in: Revista Brasileira de Filosofia, n.º. 163, S. Paulo, 1991 pp. 185-196.
  3.  NEVES, Marcelo C. P. A Constitucionalização Simbólica, S. Paulo: Acadêmica, 1994 p. 113.
  4.  TEUBNER, Gunther. "O direito como sistema autopoiético", Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1993. 357p.
  5.  Com relação ao código binário "legal/ilegal", em opinião particular, e de acordo com os doutrinadores brasileiros da teoria autopoiética do direito (NEVES, 1994; GUERRA FILHO, Willis S. "Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna". Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 1997), considero de melhor procedência ético-epistemológica a concepção desse código enquanto as alternativas variam entre "lícito" e "ilícito"; uma vez considerado que a obra pesquisada e sua tradução é de origem portuguesa.
  6.  Sobre o código binário caracterizador da autonomia autopoiética do subsistema jurídico, ver nota anterior.
  7.  KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 3. Ed. bras. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 371p.

Fonte: http://jus.com.br/artigos/27/o-problema-da-justica-numa-visao-autopoietica-do-direito

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A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado

Neurociências e Psicanálise

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Sigmund Freud , mais conhecido como criador da psicanalise, passou muitos anos de sua vida em laboratórios experimentais, facinado com idéias darwinistas e fazendo pesquisa neurológica básica, em épocas em que não se conhecia propriamente o neurônio.
No entanto Freud, exímio médico clínico, craque em diagnósticos neurológicos mas descontente com o futuro de sua vida profissional, desenvolve um novo método para tratamento das neuroses.
Bisturis, Fármacos, procedimentos cirurgicos? Não! A escuta e a palavra eram as ferramentas. Tudo teorizado com um brilhantismo literário único.
Por Freud ter uma base de formação médico-científica e ressaltar em muitas passagens de sua obra a importância da futura psicofarmacologia, bem como do método científico; muitos cientistas hoje acreditam que a psicanálise pode ser corroborada via métodos cléssicos de investigação. O problema é que alguns psicanalistas se opoem bravamente. É uma bela briga.
Links:
*Luis Fernando S. de Souza-Pinto, é Biólogo, mestrando em Psicobiologia pela USP de Ribeirão Preto e Psicanalista.

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Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul

Print version ISSN 0101-8108

Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul vol.25 no.2 Porto Alegre Aug. 2003

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082003000200014 

CARTA AOS EDITORES

Biopsicanálise


Mario Gurvitez Cardoni
Médico Clínico e Intensivista


O artigo de Eric R. Kandel, publicado na Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul vol. 25, N.1, JAN/ABR. 2003, A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado, tem o mérito de evidenciar o que o autor julga negligente, precário e sem rigor científico na psicanálise. Kandel é suficientemente respeitoso com o legado cultural fornecido pela visão de mundo psicanalítica, sua weltanschauung, mas deixa explícita sua posição, i.e., sua inconformidade com a falta de verificabilidade e reprodutibilidade desta técnica, considerando-a, por vezes, um exercício intelectual fascinante, porém esgotado na sua evolução. A tentativa de preservar o caráter revolucionário dos paradigmas analíticos e adaptá-los às demandas da neuropsiquiatria, por intervenções biológicas sobre o sofrimento humano e o desamparo faz do texto de Kandel um libelo otimista, porém sem necessidades reais. A aproximação da expressão da subjetividade com determinantes genéticos e bioquímicos não traz nada de novo, podendo eventualmente explicar pontualmente este ou aquele comportamento ou um ou outro aspecto aparente da dor de existir, mas ainda insuficientes para estabelecer um modelo vivencial ou um suporte intelectual que se pretenda amplo, mesmo que incompleto, para dar conta das vicissitudes complexas da relação terapêutica. Kandel propõe implicitamente que devemos avançar na compreensão dos substratos e mecanismos dos insights analíticos. Sem ironia, o título destas descobertas poderia ser, por exemplo, as bases neuroquímicas do complexo de Édipo ou ainda a influência do cromossomo 17 na expressão dos receptores gabaérgicos do striatum sobre os lapsos de linguagem. Acredito que evidências fornecidas por pesquisas como estas serão possíveis no futuro, e isto é altamente desejável, mas não tornará a causa, o fundamento último de que algo surge, mais elevada do que seu efeito. A psicanálise continuará, de qualquer modo, objetivando o fenômeno no sentido kantiano da expressão.
Mesmo se os conceitos analíticos fossem simulações, e esta não é uma acusação do artigo, produzidas ou inventadas para suprir uma carência epistemológica, ainda assim o seu pretenso desmascaramento pela neurociência não atingiria suficiente desenvolvimento para se colocar no seu lugar. Intuímos desta forma que em psicanálise a percepção do todo não deve ser a compreensão da soma das partes.
Seguindo os passos de Karl Popper, poderíamos dizer que o conhecimento avança pela refutação de teorias, criando-se conjecturas que substituam as anteriores até que estas, mais recentes, não resistam aos ataques de novas evidências e, assim, indefinidamente.
Abstraindo-se os argumentos políticos em defesa ou contra a psicanálise, podemos provisoriamente aceitar o argumento de que a psicanálise não foi superada. Aceitar a idéia de sua fragilidade quando confrontada com o método científico é uma atitude prudente; considerar o princípio da incerteza como orientação permanente também.
O ponto de maior significação quando se pretende abordar o tema da validação da análise como conhecimento empírico é o de sua aproximação com a filosofia ou, se quisermos, com a metafísica. Freud sabidamente não desejava que suas descobertas fossem "reduzidas" a meras especulações filosóficas; procurou de todas as maneiras fundamentar a teoria das neuroses, das pulsões e dos sonhos, com demonstrações reprodutíveis, universais, com aplicações terapêuticas irrefutáveis. A distância a que os psicanalistas em geral desejam permanecer da filosofia não deve ser, portanto, subestimada.
Por outro lado, esta é também, oportunamente, a acusação que fazem os detratores da psicanálise: a de se comportar como filosofia ou metafísica quanto à resistência ao rigor metodológico.
Tanto Freud quanto seus detratores cometem, penso eu, uma injustiça com a filosofia. A tradução do que existe, do que é verdadeiro, em categorias estanques do conhecimento contradiz veementemente todas as tentativas honestas de compreender o dilema existencial.
A filosofia tem muito a dizer sobre o pensar, o querer e o julgar, como tentou Hannah Arendt em suas especulações sobre a vida do espírito. Se o pensar é o ponto de confluência de toda psicanálise e de toda neurobiologia da mente, não se pode pretender alijar a filosofia desse desafio. O pensar como tal depende e influi na memória e na memória é que se apóia nossa relação com o mundo, com as coisas, com o sofrimento e a satisfação. A memória, segundo Yerushalmi, não é um arquivo. Um arquivo é estanque, imutável; podemos retirar o arquivo e voltar a colocá-lo em repouso, e ele sempre será o mesmo. A memória não. Ao retirá-la do seu lugar, de seu tempo e espaço, o pensar nestes registros modifica indelevelmente sua natureza original, sua estrutura. O pensamento modifica a memória e é para sempre e, a cada vez que é pensada, novamente modificada. Nesta movimentação da memória, é que reside a tensão da incerteza e o fascínio em descobrir a mudança contínua. Trabalhar com esta incerteza imperativa traz um sentido da coisa em-si, mas que não é mais: o não mais e o não ainda, que transforma a pretensão totalizante da neurobiologia e de suas asserções indiscutíveis em quimeras.
Mas as exigências de Kandel são sérias e implicam um chamamento à ordem, um esforço genuíno para avaliar criticamente a psicanálise e depurá-la no que ela possui unicamente para suprir uma necessidade no mundo das aparências.
Ao contrário, outro autor, Richard Webster, publicou recentemente um amontoado de panfletos sob o título Porque Freud Errou,em que procura, nos detalhes biográficos do fundador da psicanálise, toda uma ordem de falhas de caráter e comportamento fraudulento para refutar suas teorias. À primeira vista, a redação jornalística do texto parece atraente às pessoas com conhecimento superficial do tema e que não possuam nenhuma experiência terapêutica. Porém, com um pouco mais de atenção, verificamos que Webster utiliza os instrumentos da psicanálise, sua técnica e paradigmas, para dissecar as motivações encobertas, inconscientes, de Freud nos relacionamentos com Charcot, Fliess, Jung e Anna, sua filha. Este aparente paradoxo, isto é, argumentar sobre a nulidade de algo confirmando sua existência, não é abandonado sequer quando ele simplifica o caráter messiânico da psicanálise e a roupagem de profeta do seu descobridor. Melhor e com mais erudição, este assunto já foi trabalhado por Yerushalmi e Jacques Derrida, confirmando a assertiva de Freud de que os instintos mais primitivos do homem estão por trás de toda motivação: os estados-da-alma da psicanálise perpassam tudo que cria ou destrói.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Kandel ER: A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado. R. Psiquiatr. RS, 25(1): 139-165, jan/abr.2003
2. Popper KR. A sociedade aberta e seus inimigos. 3nd ed. tomo 2. São Paulo: Editora USP; 1987.
3. Arendt H. A vida do espírito. 5nd ed. Rio de Janeiro. Relume-Dumará; 2002.
4. Derrida J. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro. Relume-Dumará; 2001.
5. Webster R. Por que Freud errou. Rio de Janeiro. Record; 1999.
6. Kant I. Crítica da razão pura. São Paulo. Ed. Martin-Claret. 2001.
7. Freud S. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro. Imago Editora LTDA. 1969.


 Endereço para correspondência:
Mario Gurvitez Cardoni
E-mail: cardoni@terra.com.br

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Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul

Print version ISSN 0101-8108

Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul vol.25 no.2 Porto Alegre Aug. 2003

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082003000200013 

CARTA AOS EDITORES

Carta aos Editores da Revista de Psiquiatria do Rio Grande o Sul


Luiz E. Pellanda


Prezados colegas:
Desejo agradecer o envio do número 1/03 desta prestigiosa Revista, o que me permitiu tomar conhecimento do artigo de Eric M. Kandel, M.D., "A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado." Estou inteiramente de acordo com ele quando, referindo-se à aptidão da biologia em responder a questões básicas sobre memória e desejo, diz que "... essas respostas serão mais ricas e significativas se forjadas por um esforço sinérgico entre biologia e psicanálise".
Gostaria de enfatizar que há muito propugno por uma abertura dos meios Psicanalíticos às demais ciências, muito especialmente à Biologia, Informática e Cibernética, como se pode ver, por exemplo, na edição do livro "Psicanálise Hoje: Uma Revolução do Olhar", onde reunimos, Nize e eu, mais de quarenta cientistas, desde Etchegoyen, Matte-Blanco e Kernberg até biólogos da estatura de Kacelnik e Maturana, para nos falar sobre olhares pertinentes ao nosso tema, ou ainda, no trabalho aceito para o 43º IPAC: "Complex Epistemology and Psychoanalysis: Tensioning the frontiers." Esta introdução é necessária para dizer de onde falo ao concordar em princípio com o autor referido, para então poder assinalar algumas restrições e diferenças.
Imagino que todo psicanalista gostaria de poder escrever um texto equivalente ao "Projeto de uma psicologia para neurólogos", mas sempre reconhecemos que os avanços da biologia ainda não nos permitem tal feito, como aliás reconhece Kandel: "... embora esboçamos o que poderia evoluir para uma significativa fundamentação biológica para a psicanálise, estamos recém nos primórdios deste processo. Ainda não temos uma compreensão satisfatória dos complexos processos mentais." (p.142)
Minha restrição maior deve-se mais ao ponto de vista adotado pelo autor, num evidente neo-behaviorismo, buscando entender "a caixa preta" da mente pela análise dos "inputs e outputs" e sua concepção de Psicanálise, bem ao modo norte-americano de pensá-la como apenas o que existe dentro do território local, ignorando mesmo os esforços de Kernberg para incluir outros olhares. Com esta postura, ficam de fora todos os autores Kleinianos e pós Kleinianos, os franceses todos, e toda a Biologia moderna representada pela Escola de Santiago, fundada por Humberto Maturana e Francisco Varela, que postulam a auto-organização como característica do ser vivo e seu diferencial. Por esta postura é que um autor da importância de Antonio Damásio é citado apenas en passant, quando eventualmente lhe caberia o papel central que o Congresso da IPA lhe pretendia dar no adiado conclave de Toronto.
Espero que ele possa comparecer em março ao de New Orleans, para onde foi re-programado esse Congresso, de modo que possamos todos desfrutar de sua palavra sobre o que vem encontrando na neurologia das emoções, em nada contrariando o já afirmado pela Psicanálise, mas a complementando magistralmente.
Que o tema proposto é atual, nenhuma dúvida, haja vista a discussão sobre "controvérsias", que se propõe pela Internet no site do Int. Journal of Psychoanalysis: http://www.ijpa.org/, onde repressão, transferência e reconstrução estão sendo debatidas.
Fico com a impressão de que Kandel segue se preocupando apenas em explicar o inconsciente (como explicitado no primeiro parágrafo da pg. 143), quando a questão hoje é tentar explicar de onde surge a consciência e como: Damásio tem propostas importantes sobre este tema, especialmente as descritas em seus últimos livros: The Feeling of what Happens (1996) e Looking for Spinoza (2003). Maturana também tem contribuição significativa, a qual em parte está exposta em um dos capítulos do livro que editamos, já citado, e que se chama "Biologia da auto-consciência", onde ele defende a idéia de que consciência não é uma "entidade" que se localize no corpo ou no cérebro: "Considero que consciência ocorre como uma dinâmica relacional particular, quando um organismo opera como participante em um domínio de distinções recursivas na linguagem, e que isto não é uma entidade ou propriedade de uma entidade." (1966, p.601).
Fica de fora do artigo publicado o mais importante na minha opinião: o caráter complexo da função mental (ainda que estas palavras compareçam no texto, como citado acima!). A questão aqui é de mudança de paradigma: abandonar o cartesiano e adotar o da complexidade. Somente uma abordagem multifacetada pode tentar uma aproximação adequada: necessitamos da colaboração de Edgar Morin (1990) e de sua proposta do novo paradigma da complexidade; necessitamos ainda de Maturana e de sua autopoiése, expressão do paradigma da auto-organização, bem como dos neurocientistas como Damásio e de tantos outros. Certamente não será com esta aproximação ainda cartesiana que chegaremos ao que von Foerster, pai da cibernética de segunda ordem, diz ser o ideal: "Não seria acaso recomendável renunciar ao critério de Popper e buscar princípios que se confirmem na práxis? (von Foerster, 1996, p.130).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Pellanda N e Pellanda LE. (1996). Psicanálise Hoje: Uma Revolução do Olhar. Ed Vozes, Petrópolis. Índice em:http://www.portoweb.com.br/pessoal/olhar
2. Damasio A. (1999). The Feeling of What Happens. Body and Emotion in the Making of Consciousness. Hartcourt, Inc. San Diego, New York.
3. ___.(2002). Looking for Spinoza Hartcourt, Inc. San Diego, New York.
4. Maturana H. (1966). Biologia da autoconsciência. IN Pellanda N e Pellanda LE. Psicanálise Hoje: Uma Revolução do Olhar. Ed Vozes, Petrópolis.
5. Morin E. (1990). Introdução ao pensamento complexo. Publicações Intituto Piaget, Lisboa, 1991.
6. Von Foerster H. (1996). Reflexiones cibernéticas. IN: Fischer HR y col. El final de los grandes proyectos. Barcelona: Edisa.

Atenciosamente,
Dr. Luiz E. Pellanda
Porto Alegre – RS – Brasil
http://www.portoweb.com.br/pessoal/pellanda