quarta-feira, 8 de abril de 2015

UMA TEORIA DA COOPERAÇÃO BASEADA EM MATURANA

UMA TEORIA DA COOPERAÇÃO BASEADA EM MATURANA

Este texto foi escrito por Augusto de Franco em 2001 e publicado na revista Aminoácidos, vol. 4 (Brasília: AED, 2002). A presente versão não foi revista.
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Apresentação
Este livro contém excertos – rearrumados – de um outro livro, escrito por mim entre setembro de 2000 e junho de 2001, intitulado “Capital Social. Leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy” (Franco, 2001).
Na verdade, ao publicá-lo, corro o risco de ser acusado de plágio. Mas creio que o auto-plágio, neste caso, se justifica. E vou tentar dizer por quê.
A versão integral de “Capital Social” foi publicada em junho de 2001. De lá para cá, ouvi reclamações de que o livro era grande demais. Assustava os leitores. No início, não dei muita importância a tais observações, porque meu intuito foi, exatamente, o de ajudar os leitores a ganhar tempo, reunindo e resenhando alguns textos fundamentais, em alguns casos – como o da obra (quase) inteira de Humberto Maturana – de difícil reunião. Depois, acedi, quando tive de publicar uma tradução em inglês chamada “Social Capital. Abridge Version”, com a metade do tamanho do original.
Ocorre que a versão resumida só apareceu em inglês e muitas pessoas no Brasil – que não têm tempo para debulhar um tratado de 600 páginas – parecem estar interessadas, crescentemente, no papel da cooperação no desenvolvimento e, em particular, numa visão da colaboração diferente dessas “platitudes” correntes segundo as quais o ser humano é, intrinsecamente e ao mesmo tempo, cooperativo e competitivo. Para dizer o mínimo, tais visões revelam maneiras preguiçosas de (não) entrar no debate.
Ora, uma visão substantivamente diferente desta maneira medíocre, do tipo “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, de abordar a questão, é a do biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Maturana toma partido no debate e tenta mostrar que o ser humano é inerentemente cooperativo e não é inerentemente competitivo.
Numa época em que se ouve tanta bobagem sobre o primado da competição e seu papel motor no desenvolvimento, que se fala em “vantagem competitiva” e “competitividade sistêmica” como se fossem verdades evidentes por si mesmas ou conseqüências irretorquíveis de argumentações universalmente aceitas pela ciência, talvez valha a pena divulgar algumas idéias razoáveis sobre as origens da cooperação. Quem sabe alguém, algum dia, se anime a desenvolver os conceitos de vantagem cooperativa e cooperatividade sistêmica evidenciando o papel da cooperação no desenvolvimento e contribuindo para validar ou, pelo menos, para aumentar a verossimilhança das hipóteses dos que trabalham com o promissor conceito de capital social.
Quero dizer com tudo isso que o objetivo deste livrinho, que apenas recombina passagens do meu “Capital Social”, é ampliar a divulgação, entre nós, das idéias de Humberto Maturana sobre a cooperação, porque estou convencido de que, a partir daí, poderemos formar bases sólidas para uma inovadora concepção de desenvolvimento – o desenvolvimento humano e social sustentável – que não aprisione esse conceito nos marcos de uma racionalidade estrita e pobremente econômica, porém confira-lhe o status de categoria central nas tentativas teóricas de explicar o fenômeno da mudança social.
Setembro de 2001
Augusto de Franco
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Introdução
Como deve ter ficado claro na apresentação deste livro, venho trabalhando com o conceito de “Capital Social”.
Ora, capital social nada mais é do que, em suma, cooperação ampliada socialmente. Só pode haver produção de capital social se os seres humanos fizerem coisas que contradizem seus interesses imediatos, como, por exemplo, cooperar sem esperar recompensa imediata, proporcional ou prevista em prazo azado. Evidentemente, isso deveria levar qualquer pesquisador sério a investigar as origens da cooperação. A esse respeito, a direita, em geral, assim como boa parte dos economistas que se metem a explicar o funcionamento das sociedades humanas, assumem sem muito pudor a visão de que o homem é naturalmente competitivo, não passando a cooperação de resultado de uma racionalização visando a (ou na expectativa de) obter maiores ganhos no longo prazo – mas, aí, todos esses se vêem em enormes dificuldades para explicar porque existe tanta cooperação espontânea no mundo real.
Nada de realmente científico nos obriga a aceitar a suposição de que os seres humanos são inerentemente competitivos. Os pressupostos filosófico-antropológicos dos economistas e dos sociólogos que querem ser aceitos pelos economistas são, na verdade, discursos axiológico-normativos. Supor que a competição seja uma característica inerente à natureza humana – porque o homem é um animal e os animais competem por recursos e, no caso dos primatas, também por poder (afirmativas muito questionáveis, como veremos adiante) – é um axioma de ideologia moral e, portanto, não pode ser validado pelas regras válidas da ciência o que se constrói a partir dessa suposição, tomada de antemão como verdadeira. Se é assim, pode-se igualmente supor – em resposta à pergunta de por que os seres humanos podem ter capacidade de cooperar – que o que possibilita aos seres humanos terem essa capacidade é a mesma coisa que os constitui como seres realmente humanos. Se é uma questão de preferência na escolha de que suposição tomar, há muitas razões indicando que deve-se preferir a última, inclusive por ser mais conforme a um comportamento universalmente observado de haver tanta cooperação espontânea no mundo real, que não poderia haver, com a freqüência observada, caso o ser humano fosse inerentemente competitivo.
Ao investigar seriamente as origens da cooperação, nos damos conta de que uma teoria do capital social é, pelo menos no que tange aos seus pressupostos, uma teoria do humano.
Talvez ninguém tenha desenvolvido isso tão bem como o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Para fazer frente tanto às simplificações dos economistas – que comparecem em quantidade não desprezível quando se trata de justificar por que o humano tem de ser constitutivamente ou “geneticamente” competitivo – quanto para ter uma espécie de antídoto contra tais idéias perversas, desses e de outros – como os sociobiólogos –, deve-se reconstruir uma teoria da cooperação. E, na minha opinião, pode-se e deve-se fazer isso cientificamente; por exemplo, a partir de Maturana.
Os fundamentos da maioria das abordagens teóricas do capital social estão construídos sobre um terreno de pressupostos que quase nunca estão explícitos. Tais pressupostos, entretanto, existem. São pressupostos filosófico-antropológicos, que tomam suas matrizes conceituais, em geral, de empréstimo de outras ciências, como a biologia e a biologia da evolução, formulando, então, metahipóteses sociológicas (na verdade, diriam alguns, sub-sociológicas) a partir das hipóteses aventadas para explicar o funcionamento de organismos ou de partes de organismos (como o cérebro humano) ou para explicar comportamentos animais (como o dos chimpanzés). E não é possível analisar os fundamentos do conceito de capital social sem desvelá-los.
A tarefa de desvelar os pressupostos do conceito de capital social não é trivial, porquanto envolve elementos teóricos de procedências distintas e status diverso: assertivas tomadas axiomaticamente por sistemas (ou discursos) filosóficos, do tipo “o homem é um animal político” (Aristóteles); conclusões deslizadas da biologia para a antropologia social, como: “os seres humanos cooperam para competir” (Alexander, 1990); especulações com as teorias da evolução – por exemplo, sobre a existência de uma “natureza humana” –, que, supostamente, indicariam que o capital social “tende a ser gerado de forma instintiva pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999); além, é claro, de todas as crenças morais (e imorais) subsumidas em teorias econômicas, como a de que não é possível explicar o comportamento de grupos, a não ser em termos dos interesses dos indivíduos e de que estes interesses são basicamente egoístas.
Os subdiscursos axiológico-normativos dos economistas, se se pode falar assim, não são os melhores exemplos de ocultamento de pressupostos, de vez que chegam a confundir-se com seus discursos, dando a impressão de que as teorias econômicas são, afinal, teorias morais (e, com freqüência, imorais). Isso fica claríssimo, por exemplo, nas críticas ao socialismo de Ludwig von Mises (1981) e Friedrich Hayek (1988). Mas, quando não se pode falar assim, como no caso da teoria econômica dos jogos e outras teorias baseadas na rational choice, constituem então os melhores exemplos de transposições mecânicas de noções de um âmbito teórico para outro, sem muita cerimônia semântica, sem muita consideração epistemológica pelos estatutos próprios dos diversos campos de conhecimento trafegados e, enfim, sem muito respeito pela natureza do objeto do conhecimento (ou pela natureza dos conhecimentos sobre o objeto) em questão: o ser humano ou os conjuntos de seres humanos.
Assim, o ser humano é tratado, por exemplo, na teoria econômica dos jogos, como um ser puramente racional e não como um ser emocional-racional – o que justifica os limites das explicações que alguns economistas fornecem para a solução dos chamados dilemas da ação coletiva. Com efeito, diante do dilema do prisioneiro, os seres humanos em geral, quer dizer, majoritariamente, na maioria das culturas, não escolhem, com tanta freqüência, a opção que seria racionalmente a mais vantajosa para si como indivíduos, porquanto trapacear não é uma opção emocionalmente confortável.
É tão simples como isso, mas os economistas “freqüentemente expressam surpresa pelo fato de haver tanta cooperação no mundo, uma vez que a teoria dos jogos sugere que as soluções cooperativas são, muitas vezes, difíceis de obter... [e continuam tendo grandes] dificuldades para explicar por que tantas pessoas votam, fazem doações a entidades caritativas ou permanecem leais aos seus empregadores, porque seus modelos de comportamento egoísta sugerem que é irracional fazer isso” (Fukuyama, 1999: 172). Por que – deve-se perguntar –, se “todo mundo sabe”, inclusive os economistas, que os seres humanos são sociáveis e são recompensados emocionalmente pelo reconhecimento social que advém do exercício da colaboração? Talvez essas dificuldades provenham de outro campo, não propriamente da teoria científica, mas da ideologia embutida na teoria, na visão que precisa ser impingida para aumentar a verosimilhança do discurso. De fato, o pressuposto básico da competição tem de estar presente para o esquema explicativo funcionar, legitimando (e contribuindo para reproduzir) um mundo de competição em que a explicação, então, funcione, garantindo o status sacerdotal daqueles que o explicam. Mas, justiça seja feita, tal comportamento não é privilégio de economistas – é o que atestam, por exemplo, outras perversões, vale lembrar: a sociologia de Garret Hardin, a sociobiologia de Edward Wilson e a antropologia de Robert Ardrey – como tão bem mostrou William Irwin Thompson (1987: 23).
Na verdade, a teoria econômica dos jogos não é bem humana, não por ser uma teoria matemática ou matematizada, mas – no sentido de que é uma teoria indevidamente transposta para o campo das ciências humanas – por não se aplicar aos seres humanos reais e sim a seres humanos idealizados, cujos cérebros funcionam como CPUs de computador.
A capacidade de produzir capital social é constituída, fundamentalmente, pela capacidade que tem o ser humano de colaborar ou de cooperar com outros seres humanos. O último termo é melhor por ser mais abrangente: “co-laborar” evoca a noção de trabalho conjunto, enquanto que “co-operar” se refere a quaisquer (oper)ações conjuntas, algumas delas fundamentais porquanto constitutivas do humano, como é o caso, por exemplo, na visão de Humberto Maturana (1988a), compartilhada aqui, do “con-versar”. Para descobrir de onde vem esta “capacidade”, é preciso, pois, investigar as origens humano-sociais da cooperação.
Muito bem. Mas o que leva os seres humanos a cooperar? Essa pergunta precisa ser respondida, se quisermos continuar trabalhando com o conceito de “Capital Social”. Em outras palavras: uma teoria do capital social pressupõe uma teoria da cooperação.
Dizendo ainda de outra maneira: qualquer teoria do capital social é, no que tange aos seus pressupostos, uma teoria da cooperação. A teoria biológica do fenômeno social – uma espécie de anti-sociobiologia e de contra-social-darwinismo –, desenvolvida pelo biólogo Humberto Maturana, pode fornecer a base para uma teoria da cooperação humana que melhor corresponda à noção de capital social.
Porém, a tarefa de extrair das idéias de Maturanauma teoria compreensível da cooperação não é trivial, porquanto tais idéias ainda estão imersas em certa obscuridade. Além disso, as inovadoras abordagens de Maturana apresentam uma estrutura conceitual bem mais complexa do que as dos esforços mais conhecidos da investigação contemporânea sobre as origens da cooperação (e/ou da competição) realizados por antropólogos, sociólogos, psicólogos e mesmo por biólogos que trabalham com teorias da evolução. Ou seja, o debate atual sobre o tema não abriu espaço para uma análise mais ampliada das idéias de Humberto Maturana e, assim, não ensejou sua passagem pelas peneiras das múltiplas interpretações, que acabam, às vezes,“domesticando”, mas também aclarando, simplificando e ubicando os conceitos dentro de marcos teóricos mais amigáveis.
A conclusão a que cheguei é a seguinte. Há uma teoria da cooperação implícita nos escritos de Maturana, cujos elementos principais, apenas elencados em três conjuntos, de modo não axiomático, são estes:
Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição do humano.
1 - O que nos torna humanos é a linguagem.
2 - Não é, fundamentalmente, o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem, e, sim, o modo de conviver.
3 - O modo de conviver que torna possível a linguagem jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência.
4 - Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, em que haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não se pode esperar que surja a linguagem.
5 - A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 - A cooperação está na constituição do humano.
Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do social.
1 - Só há sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação condutual dos seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual esses seres vivos realizam sua autopoiesis.
2 - A cooperação se dá em todas as relações sociais.
3 - Nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as coletividades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua.
4 - Distintas emoções especificam distintos domínios de ações.
5 - Coletividades humanas fundadas em emoções não centradas na emoção amistosa que permite a intimidade na convivência com certa permanência – ou o ser com o outro – estarão constituídas em outros domínios de ações que não o da cooperação e do compartilhamento – em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e não serão comunidades sociais.
6 - A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão; a obediência não é um ato de cooperação.
7 - Afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não nos damos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam.
Terceiro conjunto: a competição não funda o social nem constitui o humano.
1 - Não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Toda a contradição que a humanidade vive nesse domínio é de origem cultural.
2 - A conduta social está fundada na cooperação e não na competição.
3 - O fenômeno da competição é cultural.
4 - A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 - A cultura patriarcal se caracteriza pela conservação de um modo de coexistência que valoriza a competição.
6 - O fenômeno da competição não se dá no âmbito biológico.
7 - Seres vivos não humanos não competem.
8 - Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come, isso não é competição, porque não é central para o que se passa com o que come o fato de que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, , a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é fundamental para constituir o modo de relação.
9 - O ato de compartilhar alimentos – uma forma de colaboração –, que está evolutivamente na origem do humano, não consiste em deixar que o outro coma a seu lado e, sim, em transferir o que se tem para o outro.
10 - A competição tem ganhadores e perdedores. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui (em escala ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável.
11 - A competição não participa da evolução do humano, que se dá pela conservação de um fenótipo ontogênico ou um modo de vida no qual o linguagear pode surgir.
12 - A linguagem não poderia ter surgido na competição.
13 - A competição não pode ser constitutiva do humano.
Nas páginas seguintes, vamos situar os três conjuntos de assertivas expostos acima no contexto das elaborações teóricas de Humberto Maturana.
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1 - O arcabouço teórico da biologia do fenômeno social
Um esforço para sistematizar uma teoria da cooperação com base nas idéias de Maturana deveria começar, ao meu ver, pelo esforço de compreender o arcabouço teórico construído por ele a partir de meados da década de 80 (1). Considerando que o leitor não terá muita facilidade em reunir todo esse disperso material (citado na nota acima), vamos transcrever, ao longo deste livro, as principais passagens dos escritos de Maturana, no período 1985-1993, que têm a ver com o tema em tela. Penso que tais passagens são tão importantes para construir novos fundamentos – alternativos a tudo ou a quase tudo o que comparece no debate contemporâneo – para uma teoria da cooperação, que vale a pena correr o risco de ser exaustivo.
Tudo começa com a observação de que parece haver uma inescapável dualidade no ser humano. Os seres humanos são seres sociais (vivem o seu ser quotidiano em contínua imbricação com o ser de outros seres humanos) e, ao mesmo tempo, são indivíduos (vivem o seu ser quotidiano como um contínuo devir de experiências individuais intransferíveis). Uma teoria da cooperação baseada nas idéias de Maturana é uma teoria para mostrar que podem existir “sistemas sociais cujos membros vivem a harmonia dos interesses aparentemente contraditórios da sociedade e dos indivíduos que a compõem” (Maturana, 1985a: 72). Assim, para mostrar que o ser humano individual é social e o ser humano social é individual, Maturana vai começar admitindo cinco pressupostos.
O primeiro pressuposto diz respeito ao enfoque biológico – e não filosófico, sociológico ou psicológico – que será adotado por ele. Interrogando os critérios pelos quais se pode aceitar como científica uma resposta para a pergunta: “o que é um sistema social?”, Maturana afirma que “as respostas científicas, quer dizer, as respostas aceitáveis pelos cientistas devem consistir na proposição de mecanismos (sistemas concretos ou conceituais) que, no seu operar (funcionar), geram todos os fenômenos concernidos na pergunta” (Maturana, 1985a: 72). Baseado nesse critério, ele vai propor um mecanismo biológico como gerador dos “sistemas que exibem, em seu operar, todos os fenômenos que observamos nos sistemas que quotidianamente reconhecemos como sistemas sociais” (Idem) (n. g.).
O segundo pressuposto diz respeito ao conceito de “ser vivo”. “Os seres vivos, incluídos os seres humanos, somos sistemas determinados estruturalmente. Isto quer dizer que tudo ocorre em nós na forma de mudanças estruturais, determinadas em nossa estrutura, seja como resultado de nossa própria dinâmica estrutural interna, seja como mudanças estruturais desencadeadas pelas nossas interações com o meio, porém não determinadas por este último. Além disso, a conduta (comportamento), observável, em nós mesmos, por exemplo, não escapa disso, e o que vemos como comportamento em qualquer ser vivo, sob a forma de ações em um contexto determinado é, por assim dizer, a coreografia da sua dança estrutural. Conseqüentemente, a conduta de um ser vivo é adequada somente se suas mudanças estruturais ocorrem em congruência com as mudanças estruturais do meio, e isso só ocorre enquanto sua estrutura permanece congruente com o meio durante sua sucessão de contínua mudança estrutural” (Maturana, 1985a: 73).
Maturana define o conceito de estrutura: a estrutura de um sistema é sua feitura (ou “fazedura”), os componentes e relações que o fazem como (ou o tornam) um caso particular de uma classe. Portanto, a estrutura ou feitura de um sistema pode mudar sem que este desapareça, desde que tais mudanças se dêem com conservação da organização que o define. A organização de um sistema, por sua vez, consiste nas relações que o constituem como unidade e definem sua identidade. Um sistema conserva sua identidade enquanto conserva sua organização.
Para Maturana – e aqui se encontra a matriz de toda a sua construção teórica –, “os seres vivos, como sistemas determinados estruturalmente, são sistemas que, em sua dinâmica estrutural, se constituem e se delimitam como redes fechadas de produção de seus componentes, a partir de seus próprios componentes e de substâncias que tomam do meio: os seres vivos são verdadeiros redemoinhos de produção de componentes, em virtude do que as substâncias que tomam do meio, ou vertem no meio, seguem participando transitoriamente do ininterrupto intercâmbio de componentes que determina seu contínuo revolver produtivo. É esta condição de contínua produção de si mesmos, por meio da contínua produção e intercâmbio de seus componentes, o que caracteriza os seres vivos e é isto o que se perde no fenômeno da morte” (Maturana, 1985a: 73). Maturana está se referindo aqui ao conceito de autopoiesis (autocriação), cuja fundamentação se encontra no livro pioneiro – “De máquinas y seres vivos” – que escreveu com Francisco Varela no início dos anos 70 (Cf. Maturana e Varela, 1973). Em suma: “os seres vivos são sistemas autopoiéticos e... estão vivos somente enquanto estão em autopoiesis” (Idem).
Qualquer sistema constituído como unidade, como uma rede de produção de componentes que, em suas interações, geram a mesma rede que os produz e constituem seus limites como parte do próprio sistema no seu espaço de existência, é um sistema autopoiético. Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares e existem como tais no espaço molecular. Em princípio, pode haver sistemas autopoiéticos em qualquer espaço no qual se possa realizar a organização autopoiética.
Maturana esclarece, em outro lugar (Maturana, 1985b: 58), que “nenhuma classe particular de moléculas determina por si só as características de um ser vivo. Um ser vivo é um ser vivo devido a que é um sistema constituído como unidade em sua organização autopoiética, não porque esteja composto por um tipo particular de moléculas. Ao mesmo tempo, um ser vivo é como é, em cada instante, não porque algum de seus componentes predetermine como deva ser, senão porque começou com certa estrutura inicial e teve uma certa história particular de interações” (Idem). Assim: “a) todo ser vivo se realiza de fato em uma história de interações; b) se a estrutura inicial de dois seres vivos é a mesma e eles têm a mesma história de interações, suas ontogenias como histórias de transformações estruturais serão idênticas; e c) se dois seres vivos têm a mesma estrutura inicial, porém distintas histórias de interações, suas ontogenias como histórias de mudanças estruturais serão diferentes” (Idem-idem).
O terceiro pressuposto se refere à dinâmica da mudança estrutural. “Nos sistemas em contínua mudança estrutural, como os seres vivos, a mudança estrutural se dá tanto como resultado de sua dinâmica interna como desencadeado por suas interações com um meio que também está em contínua mudança. A conseqüência disso é que, a partir da estrutura inicial do ser vivo, ao começar sua existência, o meio já aparece selecionando nele, ao desencadear mudanças determinadas em sua estrutura, as conseqüências de mudanças estruturais que ocorrem ao longo de seu viver, em uma história de sobrevida que necessariamente ocorre na congruência do ser vivo e do meio, até que o ser vivo morra porque esta congruência se perde” (Maturana, 1985a: 74). Maturana quer dizer, em suma, que “a estrutura de cada ser vivo é, em cada instante, o resultado do caminho de mudança estrutural que seguiu a partir de sua estrutura inicial, como conseqüência de suas interações no meio em que lhe coube viver” (Idem).
O quarto pressuposto diz respeito à conservação da organização. “Os seres vivos participam dos fenômenos de que participam como seres vivos somente enquanto a organização que os define como seres vivos (a autopoiesis) permanece invariante” (Maturana, 1985a: 74). Isso evoca a existência de uma relação universal: “algo permanece, quer dizer, algo mantém sua identidade, sejam quais forem suas mudanças estruturais, somente enquanto a organização que define sua identidade não muda. A organização de um sistema consiste em relações entre componentes que lhe conferem identidade de classe (cadeira, automóvel, fábrica de refrigeradores, ser vivo etc.). O modo particular como se realiza a organização de um sistema particular (classe de componentes e relações concretas que se dão entre eles) é sua estrutura. A organização de um sistema é, necessariamente, invariante, mas sua estrutura pode mudar. A organização que define um sistema como ser vivo é a organização autopoiética. Por isso, um ser vivo permanece vivo enquanto sua estrutura, sejam quais forem suas mudanças, realiza sua organização autopoiética, e morre se, em suas mudanças estruturais, não se conserva esta organização” (Idem). Novamente, aqui, uma relação universal é evocada: “todo sistema se desintegra quando, em suas mudanças estruturais, não se conserva sua organização. Assim, por exemplo, um relógio deixa de ser relógio (perde sua organização de relógio) se uma das mudanças estruturais é a ruptura de sua corda...” [Em suma:] “o vivo de um ser vivo está determinado nele, não fora dele” (Idem-idem) (n. i.).
O quinto e último pressuposto se refere à conservação da adaptação. “Os seres vivos existem sempre imersos em um meio com o qual interagem. Além disso, como o viver de um ser vivo transcorre em contínuas mudanças estruturais – como resultado de sua própria dinâmica interna ou desencadeadas pelas suas interações com o meio –, um ser vivo conserva sua organização em um meio somente se sua estrutura e a estrutura do meio são congruentes e se esta congruência se conserva. Se não se conserva a congruência estrutural entre ser vivo e meio, as interações com o meio desencadeiam no ser vivo mudanças estruturais que o desintegram e ele morre. Essa congruência estrutural entre ser vivo e meio (seja qual for este meio) chama-se adaptação. Conseqüentemente, um ser vivo vive somente enquanto conserva sua adaptação ao meio em que existe, e somente enquanto, ao conservar sua adaptação, conserva também sua organização” (Maturana, 1985a: 75). Mais uma vez, é evocada, aqui, uma relação universal: “todo sistema existe somente na conservação de sua adaptação e de sua organização, [e somente] em circunstâncias nas quais a conservação de uma envolva a conservação da outra” (Idem) (n. i.). Em suma, “a estrutura presente de um ser vivo é sempre o resultado de uma história na qual suas mudanças estruturais foram congruentes com as mudanças estruturais do meio... [Além disso], todo ser vivo se encontra onde se encontra em seu presente como resultado dessa história, em uma contínua transformação de seu presente a partir de seu presente” (Idem-idem) (n. i.).
Baseado nesses cinco pressupostos – que definem o que ele entende por abordagem biológica – Maturana vai, então, tentar responder, de modo bastante inovador, a pergunta: “o que é um sistema social?”
“Cada vez que os membros de um conjunto de seres vivos constituem, com sua conduta (comportamento), uma rede de interações que opera para eles como um meio no qual eles se realizam como seres vivos e no qual eles, portanto, conservam sua organização e adaptação e existem numa coderiva contingente à sua participação na referida rede de interações, temos um sistema social” (Maturana, 1985a: 76). A definição é surpreendente. Sobretudo porque, em seguida, ele sustenta que:
a) “a organização descrita acima é necessária e suficiente para caracterizar um sistema social; e
b) um sistema particular, definido por essa organização, gera todos os fenômenos próprios de um sistema social em um marco de conduta (comportamento) especificado pelo tipo de seres vivos que o integram” (Idem).
Maturana está se referindo aqui apenas a uma classe de sistemas: “Esta classe... é o resultado inevitável das interações recorrentes que se dão entre seres vivos. E cada vez que [tais interações] se dão com alguma permanência temos esse tipo de sistemas”, os quais ele denomina de “sistemas sociais, porquanto os fenômenos que neles se dão são indistinguíveis, em sua forma e modo de geração, dos fenômenos que observamos nos sistemas que chamamos de sistemas sociais no âmbito humano” (Maturana, 1985a: 76) (n. i.) (g. a.).
Daí decorrem seis implicações, de aplicabilidade universal – válidas, portanto, para qualquer tipo de sistema social:
Um sistema social conserva a vida dos seus membros. “É constitutivo de um sistema social o fato de que seus componentes sejam seres vivos...” Um sistema social só se constitui se estes seres vivos, no processo de integrá-lo, conservarem nele sua organização e adaptação. “Por isso, qualquer tentativa de caracterizar um sistema social de uma maneira que desconheça que a conservação da vida de seus componentes é condição constitutiva do seu operar está equivocada e especifica um sistema que não gera os fenômenos próprios de um sistema social. Assim, por exemplo, um conjunto humano que não incorpora a conservação da vida de seus membros como parte de sua definição operatória como sistema, não constitui um sistema social” (Maturana, 1985a: 76).
Um sistema social é caracterizado pelo comportamento dos seus membros. “Cada sistema social particular, quer dizer, cada sociedade se distingue pelas características da rede de interações que realiza. Assim, por exemplo, uma comunidade religiosa, um clube, uma colmeia de abelhas, na medida em que são sistemas sociais, são sociedades distintas, porque seus membros realizam condutas distintas ao integrá-las (os comportamentos adequados a cada uma delas são diferentes). Para ser membro de uma sociedade, basta realizar as condutas que definem seus membros” (Maturana, 1985a: 76-7).
Não existem membros supérfluos num sistema social. “Na medida em que um sistema social é constituído por seres vivos, são todos e cada um dos seres vivos que o integram os que de fato o constituem com o operar de suas propriedades. Portanto... não há componentes supérfluos em um sistema social; se um componente se perde, o sistema social muda. Todo sistema social está exposto à mudança em virtude da morte de seus componentes. Além disso, como as propriedades e características de cada ser vivo estão determinadas por sua estrutura, na medida em que as estruturas dos seres vivos que integram um sistema social mudam, mudam igualmente suas propriedades e o sistema social que geram com suas condutas também muda” (Maturana, 1985a: 77). Maturana considera um sistema cuja estrutura muda enquanto conserva sua organização e sua correspondência com o meio como um sistema em deriva estrutural. Em geral, a deriva é uma mudança de posição de um sistema que conserva sua forma e sua correspondência com o meio em que se produz a mudança.
As propriedades dos membros de um sistema social são selecionadas pelos próprios membros desse sistema. “Na medida em que um sistema social é o meio no qual seus membros se realizam como seres vivos e o meio no qual conservam sua organização e adaptação, um sistema social opera necessariamente como seletor da mudança estrutural de seus componentes e, portanto, de suas propriedades. Com efeito, na medida em que são os componentes de um sistema social os que de fato o constituem e realizam com sua conduta, são os componentes de um sistema social os que, com sua conduta, de fato selecionam as propriedades dos componentes do mesmo sistema social que eles constituem. Toda sociedade é conservadora de sua organização como tal e das características dos componentes que a geram” (Maturana, 1985a: 77).
Um sistema social é mudado por seus membros. “Em geral, os componentes de um sistema social podem participar de outras interações, além daquelas em que necessariamente devem participar ao integrá-lo, quer dizer, podem participar de interações fora do sistema social que constituem. Mas se, como resultado de tais interações, a estrutura dos componentes de um sistema social muda, de modo que sua maneira de integrá-lo muda, sem destruir sua organização, a estrutura do sistema também muda. Para um observador, este sistema aparece como o mesmo sistema, porém constituído como uma rede diferente de condutas. O mesmo pode ocorrer com a incorporação de novos membros em um sistema social, com uma história prévia de interações independente dele” (Maturana, 1985a: 77).
Todo sistema social está em contínua mudança estrutural. “Ainda que todo sistema social seja constitutivamente conservador, todo sistema social está também em contínua mudança estrutural, devido: a) à perda de membros por morte ou migração; b) à incorporação de novos membros com propriedades adicionais àquelas necessárias para sua incorporação, diferentes das de outros membros; e c) a mudanças nas propriedades de seus membros, que surgem de mudanças estruturais não desencadeadas (selecionadas) por suas interações dentro do sistema social que integram, em virtude de interações realizadas fora do sistema ou como resultado de sua própria dinâmica interna” (Maturana, 1985a: 77-8). Maturana conclui: “o devir histórico de qualquer sociedade é sempre o resultado destes dois processos: conservação e variação” (Idem).
Evidentemente, estamos aqui diante de uma profunda reconceituação de sistema social que altera, também profundamente, a nossa compreensão das sociedades humanas. Das seis proposições acima, universalmente válidas para qualquer sistema social, Maturana vai inferir dez teoremas aplicáveis às sociedades humanas.
Primeiro. A natureza constitutivamente conservadora dos sistemas sociais. Se os sistemas sociais são constitutivamente conservadores, então isso também ocorre no domínio social humano. “Os membros de qualquer sociedade humana realizam essa sociedade com sua conduta e, com ela, continuamente selecionam em seus membros, antigos e novos, essas mesmas condutas (comportamentos). Assim, por exemplo, em um clube, as condutas de seus membros definem o clube, eliminando dele todos aqueles que não têm condutas apropriadas e confirmando como membros todos aqueles que as têm, sendo que condutas apropriadas são aquelas com as quais, eles mesmos, os membros do clube, definem o clube. O mesmo ocorre nas famílias, nas comunidades religiosas... enfim, em qualquer sociedade humana” (Maturana, 1985a: 78).
Segundo. Os seres humanos podem ser membros de vários sistemas sociais. Se, no processo de viver, os seres humanos realizam, em lugar e/ou tempo oportunos, as condutas próprias de vários sistemas sociais, então eles podem ser membros desses vários sistemas sociais simultaneamente ou sucessivamente. “Assim, podemos ser, imbricadamente e sem contradições, membros de uma família, de uma comunidade religiosa, de um clube, de uma nação, por meio das distintas dimensões do nosso viver. Porém, se, ao realizar as distintas condutas próprias de distintos sistemas sociais, não o fazemos envolvendo de fato nossas vidas, mas apenas pretendendo fazê-lo, não somos realmente membros desses sistemas sociais e estaremos apenas imersos em suas respectivas tramas condutuais (comportamentais) até que, ao ser descobertos, sejamos expulsos como hipócritas e parasitas” (Maturana, 1985a: 78).
Terceiro. A linguagem é o mecanismo fundamental de interação no operar dos sistemas sociais humanos. “A linguagem, como característica do ser humano, surge com o humano no suceder social que lhe dá origem... A conduta primária de coordenação condutual (comportamental) na ação sobre o mundo, gerada e aprendida ao longo da vida dos membros de um sistema social qualquer, como resultado de suas interações nesse sistema, é descrita como conduta lingüística por um observador que vê cada elemento condutual como uma palavra descritora do mundo ao assinalar objetos do mundo. Mas nesse operar social primário não há objetos para os membros do sistema social, pois eles só se movem na coordenação condutual da ação que tiveram que adquirir (aprender) ao fazer-se membros dele. No domínio social humano, e como resultado das interações que têm lugar entre os membros de uma sociedade humana, há linguagem quando há recursividade lingüística, quer dizer, quando um observador vê coordenação condutual sobre coordenação condutual ” (Maturana, 1985a: 79).
Para Maturana, o fenômeno da linguagem tem lugar quando um observador distingue, nas interações de dois ou mais organismos, coordenações condutuais de coordenações condutuais consensuais. Quer dizer, a linguagem surge quando há recursão (recorrência) no âmbito das coordenações condutuais. Disso se infere que a linguagem surge e se dá como fenômeno social, e que as palavras são coordenações de ação, não entes abstratos ou referências a entes independentes.
É preciso dizer o que Maturana entende por recursão (traduzido precariamente aqui por “recorrência”): a recursão (recorrência) ocorre cada vez que uma operação se aplica sobre as conseqüências de sua aplicação. Assim, por exemplo, quando se extrai a raiz quadrada de um número e, em seguida, se extrai a raiz quadrada do resultado, há uma recursão (recorrência). Já que o exemplo fornecido por Maturana foi matemático, talvez se devesse usar – no lugar de recursão (ou de recorrência) – o conceito de ‘iteração’ (literalmente, repetição), que designa o processo pelo qual uma função opera repetidamente sobre si mesma, o qual tem sido usado na modelagem matemática de processos em que ocorrem laços de realimentação (de auto-reforço), como parece ser o caso.
Cada vez que um observador distingue interações recorrentes (iteradas) entre organismos como coordenações de ações num meio, o que o observador distingue são coordenações condutuais. Cada vez que o observador distingue coordenações condutuais que surgem como resultado de uma história particular de interações, o observador distingue coordenações condutuais consensuais. O termo consensual, portanto, indica que a forma das coordenações condutuais é função de uma história particular.
Maturana supõe que a linguagem tenha surgido, evolutivamente, em algum momento há mais de três milhões de anos na história da linhagem humana. “Há linguagem quando os participantes de um domínio lingüístico usam palavras (coordenação condutual primária) ao coordenar suas ações sobre as distintas circunstâncias que suas coordenações condutuais primárias configuram – as quais aparecem, assim, pela primeira vez, assinaladas como unidades independentes, isto é, como objetos. Disso resulta, por um lado, a produção de um mundo de ações e objetos que só têm existência e significado no domínio social em que surgem e, por outro lado, a produção da auto-observação, que nos leva a distinguir como objetos a nós mesmos e a nossas circunstâncias, na reflexão que constitui a autoconsciência como fenômeno que também tem existência e sentido somente no domínio social” (Maturana, 1985a: 79). Para Maturana, portanto, consciência e eu são fenômenos sociais na linguagem, quer dizer, consciência e eu são distinções que não têm sentido fora do social.
Cabe esclarecer, todavia, o que Maturana entende por objeto. Com o surgimento da linguagem, surgem os objetos como recursões (iterações) de coordenações condutuais consensuais, nas quais a recorrência nas coordenações condutuais oculta as condutas (comportamentos ou ações) consensuais coordenadas. Na gramática, os objetos aparecem como substantivos; são distinções estáticas de ações.
Quarto. O papel fundante da cooperação. Se não houver recorrência de interações cooperativas, então não pode existir nenhum sistema social. “Para que um sistema social exista deve ocorrer a recorrência das interações que resultam na coordenação condutual de seus membros; quer dizer, deve ocorrer a recorrência de interações cooperativas. De fato, se há recorrência de interações cooperativas entre dois ou mais seres vivos, o resultado pode ser um sistema social, se tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual estes seres realizam sua autopoiesis. A recorrência de interações cooperativas é sempre expressão do operar dos seres vivos participantes em um domínio de acoplamento estrutural recíproco e durará tanto quanto este dure.
Conosco, os seres humanos, esse acoplamento estrutural recíproco se dá, espontaneamente, em muitas circunstâncias diferentes, como expressão de nosso modo de ser biológico atual, e aparece para um observador como uma pegajosidade biológica que pode ser descrita como o prazer da companhia, ou como amor, em quaisquer de suas formas. Sem esta pegajosidade biológica, sem o prazer da companhia, sem amor, não há socialização humana, e toda sociedade na qual se perde o amor se desintegra. A conservação dessa pegajosidade biológica, que, na sua origem associal, é o fundamento do social, na minha opinião foi, na evolução dos homínidas, o fator básico na demarcação da deriva filogênica humana que resultou na linguagem e, através dela, na cooperação e não na competição, na inteligência tipicamente humana” (Maturana, 1985a: 80) (n. g.).
Quinto. Toda realidade humana é social. Se toda realidade humana é social, então só somos indivíduos, pessoas, enquanto somos seres sociais na linguagem. “Nossa individualidade como seres humanos é social e, ao ser humanamente social, é lingüisticamente lingüística, quer dizer, está imersa em nosso ser na linguagem. Isso é constitutivo do humano. Somos concebidos, crescemos, vivemos e morremos imersos nas coordenações condutuais que envolvem as palavras e a reflexão lingüística e, por isso, na possibilidade da autoconsciência e, às vezes, na autoconsciência. Em suma, existimos como seres humanos somente num mundo social que, definido por nosso ser na linguagem, é o meio no qual nos realizamos como seres vivos e no qual conservamos nossa organização e adaptação” (Maturana, 1985a: 80).
Sexto. Mudança individual implica mudança social. Se a conduta individual de seus membros é o que define um sistema social como uma sociedade particular, então as características de uma sociedade somente podem mudar se a conduta (comportamento) de seus membros muda. Todavia, “as características dos membros de um sistema social podem mudar de maneira não conservadora, se estes membros têm interações fora do sistema. Isso ocorre no domínio humano de duas maneiras: a) concretamente, em virtude de encontros fora da dinâmica do sistema social (em viagens, por exemplo); e b) em virtude da reflexão na linguagem.
Os encontros fora do sistema social dependem da mobilidade de seus membros e da abertura destes membros para admitir tais encontros. A reflexão na linguagem ocorre cada vez que nossas interações nos levam a descrever nossas circunstâncias ao desencadear em nós uma mudança de domínio que define uma perspectiva de observação. Isso ocorre principalmente de duas maneiras: a) por falha no fluir de nossos atos em algum domínio de nosso mundo cultural, ao interromper-se nosso acoplamento estrutural nesse domínio; e b) porque o operar no amor (a simpatia, o afeto, a preferência) nos leva a olhar as circunstâncias nas quais se encontra o ser ou objeto amado e a valorá-las a partir desse amor (preferência). A primeira maneira de passar à reflexão na linguagem não é necessariamente social; a segunda, o amor, em quaisquer de suas formas, envolve as fontes mesmas da socialização humana e, portanto, o fundamento do humano.
O significativo da reflexão na linguagem é que ela nos leva a contemplar nosso mundo e o mundo do outro e a fazer da descrição de nossas circunstâncias e das circunstâncias do outro parte do meio em que conservamos identidade e adaptação. A reflexão na linguagem nos leva a ver o mundo em que vivemos e a aceitá-lo ou rechaçá-lo conscientemente” (Maturana, 1985a: 81).
Sétimo. A busca da estabilidade de um sistema social humano. “A estabilidade de um sistema social depende de que não se interfira com seu caráter conservador. Por isso, em todo sistema social humano a busca da estabilidade social leva: a) à estabilidade pela consciência social, ao ampliar as instâncias reflexivas que permitem a cada membro uma conduta social que envolva como legítima a presença do outro como um igual; ou b) à estabilidade na rigidez condutual, ao limitar, por um lado, os encontros fora do sistema social e ao reduzir a conversação e a crítica e, por outro lado, mediante a negação do amor, ao substituir a ética (a aceitação do outro) pela hierarquia e pela moralidade (a imposição de normas condutuais), ao institucionalizar relações contingentes de subordinação humana” (Maturana, 1985a: 81).
Oitavo. Identidade individual conservada socialmente. “Em cada sistema social se conserva a identidade da classe de seres vivos que o integram. Assim, se os componentes de um sistema social são formigas, a identidade que se conserva na dinâmica estrutural do sistema social é a identidade-formiga. Se os seres vivos componentes de um sistema social são médicos, a identidade conservada nos seres vivos componentes desse sistema social durante sua dinâmica estrutural é a de médico. Por isso, nossa individualidade como seres humanos envolve a conservação de nossa vida na conservação de tantas identidades quantas forem as sociedades a que pertençamos. Por isso mesmo, podemos deixar de pertencer a um ou outro sistema social sem necessariamente nos desintegrarmos como seres humanos” (Maturana, 1985a: 82).
Nono. O amor como emoção fundante das relações sociais. “Na medida em que o fenômeno social humano se funda no amor, relações sociais que dependem do [ou do modo de] ver o outro que o amor envolve, como as de justiça, respeito, honestidade e colaboração, são próprias do operar de um sistema social humano como sistema biológico e, portanto, pertencem ao quefazer humano quotidiano. Por isso, a negação dessas relações desvirtua o fenômeno social humano ao negar seus fundamentos (o amor), e toda sociedade que faz tal coisa se desintegra, mesmo que seus antigos membros continuem interagindo, em virtude da impossibilidade de se separarem fisicamente” (Maturana, 1985a: 82) (n. i.).
Décimo. Relações de trabalho não são relações sociais. “As relações de trabalho são acordos de produção nos quais o central é o produto, não os seres humanos que (o) produzem. Por isso, as relações de trabalho não são relações sociais. Isso é o que justifica a negação do humano nas relações de trabalho: ser humano em uma relação de trabalho é uma impertinência. O fato das relações de trabalho não serem relações sociais é o que torna possível a substituição dos trabalhadores humanos por autômatos e o uso humano no desconhecimento do humano, que os trabalhadores ignorantes dessa situação vivenciam como exploração” (Maturana, 1985a: 82).
Os cinco pressupostos, as seis implicações e as dez conseqüências expostos acima contêm, segundo Maturana, “o fundamental de tudo o que se pode dizer sobre a biologia do fenômeno social”. Sobre esse material, no entanto, ele ainda faz seis reflexões, à guisa de comentários, que esclarecem o conteúdo, um tanto complexo e obscuro, de suas proposições.
O primeiro comentário é sobre o fato de que “o ser humano é constitutivamente social. Não existe o humano fora do social. O genético não determina o humano, somente funda o humanizável. Para ser humano, é preciso crescer humano entre humanos. Ainda que pareça óbvio, esquece-se disso ao se esquecer que se é humano somente da maneira de ser humano das sociedades a que se pertence. Se pertencemos a sociedades que validam, com a conduta quotidiana de seus membros, o respeito aos mais velhos, a honestidade consigo mesmo, a seriedade na ação e a veracidade no falar, esse será nosso modo de ser humanos e de nossos filhos. Pelo contrário, se pertencemos a uma sociedade cujos membros validam, com sua conduta quotidiana, a hipocrisia, o abuso, a mentira e o auto-engano, esse será nosso modo de ser humanos e de nossos filhos” (Maturana, 1985a: 82) (n. g.).
O segundo comentário é sobre o caráter conservador de todo sistema social, em virtude do qual “toda inovação social encontra, ao menos inicialmente, resistência e, às vezes, de maneira extrema. Por isso, uma inovação social se impõe somente por sedução ou porque novos membros não possam evitar crescer nela. Por último, como toda sociedade se realiza na conduta dos indivíduos que a compõem, há mudança social genuína em uma sociedade somente se há uma mudança condutual genuína de seus membros. Toda mudança social é uma mudança cultural” (Maturana, 1985a: 83).
O terceiro comentário é sobre o amor. “Todo sistema social humano se funda no amor, em quaisquer de suas formas, que une seus membros; e o amor é a abertura de um espaço de existência para o outro como ser humano junto a si. Se não há amor, não há socialização genuína e os seres humanos se separam. Uma sociedade na qual o amor entre seus membros acaba se desintegra. Somente a coerção de um ou outro tipo, quer dizer, o risco de perder a vida, pode obrigar um ser humano, que não é um parasita, a sujeitar-se à hipocrisia de conduzir-se como membro de um sistema social sem amor. Ser social envolve sempre ir com o outro, e só se vai livremente com quem se ama” (Maturana, 1985a: 83).
O quarto comentário é sobre a cooperação e a competição. “A conduta social está fundada na cooperação, não na competição. A competição é constitutivamente anti-social, porque, como fenômeno, consiste na negação do outro. Não existe a “competição saudável”, porque a negação do outro implica a negação de si mesmo, ao pretender que se valida o que se nega. A competição é contrária à seriedade na ação, pois o que compete não vive no que faz, antes se aliena na negação do outro” (Maturana, 1985a: 83).
O quinto comentário é sobre a linguagem. “O central do fenômeno social humano é que este fenômeno se dá na linguagem e o central da linguagem é que somente nela se dão a reflexão e a autoconsciência. A linguagem, em um sentido antropológico, é, portanto, a origem do humano propriamente dito, ao invés de sua queda e libertação. A linguagem tira a biologia humana do âmbito da pura estrutura material e a inclui no âmbito da estrutura conceitual, ao fazer possível um mundo de descrições no qual o ser humano deve conservar sua organização e adaptação. Assim, a linguagem confere ao ser humano sua dimensão espiritual na reflexão, tanto da autoconsciência quanto da consciência do outro” (Maturana, 1985a: 83).
O sexto e último comentário é, ainda, sobre a linguagem. “Porém, a linguagem é também a queda do ser humano, ao permitir as cegueiras frente ao ser biológico que trazem consigo as ideologias [prescritivas, ou] descritivas do que deve ser. Quem não teve a experiência de dilaceramento interno ao negar-se a compartilhar ou a ajudar a quem necessita de ajuda? O fato de que, cada vez que nos negamos a ajudar ou a compartilhar, recorramos a uma explicação para justificar nossa recusa, prova, por um lado, que toda recusa a ajudar ou compartilhar violenta nosso ser biológico básico e, por outro, que nossas ideologias justificativas nos cegam frente a nós mesmos e aos demais” (Maturana, 1985a: 84) (n. i.).
Feitas essas reflexões, a conclusão de Humberto Maturana é a seguinte: “Tudo o que foi dito mostra que não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Ao contrário, o social e o individual são, de fato, inseparáveis. A contradição que a humanidade vive neste domínio é de origem cultural” (Maturana, 1985a: 84). Para Maturana, existe tal contradição cultural em virtude de duas razões principais: a justificação ideológica da competição pela sobrevivência, que se deve à sobrecarga ecológica geradora de escassez (ou de previsível ameaça de escassez) de recursos de subsistência para todos; e “a exclusão, que toda sociedade faz, dos que não satisfazem às condições de pertencimento que a definem, e que justificamos ideologicamente, apesar de sabermos, por íntima reflexão, que todos os seres humanos, como tais, somos iguais” (Idem). De sorte que “os problemas sociais são sempre problemas culturais, porque têm a ver com os mundos que construímos na convivência” (Idem-idem: 85).
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2 - O "linguagear", o "emocionar" e o "conversar"
No quadro do arcabouço teórico apresentado acima, concluído em meados dos anos 80, Humberto Maturana vai desenvolver, até o final da mesma década, as idéias fulcrais com as quais, ao meu ver, pode-se construir uma teoria da cooperação capaz de servir de base para uma teoria do capital social. Essas idéias fulcrais são três: a) o linguagear; b) o emocionar; e c) o conversar.
Comecemos com um resumo no qual Maturana estabelece relações entre essas três idéias, examinando, em primeiro lugar, como ele trata as relações entre a linguagem e o conversar. “Estamos acostumados a considerar a linguagem como um sistema de comunicação simbólica, no qual os símbolos são entidades abstratas que nos permitem movermo-nos num espaço de discursos, flutuante sobre a concreção do viver, ainda que o representem. Eu sustento que tal visão surge de uma falta de compreensão da linguagem como fenômeno biológico. Com efeito, a linguagem, como fenômeno que nos envolve como seres vivos e, portanto, como um fenômeno biológico que se origina em nossa história evolutiva, consiste em um operar recorrente, em coordenações de coordenações condutuais consensuais. Disso resulta que as palavras são nodos de redes de coordenação de ações, não representantes abstratos de uma realidade independente de nosso quefazer. É por isso que as palavras não são inócuas e não dá no mesmo que usemos uma ou outra numa situação determinada. As palavras que usamos não revelam apenas nosso pensar, mas projetam o curso do nosso quefazer. Ocorre que o domínio em que se dão as ações que as palavras coordenam não é sempre aparente em um discurso e há que esperar a sucessão do viver para sabê-lo. Porém, não é isso que quero destacar, e, sim, o fato de que o conteúdo do conversar em uma comunidade não é inócuo para essa comunidade, porque arrasta o seu quefazer... Os seres humanos, somos o que conversamos: esse é o modo como a cultura e a história se encarnam em nosso presente. [Por exemplo] o conversar as conversações que constituem a democracia é o que constitui a democracia. De fato, nossa única possibilidade de viver o mundo que queremos viver é imergindo nas conversações que o constituem como uma prática social quotidiana...” (Maturana, 1988f: 105-6) (n. i.).
Em segundo lugar, vejamos como Maturana trata as relações entre as emoções e o conversar. “Vivemos uma cultura que desvalorizou as emoções em função de uma supervalorização da razão, num desejo de dizer que nós, os humanos, nos diferenciamos dos outros animais porque somos seres racionais. Porém, o fato é que somos mamíferos e, como tais, somos animais que vivem na emoção. As emoções não são obscurecimentos do entendimento, não são restrições à razão; as emoções são dinâmicas corporais que especificam domínios de ação nos quais nos movemos. Uma mudança de emoção implica uma mudança de domínio de ação. Nada acontece conosco, nada fazemos que não esteja definido como uma ação de uma certa classe, acompanhada de uma emoção que a torna possível... [‘Se queremos entender as ações humanas, não devemos olhar o movimento ou o ato como uma operação particular, mas sim a emoção que o possibilita. Um choque entre duas pessoas será vivido como agressão ou acidente, segundo a emoção na qual se encontram os participantes. Não é o encontro o que define o que ocorre, mas a emoção que o constitui como um ato.’] Disso resulta que o viver humano se dá em um contínuo entrelaçamento de emoções e linguagem, como um fluir de coordenações consensuais de ações e emoções. Eu denomino conversar este entrelaçamento de emoção e linguagem. Os seres humanos vivemos em distintas redes de conversações que se entrecruzam em sua realização em nossa individualidade corporal. (Maturana, 1988f: 107) (n. i.) (g. a + n. g.).
Vamos examinar, agora em separado, os três conceitos.
O linguagear. Linguagear é um neologismo que faz referência ao ato de estar na linguagem, sem associar tal ato à fala, como ocorre quando empregamos a palavra ‘falar’. “A linguagem, como fenômeno biológico, consiste em um fluir em interações recorrentes que constituem um sistema de coordenações condutuais (comportamentais) consensuais de coordenações condutuais consensuais. Disso resulta que a linguagem, como processo, não tem lugar no corpo (sistema nervoso) dos participantes, mas no espaço de coordenações condutuais consensuais que se constitui no fluir de seus encontros corporais recorrentes.
Nenhuma conduta, nenhum gesto ou postura corporal particular, constitui, por si só, um elemento da linguagem – mas só é parte dela na medida em que pertence a um fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais. Assim, palavras são somente aqueles gestos, sons, condutas ou posturas corporais que participam como elementos consensuais no fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem. As palavras são, portanto, nodos de coordenações condutuais consensuais; por isso, o que um observador faz ao conferir significado aos gestos, sons, condutas ou posturas corporais, que ele ou ela distingue como sendo palavras, é conotar ou referir-se às relações de coordenações condutuais consensuais nas quais vê que tais gestos, sons, condutas ou posturas corporais participam.
Nestas circunstâncias, o que um observador vê como conteúdo de um linguagear particular está no curso que seguem as coordenações condutuais consensuais que tal linguagem envolve, em relação com o momento na história de interações no qual elas têm lugar, e que, por sua vez, é função do curso que seguem essas mesmas coordenações condutuais no momento de realizar-se. Ao mesmo tempo, como nos encontros corporais, os participantes na linguagem desencadeiam, um sobre o outro, mudanças estruturais que modulam suas respectivas dinâmicas estruturais, estas mudanças estruturais seguem cursos contingentes ao curso que seguem as interações recorrentes dos participantes no linguagear... Em suma: o que fazemos em nosso linguagear tem conseqüências em nossa dinâmica corporal e o que acontece em nossa dinâmica corporal tem conseqüências em nosso linguagear” (Maturana, 1988a: 88).
O emocionar. Maturana sustenta que “o que distinguimos como emoções, o que conotamos com a palavra emoções são disposições corporais que especificam, em cada instante, o domínio de ações em que se encontra um animal (humano ou não), e que o emocionar, como um fluir de uma emoção para outra, é um fluir de um domínio de ações para outro. A barata que cruza lentamente a cozinha e começa a correr precipitadamente para um lugar escuro quando entramos, acendendo a luz e fazendo barulho, teve uma mudança emocional, e no seu fluir emocional passou de um domínio de ações para outro. De fato, reconhecemos isso também na vida quotidiana, ao dizer que a barata passou da tranqüilidade ao medo. Neste caso, ao usar os mesmos termos que usamos para referirmo-nos ao emocionar humano, não fazemos uma antropomorfização do que se passa com a barata, senão que reconhecemos que o emocionar é um aspecto fundamental do operar animal que nós também exibimos.
Dizer que o emocional tem a ver com o animal que há em nós não é, certamente, uma novidade; o que eu agrego, entretanto, é que a existência humana se realiza na linguagem e no racional, a partir do emocional. Com efeito, ao propor que se reconheça que as emoções são disposições corporais que especificam domínios de ações, e que as distintas emoções se distinguem precisamente porque especificam distintos domínios de ações, proponho que se reconheça que, por esse motivo, todas as ações humanas, seja qual for o espaço operacional em que ocorram, fundam-se no emocional porque ocorrem num espaço de ações especificado a partir de uma emoção” (Maturana, 1988a: 90).
Maturana vai então mostrar que “o mesmo ocorre com o raciocinar. Todo sistema racional e, com efeito, todo raciocinar se dá como um operar nas coerências da linguagem, a partir de um conjunto primário de coordenações de ações tomado como coleção de premissas fundamentais aceitas ou adotadas, explícita ou implicitamente, a priori. Porém, ocorre que todo aceitar a priori se dá a partir de um domínio emocional particular no qual queremos o que aceitamos, e aceitamos o que queremos, sem outro fundamento senão o nosso desejo, que se constitui e se expressa em nosso aceitar. Em outras palavras, todo sistema racional tem fundamento emocional, e é por isso que nenhum argumento racional pode convencer ninguém que não esteja, já de partida, convencido a aceitar as premissas a priori que o constituem” (Maturana, 1988a: 90).
É fundamental compreender que “não é a razão que nos leva à ação, e, sim, a emoção. Cada vez que escutamos alguém dizendo que fulano ou sicrana é racional e não emocional, podemos escutar o substrato de emoção que está por trás dessa afirmação, em termos de um desejo de ser ou de obter. Cada vez que afirmamos ter uma dificuldade no fazer, de fato temos uma dificuldade no querer que fica oculta pela argumentação sobre o fazer. Falamos como se fosse óbvio que certas coisas devessem ocorrer em nossa convivência com os outros, porém não as queremos e é por isso que não ocorrem. Ou dizemos que queremos uma coisa, porém não a queremos e queremos outra, e fazemos, via de regra, o que queremos, dizendo que não se pode fazer aquilo [que dizemos que queremos mas não queremos]. Há certa sabedoria consuetudinária tradicional quando se diz: “pelos seus atos os conhecereis”. Porém, o que é que conheceremos observando as ações de outrem? Conheceremos suas emoções como fundamentos que constituem suas ações; não conheceremos o que poderíamos chamar de seus sentimentos, senão o espaço de existência efetiva no qual esse ser humano se move” (Maturana, 1988c: 23-4) (n. i.).
Essa distinção entre emoção e sentimento é fundamental na teoria de Maturana, que é – não se deve esquecer – uma teoria biológica do fenômeno social. E, para ele, a emoção é biológica, não psicológica como o sentimento.
O conversar. “O menino (ou a menina), em sua concepção, vive imerso no linguagear e no emocionar da mãe e de outros adultos e crianças que formam o seu entorno de convivência durante a gravidez e depois do nascimento. O resultado é que, como embrião, feto, criança ou adulto, o ser humano adquire seu emocionar em seu viver congruente com o emocionar dos outros seres, humanos ou não, com os quais convive.
Habitualmente, diríamos que o menino (ou a menina) aprende a emocionar-se, de uma ou de outra maneira, como ser humano, com o emocionar-se dos adultos e crianças (e outros animais) que formam seu entorno humano e não humano; ele (ou ela) se alegrará, se enternecerá, se envergonhará, se aborrecerá..., seguindo as contingências das circunstâncias em que estes [outros seres do seu entorno] se alegram, se enternecem, se envergonham, se aborrecem... etc. Como este processo se dá em cada novo ser humano, junto com a constituição e expansão dos domínios de coordenações condutuais consensuais em que participa... linguagear e emocionar se entrelaçam em um modular-se mútuo como simples resultado da convivência com outros [seres humanos]... Ao movermo-nos na linguagem em interações com outros [seres humanos], nossas emoções mudam segundo um emocionar que é função da história de interações que vivemos, e na qual surgiu nosso emocionar como um aspecto de nossa convivência com outros [seres humanos], fora e dentro do linguagear. Ao mesmo tempo, ao fluir nosso emocionar em um curso que resultou de nossa história de convivência dentro e fora da linguagem, mudamos de domínio de ações e, portanto, muda o curso de nosso linguagear e de nosso raciocinar. A este fluir entrelaçado de linguagear e emocionar chamo conversar, e chamo de conversação ao fluir do conversar em uma rede particular de linguagear e emocionar” (Maturana, 1988a: 92) (n. i.) (g. a. + n. g.).
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3 - Um novo olhar sobre a evolução humana
Há aqui um outro olhar teórico sobre o processo evolutivo, desenvolvido a partir do que Humberto Maturana (e Jorge Mpodozis) chamaram de “fenótipo ontogênico”.
“O humano surge, na história evolutiva da linhagem hominídea a que pertencemos, ao surgir a linguagem. No âmbito biológico, uma espécie é uma linhagem, ou sistema de linhagens, constituída como tal ao conservar, de maneira transgeracional na história reprodutiva de uma série de organismos, um modo de viver particular. Dado que todo ser vivo existe como um sistema dinâmico em contínua mudança estrutural, o modo de viver que define uma espécie, uma linhagem ou um sistema de linhagens, ocorre como uma configuração dinâmica de relações entre o ser vivo e o meio que se estende em sua ontogenia, desde a concepção até a morte. A tal modo de viver, ou configuração dinâmica de relações ontogênicas entre ser vivo e meio, que, ao conservar-se transgeracionalmente em uma sucessão reprodutiva de organismos, constitui e define a identidade de um sistema de linhagens, Jorge Mpodozis e eu chamamos fenótipo ontogênico. O fenótipo ontogênico não está determinado geneticamente, pois, como modo de viver que se desenvolve na ontogenia ou história individual de cada organismo, é um fenótipo, e, como tal, ocorre nessa história individual, necessariamente, como um presente que é gerado em cada instante em um processo epigenético.
O que a constituição genética de um organismo determina no momento de sua concepção é um âmbito de ontogenias possíveis, das quais sua história de interações com o meio realizará uma, em um processo de epigênesis. Devido a isso, ao constituir-se um sistema de linhagens, o genótipo, ou constituição genética dos organismos que o constituem, fica solto e pode variar, desde que tais variações não interfiram na conservação do fenótipo ontogênico que define o sistema de linhagens. Por isso mesmo, se, em um momento da história reprodutiva que constitui uma linhagem, muda o fenótipo ontogênico que se conserva, dali para frente muda a identidade da linhagem ou surge uma nova linhagem como uma nova forma ou espécie de organismos paralela à anterior.
Nessas circunstâncias, para compreender o que ocorre na história da mudança evolutiva de qualquer classe de organismos, é necessário encontrar o fenótipo ontogênico que nela se conserva e em torno do qual se produzem tais mudanças. Assim, para compreender a história evolutiva que dá origem ao humano, é necessário, primeiro, olhar o modo de vida que, ao conservar-se no sistema de linhagens hominídeo, torna possível a origem da linguagem e, depois, olhar o novo modo de vida que surge com a linguagem, o qual, ao conservar-se, estabelece a linhagem particular a que nós, os seres humanos modernos, pertencemos” (Maturana, 1988b: 103-4).
Desta visão, Maturana vai destacar quatro aspectos:
“a) A origem da linguagem, como um domínio de coordenações condutuais consensuais, exige uma história de encontros recorrentes, baseados na aceitação mútua, suficientemente intensa e prolongada.
b) O que sabemos de nossos ancestrais, que viveram na África há 3,5 milhões de anos, indica que tinham um modo de viver – em pequenos grupos formados por alguns poucos adultos, jovens e crianças – centrado na coleta, no compartilhamento dos alimentos, na colaboração entre machos e fêmeas na criação dos filhos, numa convivência sensual e numa sexualidade de encontro frontal.
c) O modo de vida indicado em b, o qual ainda conservamos no fundamental, oferece tudo o que é exigido: primeiro, para a origem da linguagem; segundo, para que, no surgimento da linguagem, se constitua o conversar como entrecruzamento do linguagear e do emocionar; e, terceiro, para que, com a inclusão do conversar como outro elemento a ser conservado no modo de viver hominídeo, se constitua o fenótipo ontogênico particular que define o sistema de linhagens a que nós, seres humanos modernos, pertencemos.
d) O fato de que os chimpanzés e os gorilas atuais, cujo cérebro tem dimensões comparáveis às de nossos ancestrais, possam ser incorporados na linguagem mediante a convivência com eles [dos humanos com eles!] em AMESLAN (American Sign Language), sugere que o cérebro de nossos ancestrais de 3 milhões de anos atrás deve também ter sido adequado para isso” (Maturana, 1988b: 104-5) (n. i.).
“O que diferencia a linhagem hominídea de outras linhagens de primatas é um modo de vida no qual o compartilhar alimentos – com tudo o que isso implica em termos de proximidade, aceitação mútua e coordenações de ações operadas nos atos de passar coisas de uns para outros – joga um papel central. É o modo de vida hominídeo o que torna possível a linguagem, e é o amor, como a emoção que constitui o espaço de ações nos quais se dá o modo de viver hominídeo, a emoção central na história evolutiva que nos dá origem” (Maturana, 1988b: 105).
Ora, prossegue Maturana, “o modo de viver propriamente humano se constitui, como já disse, quando se agrega o conversar ao modo de viver hominídeo e começa a conservar-se o entrecruzamento do linguagear com o emocionar como parte do fenótipo ontogênico que nos define. Ao surgir o modo de vida propriamente humano, o conversar como ação pertence ao âmbito emocional no qual surge a linguagem como modo de estar nas coordenações de ações que ocorrem na intimidade da convivência sensual e sexual” (Maturana, 1988b: 105). Sinais de que isso é assim aparecem: a) nas imagens táteis que usamos para referirmo-nos ao que sentimos nas vozes da fala: dizemos que uma voz pode ser suave, acariciante ou dura; b) nas mudanças fisiológicas, hormonais, por exemplo, desencadeadas com a fala; e c) no prazer que temos em conversar e em nos movermos no linguagear” (Idem).
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4 - O que funda o humano
Para concluir (dizendo quase tudo de novo, porém de maneira mais compreensível), vejamos como Maturana, a partir dessas três idéias fulcrais – o linguagear, o emocionar e o conversar –, define o que funda o humano.
“Em geral, pensamos no humano, no ser humano, como um ser racional, e freqüentemente declaramos em nosso discurso que o que distingue o ser humano dos outros animais é o seu ser racional... Ao nos declararmos seres racionais, vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, não vemos o entrelaçamento quotidiano entre razão e emoção que constitui nosso viver humano e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional. As emoções não são o que correntemente chamamos de sentimentos. Do ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os distintos domínios de ação em que nos movemos. Quando alguém muda de emoção, muda de domínio de ação. Na verdade, todos nós sabemos disso na praxis da vida quotidiana, porém o negamos, porque insistimos em dizer que o que define nossas condutas como humanas é seu ser racional. Ao mesmo tempo, todos sabemos que, quando estamos em uma certa emoção, existem coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e aceitamos como válidos certos argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção... Todo sistema racional se constitui no operar com premissas aceitas a priori a partir de certa emoção.
Biologicamente, as emoções são disposições corporais que determinam ou especificam domínios de ações... são um fenômeno próprio do reino animal. Todos os animais as temos... Falamos como se o racional tivesse um fundamento transcendental que lhe dá validade universal, independentemente do que fazemos como seres vivos. Não é assim. Todo sistema racional se funda em premissas fundamentais aceitas a priori, aceitas porque sim, aceitas porque alguém gosta delas, aceitas porque alguém, simplesmente, as aceita a partir de suas preferências... Todo argumento sem erro lógico é, obviamente, racional para aquele que aceita as premissas fundamentais nas quais este argumento se funda. O humano se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. O racional é constituído pelas coerências operacionais dos sistemas argumentativos que construímos na linguagem para defender ou justificar nossas ações. Habitualmente, vivemos nossos argumentos racionais sem fazer referência às emoções em que se fundam, porque não sabemos que eles e todas as nossas ações têm um fundamento emocional, e cremos que tal condição seria uma limitação ao nosso ser racional” (Maturana, 1988c: 14-19) (n. g.).
Para explicar “por que o fundamento emocional de nossa razão não é uma limitação... [Maturana vai ter que fazer referência] à origem do humano e à origem da linguagem. Para dar conta da origem do humano, temos de começar fazendo referência ao que ocorria há 3,5 milhões de anos. Sabemos, por registros fósseis, que, há 3,5 milhões de anos, havia primatas bípedes, os quais, como nós, possuíam ombros e caminhar ereto, porém tinham um cérebro muito menor (aproximadamente um terço do cérebro humano atual). Sabemos, também, que esses primatas viviam em grupos pequenos, famílias ampliadas de dez a doze indivíduos que incluíam bebês, crianças e adultos. Examinando sua dentadura, sabemos que eram animais comedores de grãos, portanto, coletores e, presumivelmente, caçadores apenas ocasionais. Tudo isso indica que esses nossos antecessores compartilhavam entre si os alimentos e estavam imersos em uma sensualidade recorrente, com machos que participavam da criação dos filhos, desenvolvendo um modo de vida que funda uma linhagem que chega até o presente. Durante a trajetória dessa linhagem, o cérebro cresceu de 430 cc a 1450 cc ou 1500 cc” (Maturana, 1988c: 19) (n. i.).
Após tal introdução, Maturana vai tentar responder a pergunta que aqui parece ser central: como surgiu o humano propriamente dito nesse processo e qual a relação entre isso e o crescimento do cérebro? “Diz-se, freqüentemente, que a história da transformação do cérebro humano tem a ver com o uso de instrumentos, principalmente com o desenvolvimento da mão em sua fabricação. Não compartilho dessa opinião, pois a mão já estava desenvolvida nesses nossos antecessores. Me parece mais factível que a destreza e sensibilidade manual que nos caracteriza tenha surgido na arte de descascar as pequenas sementes das gramíneas da savana, e na participação da mão na carícia, em virtude da sua capacidade de amoldar-se a qualquer superfície do corpo de maneira suave e sensual. Sustento, outrossim, que a história do cérebro humano está relacionada principalmente com a linguagem. Quando um gato brinca com uma bola, usa as mesmas coordenações musculares que nós... O macaco [é capaz de pegar algo que lhe cai das mãos] com a mesma ou com maior elegância do que nós, ainda que sua mão não possa se abrir totalmente como a nossa. O peculiar do humano não está na manipulação, mas na linguagem e no seu entrelaçamento com o emocionar” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.).
Surge, porém, uma outra pergunta: “se a humanização do cérebro primata tem a ver com a linguagem, com o que tem a ver a origem da linguagem? Habitualmente, dizemos que a linguagem é um sistema simbólico de comunicação. Eu sustento que tal afirmação nos impede de ver que os símbolos são secundários na linguagem. Se vocês estivessem olhando pela janela duas pessoas sem ouvir os sons que emitem, o que deveriam observar para concluir que elas estão conversando? Quando se pode dizer que alguém está na [ou imerso no processo de] linguagem? A resposta é simples e todos a sabemos: alguém diz que duas pessoas estão conversando quando vê que o curso de suas interações constitui-se em um fluir de coordenações de ações. Se vocês não vêem coordenações de ações ou, segundo o jargão moderno, se vocês não vêem comunicação, nunca falarão de linguagem. A linguagem tem a ver com coordenações de ações: não com qualquer coordenação de ação, mas com coordenações de ações consensuais. Ademais, a linguagem é um operar em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.).
Ora, para Maturana, “o que define uma espécie... [não é uma configuração genética que se conserva através da história reprodutiva de uma população ou de um sistema de populações, mas] é um modo de vida, uma configuração de relações mutantes entre organismo e meio, que começa com a concepção do organismo e termina com sua morte, e que se conserva geração após geração como um fenótipo ontogênico, como um modo de viver em um meio, e não como uma configuração genética particular. A mudança evolutiva se produz, segundo tal ponto de vista, quando se constitui uma nova linhagem ao mudar o modo de vida que se conserva em uma sucessão reprodutiva [e não em virtude da mudança na configuração genética conservada por uma população ou sistema de populações]. Por isso, na medida em que a mudança evolutiva se dá através da conservação de novos fenótipos ontogênicos, o central no fenômeno evolutivo está na mudança do modo de vida e em sua conservação na constituição de uma linhagem de organismos congruentes com sua circunstância e não em contradição com esta última” (Maturana, 1988c: 20) (n. i.) (n. g.).
O humano foi, portanto, fundado por um novo modo de vida que surgiu com o linguagear, a partir “das coordenações condutuais de compartilhar alimentos, passando de uns para outros no espaço de interações recorrentes da sensualidade personalizada, que trazem consigo o encontro sexual frontal e a participação dos machos na criação dos filhos, já presente em nossos ancestrais há 3,5 milhões de anos. Em outras palavras, digo que é na conservação de um modo de vida onde há o compartilhar alimentos, no prazer da convivência, do encontro e do reencontro sensual recorrente, no qual os machos e as fêmeas se encontram na convivência em torno da criação dos filhos, onde pôde dar-se – e de fato se deu – o modo de vida em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais que constituem a linguagem. Enfim, penso também que o modo de vida no qual as coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais surgem na intimidade da convivência, na sensualidade e no compartilhar, dando origem à linguagem, pertence à história da nossa linhagem há pelo menos três milhões de anos. E digo isto levando em consideração o grau de envolvimento anatômico e funcional que nosso cérebro tem com a linguagem oral” (Maturana, 1988c: 22).
Um resumo do resumo seria o seguinte:
a) “O humano surge, na história evolutiva a que pertencemos, ao surgir a linguagem,
b) porém, se constitui, de fato, como tal, na conservação de um modo de viver particular centrado:
b1) no compartilhamento dos alimentos,
b2) na colaboração de machos e fêmeas na criação dos filhos,
b3) no encontro sensual individualizado recorrente,
b4) e no conversar.
c) Por isso, todo quefazer humano se dá na linguagem,
d) e o que, no viver dos seres humanos, não se dá na linguagem, não é quefazer humano;
e) ao mesmo tempo, como todo quefazer humano se dá a partir de uma emoção, nada humano ocorre fora do entrelaçamento do linguagear com o emocionar
f) e, portanto, o humano se vive sempre em um conversar.
g) Finalmente, o emocionar, em cuja conservação se constitui o humano, ao surgir a linguagem, centra-se:
g1) no prazer da convivência,
g2) na aceitação do outro junto a si,
g3) quer dizer, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no qual aceitamos o outro na proximidade da convivência.
O fato de que amor seja a emoção que funda, na origem do humano, o gozo do conversar que nos caracteriza, faz com que tanto nosso bem-estar quanto nosso sofrimento dependam de nosso conversar” (Maturana, 1988a: 94-5).
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5 - Redes de conversações
Para Maturana, todo quefazer humano se dá em algum tipo de conversação. Esta afirmativa tem conseqüências importantes para uma teoria biológica do fenômeno social, dentre as quais vale destacar a existência das chamadas “redes de conversações”.
“Dizer que todo quefazer humano se dá no conversar é dizer que todo quefazer humano, seja qual for o domínio de experiência no qual tenha lugar – desde o domínio que constitui o espaço físico até o que constitui o espaço místico – se dá como um fluir de coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais, em um entrelaçamento consensual com um fluir emocional que também pode ser consensual. Por isso, os distintos quefazeres humanos se distinguem tanto pelo domínio de experiência em que têm lugar as ações que os constituem como pelo fluir emocional que envolvem, e, de fato, se dão na convivência como distintas redes de conversações” (Maturana, 1988a: 95). Mas “existem tantos tipos de conversações quantos são os modos recorrentes de fluir no entrelaçamento do emocionar e do linguagear que se dão nos distintos aspectos da vida quotidiana... As conversações, portanto, envolvem um emocionar consensual entrelaçado com o linguagear no qual comparecem classes de emoções não presentes no emocionar mamífero fora da recorrência das coordenações condutuais consensuais do linguagear” (Idem).
Maturana destaca, como alguns desses tipos de conversações, a cultura e os sistemas de convivência. “Uma cultura é uma rede de conversações que definem um modo de viver, um modo de estar orientado no existir, tanto no âmbito humano quanto no não humano, e envolve um modo de atuar, um modo de emocionar e um modo de crescer no atuar e no emocionar. Cresce-se numa cultura vivendo nela como um tipo particular de ser humano na rede de conversações que a define. Por isso, os membros de uma cultura vivem a rede de conversações que a constituem, sem esforço, como um substrato natural e espontâneo, como algo dado para alguém apenas em virtude do seu modo de ser, independente dos sistemas sociais e não sociais a que possa pertencer” (Maturana, 1988a: 96-7).
Por sua vez, “os distintos sistemas de convivência que constituímos na vida quotidiana se diferenciam pela emoção que especifica o espaço básico de ações nas quais se dão nossas relações com os outros e com nós mesmos. Assim, temos:
i) Sistemas sociais, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação do outro na convivência. Nesse sentido, sistemas de convivência fundados em uma emoção distinta do amor não são sistemas sociais;
ii) Sistemas de trabalho, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do compromisso, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação de um acordo para a realização de uma tarefa. Nesse sentido, os sistemas de relações de trabalho não são sistemas sociais;
iii) Sistemas hierárquicos ou de poder, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção que constitui as ações de auto-negação e de negação do outro, na aceitação da própria subordinação ou da sujeição do outro, numa dinâmica de ordem e obediência. Nesse sentido, os sistemas hierárquicos não são sistemas sociais.
Existem, naturalmente, outros sistemas de convivência, fundados em outras emoções, porém o que nos interessa destacar agora é o fato de que cada um desses sistemas se constitui como uma rede particular de conversações, que configuram um modo particular de emocionar, a partir de uma emoção definidora básica” (Maturana, 1988a: 97).
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6 - O que funda o social
Estabelecido o que funda o humano, Maturana vai tentar estabelecer o que funda o social.
“A emoção fundamental que torna possível a história de hominização é o amor. Sei que pode parecer chocante o que digo, porém insisto: é o amor. Não estou falando do ponto de vista do cristianismo. Se vocês me perdoam, direi que, desgraçadamente, a palavra amor foi desvirtuada, a emoção que esta palavra conota foi desvitalizada, de tanto se dizer que o amor é algo especial e difícil. O amor é constitutivo da vida humana, porém não é nada especial. O amor é o fundamento do social, porém nem toda convivência é social. O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas onde se realiza a operacionalidade da aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. Por isso, digo que o amor é a emoção que funda o social; sem aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social.
Em outras palavras, digo que somente são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência e que tal aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, onde haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não podemos esperar que surja a linguagem. Se não há interações na aceitação mútua, produz-se separação ou destruição. Em outras palavras, se na história dos seres vivos existe alguma coisa que não pode surgir na competição, essa coisa é a linguagem.
Repito o que já disse: a linguagem, como domínio de coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais, somente pode surgir em uma história de coordenações condutuais consensuais – e isso exige uma convivência constituída na operacionalidade da aceitação mútua, num espaço de ações que envolve constantemente coordenações condutuais consensuais nessa operacionalidade. Como também já disse, isso deve ter ocorrido na história evolutiva de nossos ancestrais; o que sabemos sobre o seu modo de vida mais provável, há três milhões de anos, revela que já existia naquela época tal modo de vida.
Ademais, este modo de vida ainda se conserva em nós. Com efeito, ainda somos animais coletores, e isso fica evidente tanto no nosso comportamento nos supermercados [como nos sentimos à vontade recolhendo os produtos nas gôndolas e prateleitas] quanto na nossa dependência vital da agricultura; ainda somos animais compartilhadores, e isso fica evidente na criança que tira a comida da boca para dá-la a mãe, e no que sentimos quando alguém nos pede uma esmola; ainda somos animais que vivem na coordenação consensual de ações, e isso notamos pela facilidade com que nos dispomos a participar de atividades cooperativas, quando não temos um argumento racional para recusar; ainda somos do tipo de animais cujos machos participam no cuidado das crias, coisa que pode ser comprovada pela disposição dos homens para cuidar dos filhos, quando não têm argumentos racionais para desvalorizar tal atividade; ainda somos animais que vivemos em grupos pequenos, o que é evidente em nosso sentido de pertencer a uma família; ainda somos animais sensuais, que vivemos espontaneamente o tocar-se e acariciar-se, quando não pertencemos a uma cultura que nega a legitimidade do contato corporal; e, por último, ainda somos animais que vivemos a sensualidade no encontro personalizado com o outro, o que fica evidente pela nossa queixa quando isso não ocorre.
Porém, sobretudo, no presente da história evolutiva a que pertencemos, e que começou com a origem da linguagem – quando o estar na linguagem se fez parte do modo de vida que, ao conservar-se, constituiu a linhagem Homo a que pertencemos – somos animais dependentes do amor. O amor é a emoção central na história evolutiva humana desde seu início, e toda essa história se dá como uma história na qual a conservação de um modo de vida no qual o amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, é uma condição necessária para o desenvolvimento físico, comportamental, psíquico, social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde física, comportamental, psíquica, social e espiritual do adulto.
Num sentido estrito, os seres humanos nos originamos no amor e somos dependentes dele. Na vida humana, a maior parte do sofrimento vem da negação do amor: os seres humanos somos filhos do amor... Não estou falando como cristão, não me importa o que disse o Papa, não estou imitando o que ele disse, estou falando a partir da biologia. Estou falando a partir da compreensão das condições que tornam possível uma história de interações recorrentes suficientemente íntima para que possa ocorrer a ‘recursividade’ nas coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem” (Maturana, 1988c: 24-6) (n. i.).
Quando Maturana fala que “o amor é o fundamento do social”, ele está se referindo àquela “pegajosidade biológica” (cuja origem é associal) que funda o social, porquanto se manifesta como abertura e conservação de espaços de convivência que englobam vários indivíduos numa mesma proximidade, a partir do prazer da companhia, da simpatia, do afeto, da preferência, mas, fundamentalmente, pela aceitação do outro. “A emoção que funda o social, como a emoção que constitui o domínio de ações no qual o outro é aceito como um legítimo outro na convivência, é o amor” (Maturana, 1988c: 27). Destarte, “relações humanas que não estejam fundadas no amor... não são relações sociais. Portanto, nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as comunidades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua. Distintas emoções especificam distintos domínios de ações. Conseqüentemente, comunidades humanas fundadas em outras emoções, distintas do amor, estarão constituídas em outros domínios de ações que não serão o da colaboração e do compartilhamento em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e não serão comunidades sociais” (Idem: 27-8).
Para Maturana, portanto, “os seres humanos não somos todo o tempo sociais; o somos somente na dinâmica das relações de aceitação mútua. Sem ações de aceitação mútua não somos sociais. Com efeito, na biologia humana, o social é tão fundamental que aparece a cada instante e por todas as partes” (Maturana, 1988d: 77).
Como vimos, nem todas as relações de convivência são relações sociais. Relações de trabalho, por exemplo, não são relações sociais. “É justamente porque as relações de trabalho não são relações sociais que se requer leis que as regulem. No marco das relações sociais não cabem os sistemas legais, porque as relações humanas se dão na aceitação mútua e, portanto, no respeito mútuo” (Maturana, 1988d: 78).
Da mesma forma, relações hierárquicas também não são relações sociais, porquanto “se fundam na negação mútua implícita, na exigência de obediência e entrega de poder que trazem consigo. O poder surge com a obediência e a obediência constitui o poder como relações de mútua negação. As relações hierárquicas são relações fundadas na sobrevalorização e na desvalorização que constituem, respectivamente, o poder e a obediência e, portanto, não são relações sociais... O poder não é algo que um ou outro indivíduo tem, é uma relação na qual se concede algo a alguém através da obediência – e a obediência se constitui quando alguém faz algo que não quer fazer, cumprindo uma ordem. O que obedece nega a si mesmo, porque, para salvar ou obter algo, faz o que não quer a pedido do outro. O que obedece atua com contrariedade, e na contrariedade nega o outro, porque o rejeita e não o aceita como um legítimo outro na convivência. Ao mesmo tempo, o que obedece nega-se a si mesmo ao obedecer, dizendo: ‘não quero fazer isso, porém, se não obedeço, me expulsam ou me castigam, e não quero que me expulsem ou castiguem’. Porém, o que manda também nega o outro e se nega a si mesmo ao não encontrar-se com o outro como um legítimo outro na convivência. Nega-se a si mesmo porque justifica a legitimidade da obediência do outro em sua sobrevalorização, e nega o outro porque justifica a legitimidade da obediência com a [ou a partir da suposição da] inferioridade do outro.
De sorte que as relações de poder e de obediência, as relações hierárquicas, não são relações sociais. Um exército não é um sistema social... [ainda que] entre os membros de um exército possam efetivar-se relações sociais” (Maturana, 1988d: 76-7) (n. i.).
Para concluir, Maturana diz que “os fenômenos sociais têm a ver com a biologia e que a aceitação do outro não é um fenômeno cultural. Além disso,” – prossegue – “sustento que o cultural, no social, tem a ver com a delimitação ou restrição da aceitação do outro. É na justificação racional dos modos de convivência onde inventamos os discursos ou desenvolvemos os argumentos que justificam a negação do outro” (Maturana, 1988d: 78).
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7 - Competição ou cooperação?
Baseado neste arcabouço conceitual, Maturana vai bater de frente com as explicações correntes sobre a natureza competitiva do ser humano, seja nas suas formas hard (do tipo das hipóteses urdidas pelos sociobiólogos e pelos socialdarwinistas), seja nas suas formas mais soft (do tipo das hipóteses cerebradas por economistas, sociólogos, antropólogos e biólogos da evolução que trabalham, baseados na teoria dos jogos, com o nonzero, ou melhor, com a non-zero-sumness, com a rational choice, enfim, com a combinação otimizada entre competição e colaboração ou com a prevalência da relação “olho por olho” a longo prazo) (2).
Seu esquema explicativo é simples. Se o que nos torna humanos é a linguagem, e se a linguagem é uma coisa que, definitivamente, não pode surgir na competição, então a competição não pode ser constitutiva do ser humano, nem individual nem socialmente falando, isto é, individual –e socialmente falando, o primata bípede que nos antecedeu não se teria humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo.
Maturana sustenta que “o fenômeno da competição que se dá no âmbito cultural humano e que implica contradição e negação do outro, não se dá no âmbito biológico. Os seres vivos não humanos não competem, deslizam uns sobre os outros e com os outros em congruência recíproca ao conservar sua autopoiesis e sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros e não os nega.
Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come e o outro, não, isso não é competição. E não é [competição] porque não é central para o que ocorre [inclusive e sobretudo em termos emocionais] com o que come, que o outro não coma. Ao contrário, no âmbito humano, a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é parte fundamental do [e constitui o próprio] modo de relação.
A vitória é um fenômeno cultural que se constitui com a derrota do outro. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável. No âmbito biológico não humano tal fenômeno não se dá. A história evolutiva dos seres vivos não envolve competição. Por isso, da evolução do humano não participa a competição, senão a conservação de um fenótipo ontogênico ou modo de vida, no qual o linguagear pode surgir como uma variação circunstancial para sua realização quotidiana que não requer nada especial” (Maturana, 1988c: 21-2) (n. i.).
Por outro lado, observa Maturana, “o ato de compartilhar não consiste em deixar que o outro coma ao seu lado. Consiste em transferir o que se tem para o outro. Eu passo para outro algo que tenho, esse é um ato de compartilhar.... Somos animais compartilhadores porque pertencemos à história de compartilhar. Eu não sei em que momento desses três milhões de anos atrás começou o compartilhamento em nossa linhagem, porém somos animais compartilhadores” (Maturana, s/d: 71-72). “O compartilhamento é uma forma de colaboração. Logo, somos animais cooperadores. A cooperação se dá somente e exclusivamente nas relações de mútuo respeito. A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão. A obediência não é um ato de cooperação. Nós somos animais enquanto pertencemos à história que nos dá origem, porém somos cooperadores devido a que não temos impedimentos para cooperar; quando, nas relações amistosas, aceitamos o convite para cooperar, sentimo-nos bem” (Idem).
Maturana confronta também aquelas teorias que tentam explicar a evolução humana e o (ou em virtude do) extraordinário crescimento do cérebro humano, a partir do desenvolvimento da mão no (e/ou do) uso da ferramenta, sobretudo da arma utilizada para matar.
Em primeiro lugar, ele sustenta que “não é o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem [que nos constitui humanos] e sim o modo de conviver”, o qual jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa (base da colaboração) capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência. Se compararmos o homem com o chimpanzé, veremos que as diferenças genéticas (em termos de DNA) são muito pequenas, não ultrapassando os 3%; porém, “as diferenças no viver são superlativas, somos muito distintos” (Maturana, s/d: 70), ou seja: o fundamental aqui é o fenotípico, não o genotípico.
Em segundo lugar, ele sustenta que nada obriga que a mão se tenha desenvolvido mais ao fabricar instrumentos do que ao debulhar e descascar vegetais e, sobretudo, ao acariciar sensualmente todas as concavidades, convexidades e reentrâncias dos corpos dos semelhantes (tanto dos parceiros sexuais, quanto dos filhos e de outros membros do grupo). Quem quer ver uma coisa vê essa coisa, ou melhor, quem tem medo de ver uma coisa não vê essa coisa – como aqui parece ser o caso: culturalmente vacinado contra o contato corporal, o pensamento da civilização patriarcal e predadora não pode admitir a centralidade da sensualidade na geração continuada do humano.
Em terceiro lugar, ele sustenta que o ato de matar é, ao contrário do que supõe qualquer tipo de hunting hipothesis, “completamente distinto do ato de caçar. Se alguém observa as culturas caçadoras, vê que estas culturas consideram o ato de caçar como um ato sagrado: há agradecimento pelo animal que morre porque isso produz alimento para a vida. Da morte do animal se vai obter vida; porém, o ato de matar... tem um caráter totalmente distinto, não se mata... para comer e, sim, para exterminar. O ato de matar... é um assassinato! Quando se mata para exterminar, isso traz consigo uma emoção completamente distinta, não há agradecimento, é um ato de apropriação, é completamente diferente. O artefato que uso, por exemplo, para caçar... um animal que vou consumir, é um instrumento de caça. Todavia, o instrumento que uso para matar [e. g.] um lobo [o qual, pelo fato de ter sido excluído da minha convivência, tornou-se uma ameaça para os outros animais dos quais me apropriei e, por conseguinte, inclusive para mim e para meus semelhantes neste modo de vida que instaurei] é uma arma. A emoção é distinta e é a emoção com a qual se usa um instrumento que o torna um instrumento de caça ou uma arma. No momento em que se mata por matar, aparece a guerra, aparece a inimizade, porém aparece outra coisa mais: aparece a legitimidade da solução de um conflito com a total negação do outro, porque é assim que funciona. A apropriação e a guerra caminham juntas e se desencadeiam mutuamente, quando da negação do outro se passa à sua eliminação, quando alguém se apropria do modo de viver do outro, quando a apropriação se converte em um modo de vida e quando alguém pode se apropriar de tudo, das coisas, das idéias, do sexo do outro... O ato de matar o lobo para excluí-lo da sua comida não é trivial na história. As crianças aprendem a fazer isso como uma coisa normal e isso se transforma em um modo de viver e, portanto, em uma cultura. Não se aprende somente a técnica de matar o lobo, se aprende também a emoção que acompanha o ato, a emoção que acompanha a apropriação, a emoção que acompanha o controle. Se se perde a confiança, aparece o controle, as relações passam a ser relações de controle e com isso temos a multiplicação do patriarcado” (Maturana, s/ d: 75-6).
Para Maturana, é como se tudo fizesse parte de um mesmo complexo macro-cultural: “a guerra não acontece, nós a fazemos; a miséria não é um acidente histórico, é obra nossa, porque queremos um mundo com as vantagens anti-sociais, que traz consigo a justificação ideológica da competição na justificação da acumulação de riqueza, mediante a geração de servidão sob o pretexto da eficácia produtiva... Enfim, afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não queremos viver sem dar-nos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam” (Maturana, 1985a: 85).
Maturana sustenta que “foi a conduta dos seres humanos... que fez do presente humano o que é...; vivemos o mundo que vivemos porque, socialmente, não queremos viver outro” (Maturana, 1985a: 85). Ora, impõem-se aqui, inevitavelmente, as perguntas: mas, afinal, que mundo é esse em que vivemos? E por que não queremos viver em outro?
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8 - Conversações matrísticas e patriarcais
A resposta de Maturana está baseada numa hipótese já conhecida, de investigadores heterodoxos como Riane Eisler (1987) e Ralph Abraham (1989), baseada, em geral, na pesquisa arqueológica de Marija Gimbutas (1991) – mas que também foi aventada, conquanto apenas tangencialmente, por teóricos do capital social, como Robert Putnam – sobre a existência de grandes tipos, digamos, civilizatórios (macro-culturais) de sociedades: por exemplo, sociedades de dominação e sociedades de parceria (3). Segundo algumas versões desta hipótese, estaríamos vivendo hoje – e nos últimos cinco ou seis mil anos – imersos em um tipo macro-cultural de padrão civilizatório de dominação que nega a colaboração: a cultura patriarcal, caracterizada pela conservação de “um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação dos recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade” (Maturana, 1993: 24).
Para compreender corretamente a hipótese de Maturana, temos de retomar o seu conceito de “redes de conversações”. Recordemos que Maturana chama de conversar o entrelaçamento do linguagear com o emocionar e sustenta que todo viver humano se dá em redes de conversações. Pois bem, “uma cultura é uma rede fechada de conversações, [de sorte] que a mudança cultural ocorre como uma mudança de conversações na rede de conversações que a comunidade que muda vive, e tal mudança surge, se sustenta e se mantém na mudança do emocionar dos membros da comunidade que muda” (Maturana, 1993: 11) (n. i.).
Assim, prossegue Maturana, “o patriarcado surgiu, precisamente, como uma mudança na configuração do emocionar que constituía o fundamento relacional da cultura matrística preexistente. O resultado foi uma mudança no pensar, no gostar, no ouvir, no ver, no temer, no desejar, no relacionar-se... em suma, nos valores conservados geração após geração; quer dizer, o patriarcado surgiu... por meio de uma mudança no espaço psíquico em que viviam os meninos e meninas em crescimento” (Maturana, 1993: 11).
Vejamos, com mais detalhes, como ele explica tal processo: “A maneira de conviver conservada, geração após geração, desde a constituição de uma cultura como uma linhagem ou como um sistema de linhagens que conservam um certo modo de conviver, fica definida, de maneira fundamental, pela configuração do emocionar, que define a rede de conversações que se vive como o domínio particular de coordenações de coordenações de ações e emoções que constitui tal cultura como modo de conviver.
Por isso, cada vez que começa a conservar-se, geração após geração, uma nova configuração no emocionar de uma família, que as crianças aprendem espontaneamente, pelo simples fato de viver nela, surge uma nova cultura.
A nova configuração do emocionar que funda a nova cultura não se conserva porque seja vantajosa ou boa, apenas se conserva, e, enquanto se conserva, a nova cultura persiste e tem história. Em outras palavras: uma nova cultura surge em uma dinâmica sistêmica, na qual a rede de conversações que a comunidade em mudança cultural vive muda guiada e delimitada precisamente pela nova configuração do emocionar que começa a conservar-se na aprendizagem das crianças.
Dizendo ainda de outra maneira: na medida em que as crianças aprendem a viver no novo emocionar e a crescer nele, fazem desse novo emocionar o âmbito no qual seus próprios filhos viverão e aprenderão a viver a rede de conversações que constitui o novo modo de conviver.
Ao tentar compreender como surgiu o patriarcado europeu a que pertencemos como cultura no presente, o que fazemos é olhar as circunstâncias do viver que tornaram possível a mudança no emocionar que, ao mesmo tempo que lhe deu origem como um modo de conviver, constituiu a dinâmica relacional sistêmica que levou à sua conservação, geração após geração, independentemente das conseqüências que teve. Ao fazer isso, não falamos de forças, pressões, vantagens ou outros fatores que se usam com freqüência como argumentos para explicar a direcionalidade do devenir histórico, porque, do nosso ponto de vista, tais noções não se aplicam à dinâmica sistêmica da mudança e da conservação cultural” (Maturana, 1993: 11-2).
É bom ressaltar que, para Maturana, “a história da humanidade tem seguido e permanece seguindo o curso do emocionar e, em particular, o curso dos desejos e não o da disponibilidade de recursos naturais, ou o curso das oportunidades materiais, ou o curso das idéias, valores e símbolos, como se estes existissem como tais em si mesmos. Os recursos naturais existem somente na medida em que desejamos o que distinguimos como recursos naturais. O mesmo ocorre com as idéias, com os valores ou com os símbolos, como elementos que guiam nosso viver, que existem nessa condição somente na medida em que aceitamos aquilo que conotam ou representam. Isso quer dizer que, uma vez que os recursos naturais, os valores, as idéias ou os símbolos aparecem em nossas distinções como fatores ou elementos que guiam o curso de nosso viver, já surgiu antes, de alguma maneira independente deles, o emocionar que os fez possíveis como tais guias do nosso viver. Por conseguinte... para compreender o curso de nossa história como seres humanos, devemos olhar o curso histórico do emocionar humano e, para revelar tal curso, devemos olhar a mudança de conversações que surge da mudança no emocionar, assim como as circunstâncias que dão origem e estabilizam, em cada caso, um novo emocionar” (Maturana, 1993: 10).
Maturana considera dois casos particulares de culturas, que constituem dois modos diferentes de viver as relações humanas, caracterizadas por distintas redes de conversações: a cultura matrística pré-patriarcal européia e a cultura patriarcal européia.
A palavra matrística é empregada, no texto ora citado (Maturana, 1993), “com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra matrístico, portanto, é contrária à palavra matriarcal, que significa o mesmo que a palavra patriarcal, em uma cultura na qual as mulheres têm um papel dominante. Em outras palavras... a palavra matrístico é usada intencionalmente, para referir uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não hierárquica, precisamente porque a figura feminina representa a consciência não hierárquica do mundo natural a que pertencemos os seres humanos, em uma relação de participação e confiança, não de controle nem de autoridade, e na qual a vida quotidiana é vivida em uma coerência não hierárquica com todos os seres viventes, mesmo na relação predador-presa” (Maturana, 1993: 19n).
Para começar, Maturana traça o perfil da cultura patriarcal, quer dizer, da nossa cultura, considerada civilizada. “Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança e buscamos certeza no controle do mundo natural, dos outros seres humanos e de nós mesmos. Continuamente, falamos de controlar nosso comportamento ou nossas emoções, e fazemos muitas coisas para controlar a natureza ou a conduta dos outros, na intenção de neutralizar o que chamamos de forças anti-sociais e naturais destrutivas que surgem da sua autonomia... Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança da autonomia dos outros e estamos nos apropriando, o tempo todo, do direito de decidir o que é legítimo ou não para eles, em uma tentativa contínua de controlar suas vidas. Em nossa cultura patriarcal, vivemos na hierarquia que exige obediência, afirmando que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão, e estamos sempre prontos para tratar todas as relações, humanas ou não, nesses termos. Assim, justificamos a competição, quer dizer, um encontro de mútua negação, como a maneira de estabelecer a hierarquia dos privilégios sob a afirmação de que a competição promove o progresso social ao permitir que o melhor apareça e prospere” (Maturana, 1993: 25).
Em total contraponto configurava-se, para Maturana, a suposta cultura matrística. “A cultura matrística pré-patriarcal européia, a julgar pelos restos arqueológicos encontrados na zona do Danúbio, dos Balcãs e na região Egea, deve ter sido definida por uma rede de conversações completamente diferente da patriarcal. Não temos acesso direto a tal cultura; porém, penso que a rede de conversações que a constituía pode ser reconstruída a partir do que é revelado na vida quotidiana daqueles povos que ainda a vivem e pelas conversações não patriarcais ainda presentes nas malhas da rede de conversações patriarcais que constitui nossa cultura patriarcal hodierna. Assim, penso que devamos deduzir, a partir dos restos arqueológicos mencionados, que o povo que vivia na Europa, entre sete e cinco mil anos antes de Cristo, era composto por agricultores e coletores que não construíam fortificações em seus povoados, que não apresentavam diferenças hierárquicas entre túmulos de homens e de mulheres, ou entre túmulos de homens ou entre túmulos de mulheres” (Maturana, 1993: 25-6).
Ele prossegue: “Também podemos ver que esses povos não usavam armas como adornos e depositavam nos lugares cerimoniais místicos (de culto), principalmente, figuras femininas. Além disso, desses restos arqueológicos podemos também deduzir que as atividades cúlticas (cerimoniais místicos) estavam centradas no sagrado da vida quotidiana, em um mundo penetrado pela harmonia da contínua transformação da natureza, através da morte e do nascimento, abstraída sob a forma de uma deusa biológica na forma de uma mulher, ou de uma combinação de mulher e homem, ou de mulher e animal” (Maturana, 1993: 26).
Maturana supõe que “na ausência da dinâmica emocional da apropriação, esses povos não poderiam ter vivido na competição, uma vez que as posses não eram elementos centrais da existência. Além disso, se, sob a evocação da deusa mãe, os seres humanos eram, como todas as criaturas, expressões de sua presença e, portanto, iguais, nenhum melhor que outro, apesar de suas diferenças; então, não podem ter vivido praticando ações que excluíam sistematicamente algumas pessoas do bem-estar que surgia da harmonia do mundo natural. Penso, por tudo isso, que o desejo de dominação recíproca não deve ter sido parte do viver quotidiano desses povos matrísticos, e que este viver deve ter estado centrado na estética sensual das tarefas diárias como atividades sagradas, com muito tempo para contemplar o viver e viver o mundo sem urgência” (Maturana, 1993: 26).
Nada disso quer dizer, esclarece Maturana, que as pessoas na cultura matrística não vivessem, também como nós e nossos antepassados patriarcais, situações geradoras de infelicidade, dor, aborrecimento e agressão. Porém, essas pessoas “como cultura, diferentemente de nós, não viviam a agressão, a luta, a competição, como aspectos definidores da sua maneira de viver... A partir desta maneira de viver, podemos inferir que a rede de conversações que definia a cultura matrística não pode ter consistido em conversações de guerra, luta, negação mútua na competição, exclusão e apropriação, autoridade e obediência, poder e controle, bom e mau, tolerância e intolerância e justificação racional da agressão e do abuso. Ao contrário, as conversações de tal rede devem ter sido conversações de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração. Não há dúvida de que a presença destas palavras no nosso linguajar moderno indica que as coordenações de ações e emoções que elas evocam ou conotam também nos pertencem, a nós, agora, apesar de nosso viver na agressão. Com efeito, em nossa cultura, reservamos seu uso para ocasiões especiais, porque não conotam para nós, agora, nosso modo geral de viver, ou as tratamos como se evocassem situações ideais e utópicas, mais adequadas para as crianças pequenas do jardim de infância do que para a vida séria dos adultos, a menos que as usemos nessa situação tão especial que é a democracia” (Maturana, 1993: 27).
Não cabe reproduzir aqui todos os argumentos desenvolvidos por Maturana no sentido de mostrar a conservação – ou a supervivência – do emocionar matrístico na infância patriarcal ulterior, que se verificaria, segundo ele, inclusive em nossos dias. Mas é fundamental registrar que, para Maturana, “somente o surgimento da democracia representou, de fato, uma ameaça ao patriarcado, porque a democracia surgiu como uma expansão das conversações matrísticas da infância, de uma maneira que nega as conversações patriarcais” (Maturana 1993: 52).
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9 - Uma teoria da democracia
As considerações de Maturana desembocam, inevitavelmente, numa teoria da democracia. A democracia seria, para ele, um caso particular de mudança cultural, uma brecha no sistema do patriarcado, que surge como uma ruptura súbita das conversações de hierarquia, autoridade e dominação que definem todas as sociedades pertencentes a esse sistema. Essa hipótese da “brecha” introduzida no modelo civilizacional patricarcal pela prática da política como liberdade, i. e., da invenção da democracia e da radicalização da democracia como “alargamento da brecha”, fornece a única base para explicar por que podem surgir sociedades de parceria no interior de sociedades de dominação, ou seja, por que podem surgir comunidades – compostas por conexões horizontais entre pessoas e grupos – e por que tais comunidades podem ser capazes de alterar a estrutura e a dinâmica prevalecentes nas sociedades, hierárquicas e autocráticas, de dominação.
A democracia está fundada no princípio de que é possível aceitar a legitimidade do outro, ou seja, de que os seres humanos podem gerar coletivamente projetos comuns de convivência que reconheçam a legitimidade do outro. Ao contrário da autocracia, em que o modo predominante de regulação do conflito passa pela negação do outro, por meio da violência e da coação, a democracia é, como disse Maturana, um sistema de convivência “que somente pode existir através das ações propositivas que lhe dão origem, como uma co-inspiração em uma comunidade humana” (Maturana, 1993: 62) pelo qual se geram acordos públicos entre pessoas livres e iguais num processo de conversação que, por sua vez, só pode se realizar a partir da aceitação do outro como um livre e um igual.
Hannah Arendt já havia reconhecido essa ruptura com a autocracia que representou a introdução da democracia pelos gregos, a partir da conversação que aceita o outro e não da violência e da coação que o exclui. Por isso, diz ela, "a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e, com isso, centrou a verdadeira 'coisa política' – ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres – em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia" (Arendt, 1950?: frag. 3c) (g. a.).
Segundo Maturana, "a democracia surgiu na praça do mercado das cidades-estado gregas, na ágora, na medida em quem os cidadãos falavam entre si acerca dos assuntos da sua comunidade e como um resultado de suas conversações sobre tais assuntos. Os cidadãos gregos eram gente patriarcal no momento em que a democracia começou a acontecer, de fato, como um aspecto da praxis do seu viver quotidiano... Sem dúvida, todos eles conheciam e estavam pessoalmente preocupados com os assuntos da comunidade acerca dos quais falavam e discutiam. De sorte que o falar livremente sobre os assuntos da comunidade na ágora, como se estes fossem problemas comuns legitimamente acessíveis ao exame de todos, com certeza começou com um acontecimento espontâneo e fácil para os cidadãos gregos.
Porém, na medida em que os cidadãos gregos começaram a falar dos assuntos da comunidade como se estes fossem igualmente acessíveis a todos, os assuntos da comunidade se converteram em entidades que se podiam observar e sobre as quais se podia atuar como se tivessem existência objetiva em um domínio independente, isto é, como se fossem "públicos" e, por isso, não apropriáveis pelo rei.
O encontrar-se na ágora ou na praça do mercado, fazendo públicos os assuntos da comunidade ao conversar sobre eles, chegou a converter-se em uma maneira quotidiana de viver em algumas das cidades-estado gregas... Mais ainda, uma vez que esse hábito de tornar públicos os assuntos da comunidade se estabeleceu, por meio das conversações que os tornava públicos, de uma maneira que, constitutivamente, excluía estes assuntos da apropriação pelo rei, o ofício de rei se fez, de fato, irrelevante e indesejável.
Como conseqüência, em algumas cidades-estado gregas, os cidadãos reconheceram essa maneira de viver por meio de um ato declaratório que aboliu a monarquia e a substituiu pela participação direta de todos os cidadãos em um governo que manteve a natureza pública dos assuntos da comunidade, implícita já nessa mesma maneira quotidiana de viver; e isso ocorreu mediante uma declaração que, como processo, era parte dessa maneira de viver. Nessa declaração, a democracia nasceu como uma rede pactuada de conversações, que:
a) realizava o Estado como um modo de coexistência comunitária, no qual nenhuma pessoa ou grupo de pessoas podia apropriar-se dos assuntos da comunidade, e que mantinha estes assuntos sempre visíveis e acessíveis à análise, ao exame, à consideração, à opinião e à ação responsáveis de todos os cidadãos que constituíam a comunidade que era o Estado;
b) fazia da tarefa de decidir acerca dos diferentes assuntos do Estado responsabilidade direta ou indireta de todos os cidadãos;
c) coordenava as ações que asseguravam que todas as tarefas administrativas do Estado fossem assumidas transitoriamente, por meio de um processo de escolha, no qual cada cidadão tinha de participar, como um ato de fundamental responsabilidade" (Maturana, 1993: 53-4) (n. g.).
Para Maturana, "o fato de que, numa cidade-estado grega, como Atenas, nem todos os seus habitantes fossem originalmente cidadãos, senão que o fossem somente os proprietários de terras, não altera a natureza fundamental do acordo de coexistência comunitária democrática como uma ruptura básica das conversações autoritárias e hierárquicas de nossa cultura patriarcal européia... E o fato de que democracia é, de fato, uma ruptura na coerência das conversações patriarcais, ainda que não as negue completamente, se faz evidente, por um lado, na grande luta histórica por manter a democracia, ou por estabelecê-la em novos lugares, contra um esforço recorrente por reinstalar, em sua totalidade, as conversações que constituem o estado autoritário patriarcal e, por outro lado, na grande luta por ampliar o âmbito da cidadania e, portanto, a participação no viver democrático para todos os seres humanos, homens e mulheres, que estão fora dela" (Maturana, 1993: 53-5).
Não se pode dizer porque as coisas aconteceram exatamente assim, ou seja, tentar justificar o aparecimento da democracia entre os gregos, a partir de uma avaliação distintiva do nível do seu capital social inicial. A democracia – reconheceu o próprio Maturana – é “uma obra [arbitrária] de arte, um sistema de convivência artificial, gerado conscientemente” (Maturana, 1993: 62) (n. i.). Ou seja, aconteceu na Grécia porque os gregos quiseram que acontecesse.
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10 - Uma teoria da cooperação baseada em Maturana
Há uma teoria da cooperação implícita na exposição precedente, cujos elementos principais, apenas elencados em três conjuntos, de modo não axiomático, são os seguintes:
Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição do humano.
1 - O que nos torna humanos é a linguagem.
2 - Não é, fundamentalmente, o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem, e, sim, o modo de conviver.
3 - O modo de conviver que torna possível a linguagem jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência.
4 - Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, em que haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não se pode esperar que surja a linguagem.
5 - A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 - A cooperação está na constituição do humano.
Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do social.
1 - Só há sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação condutual dos seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual estes seres vivos realizam sua autopoiesis.
2 - A cooperação se dá em todas as relações sociais.
3 - Nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as coletividades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua.
4 - Distintas emoções especificam distintos domínios de ações.
5 - Coletividades humanas fundadas em emoções não centradas na emoção amistosa que permite a intimidade na convivência com certa permanência – ou o ser com o outro – estarão constituídas em outros domínios de ações que não o da cooperação e do compartilhamento – em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e não serão comunidades sociais.
6 - A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão; a obediência não é um ato de cooperação.
7 - Afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não nos damos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam.
Terceiro conjunto: a competição não funda o social nem constitui o humano.
1 - Não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Toda a contradição que a humanidade vive nesse domínio é de origem cultural.
2 - A conduta social está fundada na cooperação e não na competição.
3 - O fenômeno da competição é cultural.
4 - A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 - A cultura patriarcal se caracteriza pela conservação de um modo de coexistência que valoriza a competição.
6 - O fenômeno da competição não se dá no âmbito biológico.
7 - Seres vivos não humanos não competem.
8 - Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come, isso não é competição, porque não é central para o que se passa com o que come o fato de que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é fundamental para constituir o modo de relação.
9 - O ato de compartilhar alimentos – uma forma de colaboração –, que está evolutivamente na origem do humano, não consiste em deixar que o outro coma a seu lado e, sim, em transferir o que se tem para o outro.
10 - A competição tem ganhadores e perdedores. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui (em escala ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra, de fato, torna-se culturalmente desejável.
11 - A competição não participa da evolução do humano, que se dá pela conservação de um fenótipo ontogênico ou um modo de vida no qual o linguagear pode surgir.
12 - A linguagem não poderia ter surgido na competição.
13 - A competição não pode ser constitutiva do humano.
Uma teoria da cooperação construída a partir das assertivas expostas acima resulta em algo bastante distinto de uma teoria da cooperação (ou da cooperação versus competição) que possa ser extraída da teoria dos jogos. Na verdade, da teoria dos jogos não pode sair nenhuma teoria da cooperação humana, porque, para a teoria dos jogos, o homem é, fundamentalmente, um ser que faz escolhas racionais, enquanto a cooperação não é motivada por uma razão, mas por uma emoção.
A emoção que nos leva a cooperar não pode ser completamente rastreada pelo comportamento de jogadores em jogos iterados: embora jogadores, na vida real, se movam sempre a partir de emoções – mesmo quando julgam que se estão movendo pela escolha racional – o que a teoria dos jogos considera, quando os jogadores preferem a cooperação a partir da verificação de que, no longo prazo, ela é mais vantajosa (altruísmo instrumental), é a afirmação da razão do indivíduo como “átomo” de interesse e não como indivíduo que só se realiza quando seus interesses tornam-se, em alguma medida, congruentes com interesses dos outros indivíduos que constituem o meio social a que pertence. Ora, quando há cooperação, é a “molécula social” de interesse que se realiza. Mas a consciência de que é a “molécula social” de interesse que se deve realizar não emerge por força de um raciocinar e, sim, de um emocionar, como atestam a resposta emocional de satisfação que todos obtemos quando cooperamos, e de insatisfação quando somos chamados a cooperar e não o fazemos. Neste caso, em geral, nos vemos forçados a arranjar uma explicação racional para a omissão, ou para a deserção – para usar o jargão da teoria dos jogos. O termo, aliás, revela-se muito adequado: não cooperar é, em certo sentido, uma deserção social.
O que Maturana diz é que o emocionar que nos leva a cooperar é propriamente humano, porquanto nos constitui como seres humano-sociais, mas tem raízes biológicas: existe algo como uma “pegajosidade biológica” que, manifestando-se já no primata bípede que nos precedeu, possibilitou a deriva filogênica humana que resultou na linguagem. Entretanto, o emocionar que nos leva a competir não tem raízes biológicas e não pode ser encontrado em nenhum emocionar animal não humano. Nenhuma espécie não humana compete, ainda que nosso olhar humano, lançado a partir uma cultura competitiva, interprete o deslizar dos seres vivos não humanos uns sobre os outros e uns com os outros – em congruência recíproca na conservação da sua autopoiesis e da sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros – como uma forma de competição. Aliás, o primata bípede que nos antecedeu jamais se teria humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo porque, nesse caso, não poderia ter se firmado uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, onde houvesse aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, para que surgisse a linguagem.
Somente de uma teoria dos jogos que considerasse a “emotional motivation” (que está na raiz da rational choice) do ser emocional-racional que é, de fato, o ser humano poderia ser derivada uma teoria da cooperação. Já uma teoria da competição – que não é, ao contrário do que às vezes se pensa, uma imagem invertida da teoria da cooperação – seria uma teoria da cultura para o padrão civilizatório patriarcal em que vivemos.
Pode-se dizer que a visão de Maturana também tem lá os seus problemas. Por exemplo, o tratamento que ele dá à competição não deixa espaço para a existência do mercado; uma sociedade democrática sem mercado, nas circunstâncias do mundo atual, é uma sociedade que não pode realizar a democracia na esfera da vida econômica e, assim, não pode ser efetivamente democrática. Se a teoria de Maturana tivesse que servir de base para um programa para o estado atual do mundo, esse programa não levaria à uma sociedade inspirada pelos princípios de “participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração” (Maturana, 1993: 27) característicos do modelo não patriarcal de sociedade, supostamente mais conformes à “biologia do amor”. Em outras palavras, não existem mediações nas elaborações intelectuais de Maturana, porque falta política nas suas teorias, inclusive onde não poderia faltar: na sua teoria da democracia. Não existindo mediações, não pode haver transição de um estado do mundo para outro.
Sustento, não obstante, que nada disso invalida as idéias de Maturana naquilo que essas idéias têm de fundamental. E divirjo daqueles que querem invalidar tais idéias com base em preconceitos com relação à utilização de categorias, consideradas não-científicas, como, por exemplo, a de “amor”. Tal como definido por ele – não como sentimento (psicológico), mas como emoção que possibilita uma proximidade continuada sem a qual não teria surgido o linguagear e, daí, o conversar que dá sequência ao humano propriamente dito – creio que o conceito está muito bem colocado.
A reação à utilização de categorias como “amor” nas teorias de Maturana, em geral, só fazem confirmar essas teorias. O amor é banido da racionalidade patriarcal e é deportado para o reino da poesia (de onde não consegue visto para reentrar na república dos sábios) porque, de fato, desorganiza essa racionalidade. Por outro lado, é sintomático do tipo de civilização em que vivemos que as pessoas não se assustem tanto com a palavra “violência” quanto com a palavra “amor”. Cenas de assassinato, mutilação, tortura, que nossas crianças assistem diariamente na TV, não são consideradas imorais, mas uma cena de uma pessoa beijando afetuosamente o sexo de outra seria um escândalo para a respeitável família patriarcal reunida após o jantar, mesmo que tal família, de fato, já não exista mais – porquanto a hipocrisia e o cretinismo moral que a caracterizam supervivem como tradição.
Maturana sustenta que relações hierárquicas e de trabalho, que existem em coletivos humanos, não são relações sociais. Ora, todas as relações que não são relações sociais – no particularíssimo sentido que ele atribui à expressão “relações sociais” – ou são relações competitivas ou, pelo menos, são relações que não induzem à cooperação, sendo que algumas delas induzem à competição regular e sistemática, como é o caso das relações hierárquicas. Portanto, para ele, não é que não possa haver relações competitivas em coletivos humanos e, sim, que essas relações não constituem o propriamente humano; quando tais relações competitivas se conservam como modo de vida transmissível culturalmente, acabam por impedir essa constituição e, no limite, inviabilizam a vida social humana e a própria vida humana (o que aqui se confunde, i. e., as duas dimensões – social e individual do humano – se fundem): nenhum grupo humano com grau zero de cooperação (ou com grau máximo de competição: todos sempre competindo com todos em todas as ocasiões) conseguiria se constituir sustentavelmente como sociedade humana e não se poderia dar, nestas circunstâncias, o fenômeno humano, por assim dizer. Em outras palavras, há um fator antropológico (que Maturana encara como biológico, também no sentido particularíssimo que atribui ao termo “biológico”) fundante das sociedades humanas e esse fator é a cooperação.
Por outro lado, não me parece correto afirmar que uma sociedade com grau máximo de cooperação (ou com grau zero de competição) não conseguiria se constituir sustentavelmente como sociedade humana. Essas coisas não são simétricas: cooperação não é competição negativa, não é competição com sinal trocado, nem vice-versa. São fenômenos distintos, embora correlacionáveis a posteriori por razão inversa. Mas a afirmação do primeiro, se não é acarretada pela negação do segundo, tampouco o evita.
Abre-se aqui um debate com os que acreditam que a biologia humana leva `a competição.
Sobre isso, penso o seguinte. Achar que a competição esteja geneticamente inscrita no corpo humano parece ser mais uma questão de justificação de uma opção e, portanto, de ideologia moral, do que de observação ou conclusão científica. Para aumentar a verossimilhança da hipótese, supõem alguns que a competição já estaria arquivada no genoma de ancestrais evolutivos da espécie, de vez que também se verificaria, por exemplo, em primatas não humanos (como os chimpanzés).
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11 - Fukuyama e o debate atual sobre as origens biológicas da cooperação
Para ter uma idéia da posição atual do debate sobre as origens da cooperação, vamos tomar como exemplo as recentes especulações de Francis Fukuyama (1999) sobre o tema.
Fukuyama assinala, com razão, que o debate sobre as origens da cooperação é muito difícil porque não é propriamente um debate com conceitos, mas com preconceitos, e isso se deve ao fato de que a tradição social darwinista do século XIX e início do século XX – com Herbert Spencer e Madsen Grant, por exemplo –, somada, depois, às insanidades nazistas e, depois, ainda, à sociobiologia, fizeram um uso tão desastroso das teorias biológicas, quer dizer, dos paralelos biologicistas, que não apenas sociólogos e antropólogos, mas todas as pessoas de inspiração humanista, ficaram chocadas e vacinadas contra qualquer coisa que pudesse sugerir a existência de “uma natureza humana estável subjacente ao comportamento social” que fosse capaz de induzir à geração de padrões de comportamento social. Este preconceito levou os estudiosos a estabelecerem um dogma contra o qual não se podia sequer admitir discussão: “todo comportamento humano foi considerado ‘socialmente construído’, isto é, movido por normas culturais que moldavam o comportamento após o nascimento” (Fukuyama, 1999: 167) (n. g.).
Todavia, a partir da segunda metade do século XX, surge uma novidade – uma nova biologia – e Fukuyama, ao contrário de muitos teóricos do capital social, não só se dá conta do significado disso como quer buscar, aí, uma parte da resposta para a pergunta, até então irrespondida por esses teóricos, de por que os seres humanos podem ter, espontaneamente, capacidade de cooperar ou propensão inata para produzir capital social.
“Em contraste” – escreve Fukuyama – “com as hipóteses completamente relativistas da antropologia cultural, grande parte da nova biologia sugere que a variabilidade cultural humana não é tão grande quanto podia parecer à primeira vista. Assim como as linguagens humanas podem ser infinitamente variadas, mas refletem profundas estruturas lingüísticas comuns originárias da área do neocórtex, também as culturas humanas refletem requisitos sociais comuns determinados não pela cultura, mas pela biologia. Nenhum biólogo respeitável negaria que a cultura é importante e, com freqüência, exerce uma influência que pode superar os instintos e impulsos naturais. A própria cultura – a capacidade de transmitir regras comportamentais através de gerações de maneira não genética –, firmemente instalada no cérebro humano, constitui uma importante fonte de vantagem evolutiva para a espécie humana. Mas esse conteúdo cultural está no topo de uma subestrutura natural que limita e canaliza a criatividade cultural para populações de indivíduos. O que a nova biologia sugere para os observadores sensíveis não é o determinismo biológico, mas sim uma visão mais equilibrada da interação natureza-criação na moldagem do comportamento humano” (Fukuyama, 1999: 168).
Escaldado, talvez, pelo conhecimento da histórica repercussão negativa dos paralelos biológicos, Fukuyama é cuidadoso: “Em geral, os comportamentos geneticamente controlados que influenciam fenômenos sociais, como parentesco, ou a propensão para formar grupos na sociedade civil são mediados pela cultura; assim, não se pode fazer nenhuma conexão causal direta entre, digamos, a família nuclear e uma disposição genética para a reprodução. Em seres humanos, muitos dos comportamentos que parecem estar sob controle biológico não são impulsos ou instintos deterministas, mas sim propensões para aprender em determinados estágios do desenvolvimento de um indivíduo. Mais uma vez, o exemplo da linguagem é um meio útil para entender a interação das forças genéticas e culturais. A capacidade de aprender um idioma parece estar sob forte controle genético, surgindo na idade de doze meses, mais ou menos, e conduzindo à espantosa capacidade das crianças para adquirir muitas novas palavras por dia. Esta capacidade dura apenas alguns anos; crianças que cresceram sem aprender a falar, ou adultos que procuram aprender novos idiomas, nunca desenvolvem a mesma fluência que têm as crianças. A estrutura da linguagem também parece estar presente no nascimento; as crianças esperam certas regularidades em regras a respeito de tempos, plurais etc., sem que isso lhes precise ser ensinado. Por outro lado, as próprias palavras e grande parte da estrutura sintática de uma dada linguagem são determinadas culturalmente, assim como todas as implicações sutis de certas frases no contexto de uma determinada cultura. Que as crianças irão aprender determinadas coisas em determinadas épocas, de acordo com uma determinada estrutura, é estabelecido pela biologia; o que elas aprendem é domínio da cultura” (Fukuyama, 1999: 168-9) (g. a.).
A hipótese básica de Fukuyama é a de que “grande parte do comportamento social não é aprendida, mas faz parte da herança genética...” (Fukuyama, 1999: 176). Mas, aí, ele acrescenta: “... tanto do homem como de seus antepassados macacos” (Idem), o que o leva a uma incursão na primatologia de caráter mais duvidoso do que sua recorrência à nova biologia – ou seja “`as origens da revolução biológica que está em andamento na segunda metade do século XX” (Idem: 167) – a qual, no essencial, parece bem razoável.
Supondo que “talvez a maneira mais fácil de demonstrar que o comportamento cooperativo nos seres humanos tem base genética e não é apenas culturalmente construído seja observar não os seres humanos, mas seu parente genético mais próximo, o chimpanzé”, Fukuyama cai nas especulações de Frans de Waal sobre “política chimpanzé” – baseadas na suposta capacidade observada de esses animais “se organizarem para competição e violência grupais” – coisa, como já se disse, muito discutível, tanto do ponto de vista da interpretação do comportamento desses primatas quanto do ponto de vista do que se entende por política (Fukuyama, 1999: 172/4) (n. g.).
Pulando essa parte, entretanto, as conclusões de Fukuyama sobre a relação entre natureza humana e ordem social constituem uma boa introdução à investigação sobre as origens da cooperação: “Se aceitarmos que a propensão humana para cooperar em grupos não é apenas socialmente construída ou o produto de uma escolha racional, e que a cooperação tem uma base natural ou genética, surge a pergunta de como a cooperação apareceu” (Fukuyama, 1999: 178). Para responder esta pergunta, Fukuyama vai partir da premissa de que “é impossível explicar o comportamento grupal, exceto em termos dos interesses dos indivíduos que o compõem” – premissa, segundo ele, compartilhada tanto pela biologia da evolução contemporânea quanto pela economia moderna (Idem). Mas, se é assim, “como então explicamos a emergência do altruísmo e do comportamento social?” (Idem-idem).
Segundo Fukuyama, “os dois principais caminhos pelos quais os interesses individuais levam à cooperação social são a seleção por parentesco e a reciprocidade. A seleção por parentesco, também chamada de aptidão inclusiva, foi uma teoria desenvolvida por William Hamilton nos anos 60 [1964] e popularizada por Richard Dawkins em seu livro ‘The Selfish Gene’ [1989]”. Embora qualquer teoria do comportamento deva começar com os interesses próprios dos indivíduos, estes interesses estão em transmitir seus genes aos filhos e não, necessariamente, na sobrevivência da própria criatura. Portanto, afirma Dawkins, são os genes os egoístas, não os organismos individuais. Hamilton mostrou que parentes seriam altruístas uns com os outros na estrita proporção do número de genes que eles tivessem em comum... “Portanto,” – conclui Fukuyama – a sociabilidade humana começa com o parentesco; o altruísmo existe na proporção do grau de parentesco” (Fukuyama, 1999: 178) (n. i.).
No entanto, ele constata que “também existe, claramente, comportamento altruísta e cooperativo no mundo natural entre não parentes”, o que indica que deve haver outra fonte natural de comportamento social (Fukuyama, 1999: 178). “Além da seleção por parentesco, a segunda fonte natural comumente reconhecida de comportamento social é o altruísmo recíproco. As teorias biológicas de altruísmo recíproco tomaram muita coisa emprestada da economia e da teoria dos jogos para mostrar como a reciprocidade podia se desenvolver em indivíduos regidos por genes egoístas, fazendo uso, em particular, da solução repetida de Robert Axelrod para o dilema do prisioneiro... Promovendo um torneio de estratégias, Robert Axelrod [1984] mostrou como uma solução cooperativa poderia surgir em um jogo iterado (isto é, repetido), no qual os mesmos jogadores eram forçados a interagir com o outro repetidamente. Usando uma estratégia simples de pagar na mesma moeda, na qual um jogador retribuía cooperação com cooperação e traição com traição, seguiu-se um processo de aprendizado, no qual cada um deles acabou reconhecendo que, a longo prazo, a estratégia cooperativa produzia um retorno individual mais alto do que a estratégia de traição, e, portanto, era racionalmente ótima” (Idem: 180-1) (n. i.) (g. a. + n. g.).
Fukuyama assinala que “a teoria dos jogos evoluiu consideravelmente desde a publicação dos resultados do torneio de Axelrod, e surgiram muitas outras estratégias que se mostraram, no mínimo, tão estáveis ao longo do tempo quanto a de pagar na mesma moeda. Mas ela nos diz muito a respeito de como confiança e cooperação emergem em situações diferentes, desde os homens aprendendo a caçar juntos nas sociedades primitivas até as modernas corporações procurando persuadir os consumidores da qualidade dos seus produtos. A chave é a iteração: Se você sabe que terá de trabalhar com o mesmo grupo de pessoas por um período prolongado e sabe que elas irão se lembrar de quando você foi honesto com elas e quando trapaceou, então será do seu interesse agir honestamente. Numa situação como esta, uma norma de reciprocidade irá emergir espontaneamente, porque a reputação passará a ser um ativo” (Fukuyama, 1999: 181-2) (g. a + n. g.).
Argumentando que a estratégia iterativa de Axelrod vale tanto para agentes humanos racionais quanto para agentes não racionais (isto é, animais), Fukuyama constata que “o altruísmo recíproco tem maior probabilidade de se desenvolver em espécies que experimentam interações repetidas, tenham vidas relativamente longas e possuam as capacidades cognitivas de distinguir colaboradores de traidores com base numa série de sinais sutis” (Fukuyama, 1999: 182). Ele cita o biólogo Richard Trivers, que “afirma que entre os seres humanos se desenvolveram precisamente esses mecanismos para o altruísmo recíproco” (Idem). Segundo Trivers (1985), teria havido, durante nossa história evolutiva recente, “uma forte seleção sobre nossos ancestrais, para desenvolver uma variedade de interações recíprocas. Baseio esta conclusão, em parte, no forte sistema emocional que subjaz a nossos relacionamentos com amigos, colegas, conhecidos e assim por diante. Os seres humanos, rotineiramente, se ajudam uns aos outros em momentos de perigo (por exemplo, acidentes, predação e ataques de outros seres humanos)... Durante o período pleistoceno, e provavelmente antes, uma espécie hominídea teria encontrado as precondições para a evolução do altruísmo recíproco: por exemplo, vida longa, baixo índice de dispersão, vida em grupos pequenos, estáveis e mutuamente dependentes e um longo período de cuidados paternos, conduzindo a contatos extensos com parentes próximos ao longo de muitos anos” (Trivers, 1985: 386 – apud Fukuyama: Idem). Fukuyama reconhece “que a história acima é uma daquelas que os sociobiólogos são freqüentemente acusados de inventar. Mas” – retruca – “é preciso perguntar por que o sistema emocional humano está equipado com sentimentos como raiva, orgulho, vergonha e culpa, todos os quais entram em ação em resposta a pessoas que ou são honestas e cooperam, ou trapaceiam e infringem as regras, em situações do tipo do dilema do prisioneiro” (Fukuyama: Idem).
Todavia, Fukuyama registra que há uma outra fonte de sociabilidade sugerida por antropólogos evolucionários: a caça coletiva de grandes animais, que exige esforços cooperativos de várias pessoas e, mais importante ainda, a conseqüente partilha do alimento. “É notável que, em quase todas as culturas humanas conhecidas, o ato de comer seja, quase sempre, um evento público. Embora exerçamos a maior parte de nossas funções corporais privadamente, parecemos ter um desejo natural de dividir comida com outras pessoas, de piqueniques da empresa a jantares familiares. O antropólogo Adam Kuper [1993] destaca que, mesmo nos Estados Unidos, onde o individualismo e a competição regem supremos como valores culturais, os dois feriados mais importantes são o Dia de Ação de Graças e o Natal, festas construídas em torno de grandes banquetes que comemoram não realizações individuais, mas a solidariedade social. Tudo isso sugere que as condições ambientais dos primeiros homens apoiavam o desenvolvimento de uma propensão para a reciprocidade que não era simplesmente cultural” (Fukuyama, 1999: 183) (n. i.).
Partindo da premissa de que os seres humanos não só aprendem culturalmente como recebem geneticamente – por algum, alguns ou todos os motivos apresentados acima – a propensão para cooperar, vem a pergunta: e a propensão para competir, também esta viria gravada nos gens humanos? Em outras palavras, afinal, o ser humano é inerentemente cooperativo ou competitivo?
Fukuyama vai abordar essa questão de uma maneira que não rompe com aquela visão do homem como “átomo de interesse”. Para ele, “o altruísmo recíproco não é o mesmo que altruísmo tout court. Além dos parentes genéticos, é difícil achar muitos exemplos de verdadeiro altruísmo de mão única na natureza... quase todo comportamento que entendemos por moral envolve troca de mão dupla de algum tipo e confere benefícios mútuos às partes envolvidas” (Fukuyama, 1999: 184).
A questão é a seguinte: os seres humanos seriam, “por natureza, ou agressivos, competitivos e hierárquicos, ou cooperativos, pacíficos e estimulantes”? Fukuyama responde que “basta pensar um pouco para ver que essas características aparentemente dicotômicas estão, na verdade, intimamente ligadas entre si em termos evolutivos. Cooperação e altruísmo recíproco surgiram inicialmente porque conferiam benefícios aos indivíduos que os possuíam. A capacidade de trabalhar juntos em grupos – capital social – constituía uma vantagem competitiva para os primeiros seres humanos e seus progenitores macacos, e assim as qualidades que sustentavam a cooperação grupal se disseminaram. À medida que os grupos se formam, começa a competição entre eles, provendo um incentivo para níveis mais altos de cooperação dentro de cada grupo. O comportamento social dos chimpanzés... está relacionado, ao menos em parte, com o fato de eles precisarem competir uns contra os outros em grupos. Nas palavras do biólogo Richard Alexander [1990], os seres humanos cooperam para competir” (Fukuyama, 1999: 184) (n. i.) (n. g.).
O caminho explicativo tomado a partir daqui por Fukuyama é péssimo. Fazendo um paralelo com a chamada “modernização defensiva”, pela qual “o aparecimento de uma nova tecnologia militar em um Estado força as sociedades concorrentes não só a adquirir a tecnologia, mas também a adquirir as instituições políticas e econômicas necessárias à produção dessa tecnologia, como poderes fiscais e regulamentadores, pesos e medidas padronizados e sistemas educacionais” – o que implica que “a competição militar externa promove a cooperação política doméstica” – ele supõe que “o grande tamanho e o rápido crescimento (em tempo evolucionário) do cérebro humano estão relacionados com uma série semelhante de corridas armamentistas entre seres humanos, tornando, assim, possíveis a linguagem, a sociedade, o Estado, a religião e todas as subseqüentes instituições sociais cooperativas criadas pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999: 184-5).
Colaboração ou competição, anjos ou demônios? – pergunta Fukuyama. Colocada a questão, inadequadamente, nestes termos, ele vai optar pela resposta óbvia (e, como veremos no próximo capítulo, menos lógica): nem uma coisa nem outra unicamente, ou seja, as duas coisas simultaneamente. “Quando digo que os seres humanos são sociais por natureza, não quero dizer que eles são anjos. Isto é, eles não possuem reservatórios ilimitados de altruísmo, não são completamente honestos e não têm quaisquer impulsos especiais que os inclinem para colocar o bem da sua espécie, ou mesmo de números mais limitados de não parentes, acima do seu próprio bem. A teoria evolutiva dos jogos explica por que isto ocorre. Mesmo que pudéssemos imaginar uma sociedade de anjos na qual todos são totalmente honestos e inclinados a cooperar com os companheiros em empreendimentos comuns por razões genéticas ou culturais, essa situação não seria estável. Sabendo que todos os outros irão manter seus compromissos, um oportunista poderia ter ganhos muito maiores do que um grupo de pessoas que não cooperam. E basta um oportunista muito bem-sucedido para transformar anjos em mortais comuns e desconfiados. Isto é verdade no nível genético e também no cultural: um gene de oportunismo irá se espalhar entre a população de colaboradores, assim como o comportamento oportunista irá se espalhar numa sociedade de pessoas honestas. Isto explica por que esquemas piramidais têm funcionado particularmente bem em Utah, onde a honestidade e credulidade da comunidade mórmon têm sido, algumas vezes, vergonhosamente exploradas por escroques de todos os tipos (com freqüência, por um companheiro mórmon, que conhece melhor que a maioria as vulnerabilidades da comunidade).
Por outro lado” – prossegue Fukuyama – “uma sociedade na qual todas as pessoas são demônios que procuram iludir seus companheiros humanos em todas as oportunidades também não seria estável. A introdução de um pequeno número de colaboradores honestos na sociedade de demônios fará com que eles tenham grandes ganhos às expensas destes. Os demônios não conseguirão trabalhar uns com os outros e irão perdendo terreno para os anjos, que são colaborativos. No exemplo clássico da teoria evolutiva dos jogos, uma população mista de falcões e pombos não será estável se todos os pombos forem comidos pelos falcões; estes se voltarão uns contra os outros por falta de alimento.
Portanto, o que a teoria evolutiva dos jogos nos diz é que todas as sociedades terão populações mistas de anjos e demônios ou, mais precisamente, elas irão consistir em pessoas com diferentes proporções de qualidades angelicais e demoníacas ao mesmo tempo. A proporção de anjos e demônios irá depender dos retornos de cada um – isto é, as recompensas resultantes para os anjos que podem cooperar uns com os outros e para os demônios que têm sucesso em seu oportunismo” (Fukuyama, 1999: 185-6).
Posta a questão nestes termos, pode-se concluir que os humanos tiveram de desenvolver, basicamente, dois tipos de capacidades para poder sobreviver e prosperar: “capacidades cognitivas especiais que nos permitissem distinguir anjos de demônios” e capacidades “emocionais ou instintos especiais que garantissem um pagamento na mesma moeda: precisamos premiar os anjos e fazer o possível para punir os demônios” (Fukuyama, 1999: 187). Assim, “uma razão pela qual o cérebro humano teria se desenvolvido tão rapidamente foi a necessidade dos humanos de cooperar, enganar e decifrar o comportamento uns dos outros”, como sugeriram o psicólogo Nicholas Humphrey (1976) e o biólogo Richard Alexander (1974) – para os quais “a parte mais importante e perigosa do ambiente de um ser humano passou, rapidamente, a consistir em outros seres humanos, ao ponto de o desenvolvimento de qualidades cognitivas para a interação social ter rapidamente se tornado o requisito mais crítico para a adequação evolutiva. Depois que os grupos de seres humanos se tornaram a principal fonte de competição, desenvolveu-se uma situação de corrida armamentista na qual não havia limites para o grau de inteligência exigido para dominar a vida social, uma vez que os outros atores sociais estavam ganhando inteligência com a mesma rapidez” (Idem). Fukuyama cita, ainda, outros dois psicólogos – John Tooby e Leda Cosmides –, que especulam com “a existência de uma função cerebral especial e evoluída para resolver problemas sociais do tipo do dilema do prisioneiro” (Idem: 190).
Fukuyama afirma “que somos bons e agimos de forma altruísta, em grande parte do tempo, por egoísmo”, mas não deixa de registrar (sem o confessar diretamente) uma certa perplexidade diante do fato de que “as pessoas sempre acreditaram que o comportamento moral é um fim em si mesmo e reservam sua mais alta aprovação não para os demônios racionais [ou seja, aqueles que são levados a um comportamento moral ou altruísta porque este é do seu interesse], mas para os anjos verdadeiros”, isto é, aqueles que, de acordo com Kant, seguem uma regra por amor à mesma, inclusive nos casos em que o comportamento moral prejudica os seus próprios interesses. Para responder por que isso acontece, Fukuyama supõe “que o comportamento moral... [pode ter] um lugar especial na psique humana”, e envolve operações mais profundas do que a escolha racional ou o cálculo utilitarista (Fukuyama, 1999: 191).
Ocorre que o comportamento moral envolve as emoções. “Em termos da teoria dos jogos, não faz sentido preocupar-se até a morte por ter violado uma norma, que é apenas o resultado de um cálculo racional; contudo, as normas têm uma influência emocional tão forte que chamamos as pessoas que calculam seu interesse próprio com racionalidade absolutamente fria de psicopatas, não de seres humanos normais” (Fukuyama, 1999: 95). Existem normas especiais que dizem respeito aos meios corretos para definir, promulgar e forçar a obediência às normas comuns. O cumprimento dessas normas especiais “é muito útil na solução de problemas cooperativos, parece que desenvolvemos emoções especializadas para levar os indivíduos a fornecer voluntariamente esse bem comum”; por exemplo, as pessoas se esforçam “para fazer com que a justiça seja feita – o tempo todo, e em situações nas quais elas não têm qualquer interesse direto”: que a justiça seja feita é uma dessas normas especiais que tendemos a obedecer e cuja obediência força a obediência de inumeráveis normas comuns (Idem: 94-5). O aprendizado da cooperação ao longo de milhares ou milhões de anos teria levado os humanos a internalizarem normas especiais como essas, associando-as a fenômenos que ocorrem numa região mais profunda da psique ("límbica") do que aquela que calcula ("neocórtica").
Mas Fukuyama não desenvolve esta hipótese. Lembra, ao contrário, que “Robert Frank [1988] sugere outra razão para as emoções terem se tornado tão intimamente associadas à obediência a normas no decorrer da evolução do cérebro humano. As emoções têm a função de resolver o problema de compromisso digno de crédito em situação de dilema do prisioneiro. Sabe-se que um jogo de dilema do prisioneiro não tem uma solução cooperativa a menos que as partes possam, de alguma forma, se comprometerem previamente, o que simplesmente transforma o jogo em outro, de sinalizar um compromisso digno de crédito. Frank afirma que as emoções servem para prender os indivíduos em opções que parecem violar seus interesses de curto prazo, mas servem aos seus interesses de longo prazo por demonstrarem um compromisso digno de crédito” (Fukuyama, 1999: 196). Novamente aqui, parece prevalecer aquela visão do indivíduo como “unidade de interesse”.
Fukuyama, entretanto, acredita que seus argumentos não levam a essa conclusão. Tanto é assim que ele conclui dizendo que o “cérebro não só contém mecanismos inatos para detectar desertores e raciocinar a respeito de contratos sociais; ele também tem uma estrutura emocional concebida para punir desertores, mesmo em detrimento de interesses imediatos. Assim, dizer que os seres humanos são, por natureza, animais sociais não é afirmar que eles são inerentemente pacíficos, cooperativos ou dignos de confiança, uma vez que eles são, com freqüência, violentos, agressivos e enganosos. Significa, em vez disso, que eles possuem recursos especiais para detectar impostores e trapaceiros e lidar com eles, assim como para gravitar na direção de colaboradores e outros que seguem regras morais. Em conseqüência disso, eles chegam a normas cooperativas muito mais depressa do que poderiam prever pressupostos mais individualistas a respeito da natureza humana” (Fukuyama, 1999: 196).
Não são poucas as inconsistências do paralelo biológico utilizado por Fukuyama. O triunfo do Estado como padrão hierárquico de organização e modo autocrático de regulação, por tudo o que se sabe, é, originariamente, o triunfo da competição culturalmente construída sobre a colaboração espontânea e, portanto, um fator exterminador de capital social. Ora, do argumento apresentado pode-se inferir que foi a competição (“corrida armamentista primitiva”) que levou à evolução biológica (rápido aumento de tamanho do cérebro humano), a qual permitiu, por sua vez, o aparecimento de instituições como o Estado e, conseqüentemente, a instalação da cooperação em escala social (ou seja, a possibilidade de produção e reprodução ampliada de capital social) por meio de (“subseqüentes”) instituições sociais cooperativas!
Para além dessas flagrantes inconsistências, porém, Fukuyama cai naquilo que Thompson (1987) chama de “definição tecnológica da cultura humana”, na qual a ferramenta – a arma utilizada para matar – separa fundamentalmente a cultura da natureza, abandonando a outra vertente explicativa (segundo a qual é o ato de partilhar o alimento – o qual estabelece uma relação entre natureza e nutrição – que nos constitui humanos e nos faz alcançar a plena condição de seres humanos), ou seja, renegando uma “definição social da cultura humana”.
Com efeito, "na antropologia há duas correntes radicalmente opostas sobre as origens da cultura humana. Uma delas é a idéia popularizada por Robert Ardrey, de que foi a ferramenta que nos tornou humanos e uma cultura separada da natureza. Sob este ponto de vista, o ato de matar é aquele que mais identifica nossa condição de seres humanos. A arma tem a sua força própria, e arremessa aquele que a utiliza para um novo nicho ecológico, uma nova adaptação. E tudo que é deixado para trás nada mais é que a extirpada natureza do primitivo. A ferramenta, exatamente como foi mostrada no filme de Kubrick: “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, é semelhante a um foguete espacial: no momento em que é detonado em direção aos céus, provoca o inferno àqueles que, por acaso, estejam sob ele... Mas há um outro quadro das origens da cultura humana... Glynn Isaac, em seu ensaio sobre o comportamento do proto-homínidas de compartilhar o alimento, nos diz que suas pesquisas arqueológicas na África levam a crer que o alimento era transportado de um lugar para outro, onde era distribuído em condições de relativa segurança. Neste exemplo, a atitude básica que nos torna humanos é a partilha do alimento; não é de admirar que os religiosos entre nós achem que a verdadeira condição humana é alcançada mais plenamente através da comunhão do alimento...” (Thompson, 1987: 22-3).
Contra os argumentos dos sociobiólogos e contra o enfoque de Robert Ardrey em “The Hunting Hypothesis” (1976), segundo o qual “foi somente quando machos do nosso ancestral semelhante ao antropóide se dedicaram seriamente à caça que nós começamos a acelerar em direção à espécie humana... [e que] homem é homem e não um chimpanzé, pois durante milhões e milhões de anos somente nós matávamos para viver”, deve-se lembrar dos estudos sobre “O Povo do Lago”, de Richard Leakey (1978): “os humanos não se comportam dessa forma: nós repartimos nossa comida e nosso argumento é que a temos repartido durante muitos milhões de anos. Repartir, não caçar ou colher, foi o que nos fez humanos” (Leakey e Lewin, 1978: 119/123).
E, se é para continuar lançando mão dos paralelos biológicos, deve-se lembrar ainda dos trabalhos de Lynn Margulis sobre a simbiose na evolução celular. Margulis, em “Symbiosis and Cell Evolution” (1981), sustenta que “a escassez de alimento na natureza provavelmente seleciona os simbiontes acima dos parceiros individualizados” (apud – Thompson, 1987: 22). E, por último, como faremos mais adiante, deve-se lembrar da obra inteira do biólogo Humberto Maturana, a qual oferece uma sólida base científica para um paralelo biológico capaz de, realmente, esclarecer alguma coisa sobre as origens da cooperação.
O problema, portanto, não está no ato de recorrer à biologia. Não é que deva ser proibido às ciências sociais recorrer à biologia para entender melhor as origens do comportamento humano em sociedade: esse tipo de coisa cheira à reserva de mercado de cientistas sociais, além de ser uma tolice – na medida em que somos mesmo seres biológicos. O problema está no tipo de biologia a que se recorre. Por exemplo, como assinalou Thompson, “[Edward O.] Wilson e [Humberto] Maturana constituem-se duas figuras opostas. Mas nestas duas diferentes biologias estão contidas duas idéias diferentes de metodologia, duas idéias diferentes de ordenação e, implicitamente, duas idéias diferentes de ordem política. A sociobiologia nega o valor ontológico do indivíduo – todo valor se baseia na combinação genética e nas relações de ‘capacidade natural de adaptação’. O indivíduo é simplesmente uma embalagem para o ‘gene egoísta’. Esta ótica de organização, das partes para o todo, é a visão de mundo de uma sociedade tecnocrata, assim como a percepção de Darwin, a respeito da luta pela sobrevivência, era a visão do mundo de uma sociedade industrial... [As idéias de Margulis sobre a seleção dos simbiontes] não estão em harmonia com os sistemas de valor de uma sociedade industrial [e constituem também uma afronta ao Darwinismo Social]. Esta noção de compartilhar o alimento é realmente fundamental para nossa biologia e nossa política. Não há descrição mais expressiva do que a nossa idéia da origem da humanidade, pois a maneira como alguém vê as origens da cultura humana é também uma descrição da maneira como esse alguém deseja ver o futuro da humanidade” (Thompson, 1987: 20/22) (n. i.).
Pelo que podemos ver com o exemplo de Francis Fukuyama, um dos poucos teóricos do capital social que se aventurou na investigação dos pressupostos, a posição atual do debate não avança grande coisa sobre o que disse Humberto Maturana e sobre o que disse Lynn Margulis, como veremos a seguir.
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12 - Visões biológicas competitivas e colaborativas
Reconhecer que a competição existe nas sociedades humanas nada tem a ver com pregar a sua imanência ou a sua inexorabilidade, ou especular sobre sua possível fonte biológica ou genética.
Argumenta-se, freqüentemente, que o mundo natural é um campo de luta pela vida. Se o mundo natural é um campo de luta pela vida (struggle for life), então seria “natural” pensar que o mundo social também o é? O darwinismo social e um pouco também o neo-darwinismo (como, aliás, qualquer darwinismo, em que pesem os esforços ingentes de vários bem-intencionados pesquisadores contemporâneos de “salvar” Darwin, dizendo que ele nunca disse “isso” ou “aquilo” – mais ou menos assim como se tentou, durante décadas, livrar Lenin das conseqüências maléficas dos sistemas políticos implantados por seus seguidores) induzem a uma resposta afirmativa a esta questão. O problema não é tomar a biologia como geratriz de comportamentos sociais, o que, sob certo aspecto, é inevitável, uma vez que o homem é um ser biológico basicamente. O problema está no tipo de biologia que se toma. Desse ponto de vista, todo darwinismo é social, na medida em que foi o comportamento social, observado num tipo de sociedade, que levou Darwin e seus seguidores a inferir um comportamento natural, ou melhor, a interpretar o comportamento natural em termos de luta. A sociedade inglesa, sob o influxo do emergente mercado capitalista, apresentava-se, de fato, como um campo de luta generalizado e até certo ponto selvagem (aliás, a expressão “capitalismo selvagem” tem tudo a ver com isso). Pelo que se pode depreender, a “lei da selva” não saiu da selva para a “praça do mercado”, mas, ao contrário, da segunda para a primeira como, aliás, já havia reconhecido Marx em 1862.
Matt Ridley resume de maneira brilhante: “Thomas Hobbes foi o antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651) gerou David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou Thomas Robert Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que Darwin deixou de pensar sobre competição entre grupos e passou a pensar sobre competição entre indivíduos, mudança que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano – embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia quanto da biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio da natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John Maynard Keynes diria que A origem das espécies é ‘simples economia ricardiana expressa em linguagem científica’. E Stephen Jay Gould disse que a seleção natural ‘era essencialmente a economia de Adam Smith vista na natureza’. Karl Marx fez mais ou menos a mesma observação: ‘É notável’, escreve ele a Friedrich Engels, em junho de 1862, ‘como Darwin reconhece, entre os animais e as plantas, a própria sociedade inglesa à qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a bellum omnium contra omnes de Hobbes’” (Ridley, 1996: 284-5).
Na verdade, a raiz do problema está nos pressupostos que tomamos: no caso da contraposição competição x cooperação, no tipo de biologia da evolução a que recorremos para construir nossos modelos de comportamento social. Como a teoria oficial da evolução – ainda ensinada em quase todas as escolas do mundo – é o neodarwinismo, acabamos importando pressupostos não-cooperativos para as nossas ciências sociais. O neodarwinismo, como se sabe, é resultado de uma combinação das idéias originais de Darwin sobre as mudanças evolutivas graduais com as descobertas de Mandel sobre a estabilidade genética. “De acordo com a teoria neodarwinista, toda variação evolutiva resulta de mutação aleatória – isto é, de mudanças genéticas aleatórias – seguida por seleção natural” (Capra, 1996: 180). Mas o neodarwinismo não é a única teoria existente. Existe também a teoria da endossimbiose seqüencial de Lynn Margulis, para quem “o neodarwinismo é fundamentalmente falho, não somente pelo fato de se basear em conceitos reducionistas, que hoje estão obsoletos, mas também porque foi formulado numa linguagem matemática inapropriada... [a linguagem] da tradição zoológica... [acostumada] a lidar apenas com uma parte pequena e relativamente recente da história da evolução. Pesquisas atuais em microbiologia indicam vigorosamente que os principais caminhos para a criatividade da evolução foram desenvolvidos muito tempo antes que os animais entrassem em cena” (Idem: 181) (n. i.).
Para Margulis, a simbiose (“a tendência de diferentes organismos para viver em estreita associação uns com os outros e, com freqüência, dentro uns dos outros, como as bactérias em nossos intestinos”) cumpre um papel fundamental na evolução: “simbioses de longa duração, envolvendo bactérias e outros microorganismos que vivem dentro de células maiores, levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida... [Assim, ela] vê a criação de novas formas de vida por meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho de evolução para todos os organismos superiores” (Capra, 1996: 185) (n. i.).
Examinemos o que diz a própria Margulis. “A simbiose, termo cunhado pelo botânico alemão Anton deBary em 1873, é a convivência de tipos muito diferentes de organismos; deBary, na verdade, a definiu como a ‘convivência de organismos de nomes diferentes’. Em certos casos, a coabitação, existência a longo prazo, resulta em simbiogênese: o surgimento de novos corpos, novos órgãos, novas espécies. Em suma, acredito que a maior parte da inovação evolutiva surgiu, e ainda surge, diretamente da simbiose. Essa não é a noção mais comum presente na maioria dos livros didáticos quanto à base da mudança evolutiva.
A simbiogênese, idéia proposta pelo russo Konstantin Merezhkovsky (1855-1921), refere-se à formação de novos órgãos e organismos por meio de incorporações simbióticas... esse é um fato fundamental na evolução. Todos os organismos grandes o bastante para que possamos vê-los são compostos de micróbios antes independentes, agrupados para formar totalidades maiores. Ao se fundir, muitos perderam o que, em retrospecto, reconhecemos como sua antiga individualidade... Creio que já consegui convencer muitos cientistas e estudantes de que partes das células, as organelas, surgiram simbiogeneticamente, como consequência de diferentes simbioses permanentes... Atualmente, trabalho na expansão da teoria, para mostrar que organismos maiores, com seus novos órgãos e novos sistemas de órgãos, também evoluíram pela simbiogênese. Se os simbiontes se fundem por completo, se eles se incorporam e formam um novo tipo de ser, o novo ‘indivíduo’, o resultado da fusão, por definição, evoluiu por simbiogênese. Embora o conceito de simbiogênese tenha sido proposto há um século, somente agora dispomos das ferramentas para testar a teoria com rigor” (Margulis, 1998: 38.9).
Para Margulis, “a simbiogênese foi a lua que puxou a maré da vida de suas profundezas oceânicas para a terra seca e para o ar... Se as pessoas um dia viajarem por longos períodos pelo espaço, a aventura nunca será tão artificial e estéril quanto em Jornada nas estrelas. A visão da engenharia asséptica nos libertando de nossos companheiros de planeta não é apenas insossa e tediosa, mas toca as raias do revoltante. Não importa o quanto nossa espécie nos preocupe, a vida é um sistema muito mais amplo. A vida é uma interdependência incrivelmente complexa de matéria e energia entre milhões de espécies fora (e dentro) de nossa própria pele. Esses estranhos da Terra são nossos parentes, nossos ancestrais, e parte de nós. Eles reciclam nossa matéria e nos trazem água e alimento. Não sobrevivemos sem ‘o outro’. Nosso passado simbiótico, interativo e interdependente, é interligado por águas agitadas” (Margulis, 1998: 106) (n. g.).
Embora Lynn Margulis esteja se referindo a processos estritamente biológicos – e por isso mesmo –, a idéia de que, na natureza, “não sobrevivemos sem o outro” (ou seja, de que só sobrevivemos com-o-outro) inspira ao pensamento social pressupostos radicalmente opostos àqueles que são sugeridos pela idéia de que, para sobreviver, temos de, de algum modo, vencer o outro (isto é, ultrapassá-lo evolutivamente por melhor adaptação).
Por isso, tem razão Fritjof Capra quando assinala que “a teoria da simbiogênese implica uma mudança radical de percepção no pensamento evolutivo. Enquanto a teoria convencional concebe o desdobramento da vida como um processo no qual as espécies apenas divergem uma da outra, Lynn Margulis alega que a formação de novas entidades compostas por meio da simbiose de organismos antes independentes tem sido a mais poderosa e mais importante das forças da evolução. Essa nova visão tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do século XIX viam somente competição na natureza – “a natureza, vermelha em dentes e em garras”, como se expressou o poeta Tennyson –, mas agora estamos começando a reconhecer a cooperação contínua e a dependência mútua entre todas as formas de vida como aspectos centrais da evolução. Nas palavras de Margulis e de Sagan: ‘A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim, pela formação de redes’ [Margulis e Sagan, 1986: 15]” (Capra, 1996: 185) (n. i.) (n. g.).
Se nossos antropólogos, sociólogos e economistas passassem a tomar como referência a produção, por exemplo, de Margulis, Maturana ou Gould, ao invés de Darwin e seus seguidores, Wilson ou Dawkins; ou seja, se tomassem como pressupostos outras biologias da evolução, é muito provável que fizessem outro tipo de ciência social e econômica e que, assim, suas interpretações do que ocorre na natureza não fossem tão projetivas do que observam na sociedade mercantil.
Quando seres não humanos chocam-se entre si no seu processo de aceder a recursos sobrevivenciais ou reprodutivos – mesmo que uns devorem ou matem os outros – isso não é um duelo, uma guerra, uma competição em termos humanos, porque, em 99,999...9% dos casos, não há um “átomo de interesse” envolvido em disputa, não há auto-asserção egóica, não há a emoção de se comprazer no ato de privar o outro dos recursos necessários à sua subsistência ou de aniquilá-lo, não há assassinato ou, se houver, como se diz que há no caso de certos primatas (os 0,00...1%), essa emoção não é constitutiva do seu viver coletivo, a não ser que, por alguma razão (em geral, não por acaso, o contato com humanos civilizados), tenha se estabelecido uma incongruência com o meio, o que acabará levando tal espécie ou linhagem à extinção, em virtude da impossibilidade de realização da sua autopoiese. Todos os choques entre seres não humanos são, como reconheceu Maturana, resultados de processos coletivos de realização de autopoiese, coreografias da dança estrutural que permite a manutenção e a reprodução de espécies e linhagens em congruências múltiplas e recíprocas com o meio.
Os darwinismos são sociais porque decalcam a biologia da sociologia desse tipo de sociedade em que vivemos e, nesse tipo de sociedade (do padrão civilizatório patriarcal), sempre haverá competição, em algum grau, em todas as esferas da realidade humano-social. A conclusão é a de que não há como restringir a competição à esfera do mercado, porque não há como desvencilhar a competição do ser humano realmente existente, na medida em que somos, em parte, culturalmente construídos segundo um padrão que se tem transmitido, de modo não-genético, geração após geração (pelo menos nos últimos seis mil anos). O que não quer dizer que não possa haver graus maiores de cooperação e/ou graus menores de competição nas sociedades atuais. Nem quer dizer que uma “lógica” competitiva (como, por exemplo, a do mercado) deva, necessariamente, prevalecer nas sociedades civis e nos governos das sociedades realmente existentes no mundo de hoje (como preconiza a ideologia dita neoliberal e outras teorias sub-liberais esposadas por grande parte dos economistas hodiernos).
As teorias do capital social, pelo contrário, argumentam que graus maiores de cooperação são mais favoráveis ao desenvolvimento das sociedades humanas. Ao fazer isso, pressupõem que o desenvolvimento social é condição para o desenvolvimento, de diversos pontos de vista sob os quais entendem o termo “desenvolvimento”, inclusive quando consideram apenas o desenvolvimento econômico. As teorias do capital aocial não são teorias para uma sociedade que não existe, mas para as sociedades realmente existentes, as quais, embora manifestem, em maior ou menor grau, uma racionalidade competitiva em todas as suas esferas, também são pervadidas, em maior ou menor grau, por uma racionalidade (e por uma emocionalidade!) cooperativa. Então, as teorias do capital social dizem o seguinte: quanto maior for o exercício social da cooperação, mais condições terá uma sociedade de se desenvolver socialmente e, por conseguinte, mais condições terá de ensejar a dinamização das potencialidades e a actualização das capacidades das pessoas que a compõem – o que redunda numa maior capacidade de realizar bons governos e de prosperar economicamente.
Num certo sentido, isso vai contra a crença, hoje bastante generalizada, de que, quanto maior o grau de enraizamento e de abrangência de uma racionalidade competitiva, mais condições terá uma sociedade de dinamizar sua economia, de crescer e, como conseqüência, de melhorar as condições de vida de suas populações. Mas essa crença é meio estúpida – de vez que quem dinamiza a economia não é o capital físico ou financeiro, enquanto coisas, entes objetiváveis independentemente das relações sociais que os constituem, mas a qualidade das relações entre as pessoas; e de vez que a qualidade dessas relações depende das capacidades das pessoas e do ambiente em que estas pessoas se relacionam – o qual deve fornecer uma base de confiança para que se possa efetivar qualquer relação economicamente viável e um lastro de cooperação para que possam tornar-se economicamente favoráveis seus resultados (reduzindo-se, por exemplo, as margens de incerteza e os custos de transação).
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13 - Nem anjos, nem demônios
Para concluir. Inspirada, em grande parte, pela teoria dos jogos, existe hoje uma conversa de que o ser humano é, ao mesmo tempo, demônio e anjo, falcão e pomba. Tal caracterização, que agrada a mentalidade, um tanto infantilizada (no sentido de tornada socialmente irresponsável), de alguns estrategistas que vivem se divertindo com jogos matemáticos, na minha opinião, nada tem de científica.
De que ser humano se está falando? Os Ianomamis seriam, ao mesmo tempo, demônios e anjos? Por quê? Milhares de mães neolíticas, há 8 mil anos, nas margens do Danúbio, teriam se comportado como falcões, em virtude de alguma característica intrinsecamente constitutiva da classe Homo, de alguma predisposição genética para a competição? Respostas afirmativas para tais questões não são ao menos verossímeis para qualquer pessoa de bom senso.
No entanto, a história humana, pelos menos nos últimos seis mil anos, mostra, à farta, como é possível produzir demônios e falcões. A julgar pelas condições atuais de nossa vida social, isso pode ser feito sem grande dificuldade: basta introduzir padrões de organização hierárquicos e modos de regulação autocráticos em uma coletividade humana, para que em tal coletividade se instaure a predação social, com tudo o que isso implica em termos de busca, a qualquer preço, da satisfação de interesses individuais, guerra, apropriação, sujeição, abuso (uso forçado de seres humanos por outros seres humanos) e controle.
Poder-se-ia objetar, argumentando que tais características da predação social já deveriam estar presentes, em alguma medida, em uma sociedade, para que se pudesse instaurar padrões hierárquicos de organização e modos autocráticos de regulação nesta sociedade. Por certo, a hierarquia e a autocracia reproduzem socialmente, e em escala ampliada, demônios ou falcões – mas, se a questão é saber como se produziram, originariamente, hierarquia e autocracia na humanidade, então o assunto torna-se mais complexo.
Pode-se adotar três grandes tipos de respostas para essa questão: a) o tipo de resposta de quem imagina que as características da predação (ou, pelo menos, uma parte dessas características – e fala-se aqui da predação social, não da predação natural) são constitutivas da espécie humana e fazem parte de um patrimônio que, de alguma forma, se transmite geneticamente geração após geração; b) o tipo de resposta de quem imagina que as características da predação social são resultados de configurações comportamentais adquiridas fortuitamente, mas que, uma vez adquiridas, se conservaram por meio da cultura, quer dizer, da transmissão não genética de comportamentos, geração após geração; e c) o tipo de resposta que combina as duas respostas anteriores.
Penso que se deva dizer que (ainda) não há como resolver definitivamente a questão. Os argumentos em prol desta ou daquela resposta não são conclusivos, conquanto, em certo sentido, sejam reveladores: às preferências por um tipo de resposta para explicar um comportamento pregresso, associam-se, em geral, preferências atuais por caminhos a seguir no futuro. De sorte que não parece fortuita a coincidência, por exemplo, entre a preferência pela explicação genética e uma não adesão (ou uma adesão apenas parcial) à democracia e, sobretudo, à democratização ou radicalização da democracia.
Já que não há como olhar o passado, a não ser com os olhos do presente e, além disso, sob a perspectiva de um futuro desejável, na verdade, modificamos o passado para adequá-lo às nossas expectativas e não há ciência que possa ser invocada para separar uma visão objetiva do passado de toda a carga de subjetividade que lhe atribuímos quando tentamos desvendá-lo. Assim, por exemplo, quem vê competição sistemática na natureza não humana (ou mesmo na sociedade humana pré-patriarcal), quem vê “política chimpanzé”, quem vê guerra entre artrópodes, está, na verdade, projetando seus modelos mentais de uma civilização de predadores em realidades que nada têm a ver com a cultura patriarcal, hierárquica e autocrática que tem se conservado nos últimos seis mil anos na maior parte do mundo.
A observação de que nem todos os seres humanos se comportam como anjos ou como demônios, ao invés de levar à afirmação de que somos, ao mesmo tempo, anjos e demônios, deveria levar à afirmação, muito mais lógica, de que não somos nem anjos nem demônios. A introdução desse tipo de classificação é que constitui o problema, ao supor que deva existir bem (altruísmo puro) e mal (egoísmo/altruísmo egoísta ou instrumental) na constituição do humano, ou um bem separável do mal em termos ontológicos e não contingentes. Sim, há uma ordem social que deriva da separação entre bem e mal e entre pombas (cooperativas/fiéis) e falcões (competitivos/desertores), mas esta ordem é cultural – e, portanto, social mesmo – e não natural.
Sustento, baseado em minhas preferências radicalmente democráticas, que é possível pensar da seguinte maneira. Como não há nada na natureza animal, inclusive na humana, que force a competição sistemática, nem mesmo a escassez de recursos sobrevivenciais (e aqui tomo a liberdade de generalizar a suposição de Lynn Margulis, segundo a qual diante da escassez a natureza tende, no longo prazo, a selecionar os simbiontes em detrimento dos predadores), então penso que a competição não deve ser constitutiva do humano, nem em termos do genótipo da espécie, nem em termos do fenótipo da linhagem. Por outro lado, como também não há nada na natureza animal que impeça a cooperação sistemática, e, sim, pelo contrário, como tão bem nos mostrou Humberto Maturana, existem, no caso do humano, condicionantes que ensejam a prática continuada da cooperação – pelo fato do nosso ser individual ser social –, então imagino que a cooperação deve ser uma característica fenotípica da linhagem humana que pode se realizar, porquanto não encontra nenhum óbice genotípico na espécie.
Portanto, resolvo assim a questão: o ser humano, deixado à sua própria sorte, no mínimo, nada tem que o impeça de ser cooperativo. Pode, entretanto, não ser cooperativo, desde que criemos condicionantes culturais que impeçam a colaboração e induzam socialmente à competição. Como procurei mostrar no meu livro “Capital Social” (Franco, 2001), tais condicionantes são, basicamente, de dois tipos: aqueles introduzidos pelo padrão de organização e aqueles instaurados pelo modo de regulação dos conflitos (gerados pelo padrão de organização ou pelo próprio modo de regulação), os quais determinam, respectivamente, a estrutura e a dinâmica de todas as sociedades humanas (pelo menos nos últimos seis mil anos). Pessoas conectadas horizontalmente, segundo um padrão de rede, no mínimo, não terão motivos para ser competitivas. Pessoas subordinadas verticalmente umas às outras, no mínimo, terão motivos para não ser cooperativas (sobretudo em relação às quais devem obedecer, isto é, agir motivadas pela vontade dos superiores e não pelo seu próprio desejo). Pessoas que pertencem a sociedades hierárquicas, que regulam os conflitos entre superiores e inferiores de modo autocrático, estarão submetidas a restrições para praticar a cooperação, ou melhor, para exercer socialmente a cooperação. Pessoas que pertencem a sociedades que, embora hierárquicas, tentam regular seus conflitos democraticamente, poderão praticar socialmente a cooperação, na exata medida em que tais sociedades consigam regular, de fato, e não apenas em virtude de princípios declarados em códigos legais (como as Constituições, por exemplo), seus conflitos democraticamente.
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Notas
(1) Uma teoria da cooperação baseada nas idéias de Maturana pode ser tentada, sobretudo, a partir da “Biologia do Fenômeno Social” (1985a), um pequeno texto, basilar, publicado originalmente em alemão, e dos seguintes trabalhos: “De Máquinas e Seres Vivos. Autopoiesis: a organização do vivo” (1973) com Francisco Varela García; “A Árvore do Conhecimento” (1984), com Francisco Varela; “Herança e Meio Ambiente” (1985b), material docente inédito, escrito com Jorge Luzoro G.; “Ontologia do Conversar” (1988a); “Linguagem e Realidade: a origem do humano” (1988b), conferência organizada pela Sociedade de Biologia do Chile em 3 de novembro de 1988; “Um olhar sobre a educação atual da perspectiva da biologia do conhecimento” (1988c), publicado na coletânea “Emoções e Linguagem em Educação e Política” (1990); “Linguagem, Emoções e Ética na Atividade Política” (1988d), publicado na coletânea acima, da qual também consta um capítulo intitulado “Perguntas e Respostas” (e) e uma “Epítome” (f), ambas, suponho, da mesma data; “O Sentido do Humano” (1991), coletânea de entrevistas, prefácios, cartas, conferências e artigos – sobretudo as entrevistas “Onde?” (1989a), “Conviver para Conhecer” (1990a), “Convivência, aceitação e criatividade” (1991a), e “Um novo propósito de convivência” (1991b), o prefácio a “O Cálice e a Espada” (1990b), a carta “Quando se é humano?” (1990c), a conferência “Fundamentos Matrísticos” (1989b) e os artigos “Utopia e Ficção Científica” (1990d) e “Iniciativa Planetária: a paz [vista] de fora da guerra” (1988e); “Amor e jogo: Fundamentos Esquecidos do Humano. Do Patriarcado à Democracia” (1993), coletânea de textos, alguns com Gerda Verden-Zöller, que começaram a ser escritos em 1988 – sobretudo a “Introdução” e o “Epílogo e Reflexões Finais” (de ambos) e as “Conversações Matrísticas e Patriarcais” (de Maturana); e “A democracia é uma obra de arte” (s. d.), alocução em uma mesa redonda organizada pelo Instituto para o Desenvolvimento da Democracia Luís Carlos Galán, da Colômbia, da qual possuo agora apenas uma cópia da cópia que me foi entregue pessoalmente pelo autor, infelizmente, sem data; e, por último, o prefácio de Humberto Maturana à segunda edição da versão em espanhol do “De Máquinas e Seres Vivos. Autopoiese: a organização do vivo”, intitulado “Vinte Anos Depois” (1994).
(2) Deve-se examinar, por exemplo, a obra mais recente de Robert Wright, 2000: “Nonzero”, e também o seu livro anterior “The Moral Animal” (1994).
(3) Essa discussão da distinção entre “sociedades de parceria” e “sociedades de dominação”, já colocada por outros pesquisadores, foi recolocada por mim no capítulo 8 de “Capital Social” (Franco, 2001). É bom registrar aqui que qualquer coisa como o que Putnam (1993) chama de “cultura política” se baseia sempre num “paradigma civilizatório”. No caso das culturas políticas predominantes em sociedades de dominação – ou hierárquicas, como ele escreveu – este paradigma (de tradicionalidade) de fato verticalizou o mundo, “povoando” todo o universo simbólico com formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos social isotrópico mas, pelo contrário, privilegiam a direção vertical.
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_____. Mystere Dance: on the evolution of human sexuality. New York: Summit Books, 1991.
_____. Garden of microbial delights: a practical guide to the subvisible world. Dubuque: Kendall-Hunt, 1993.
_____. What is a life?. New York: Simon and Schuster, 1995.
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Margulis, Lynn. O Planeta Simbiótico: uma nova perspectiva da evolução. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
Maturana, Humberto e Varela, Francisco. De Máquinas e Seres Vivos – autopoiesis: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
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Maturana, Humberto (1988a). Ontología del Conversar in Maturana, Humberto (1985). Desde la Biología a la Psicología. 3. ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1996.
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_____. (1988c). Una mirada a la educacion actual desde la perspectiva de la biologia del conocimiento in Maturana, Humberto. Emociones y Lenguaje en Educacion y Politica. 9. ed. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1997.
_____. (1988d). Lenguaje, emociones y etica en el quehacer politico in Maturana, Humberto. Emociones y Lenguaje en Educacion y Politica. 9. ed. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1997.
_____. (1988e). Preguntas y Respuestas in Maturana, Humberto. Emociones y Lenguaje en Educacion y Politica. 9. ed. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1997.
_____. (1988f). Epítome in Maturana, Humberto. Emociones y Lenguaje en Educacion y Politica. 9. ed. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1997.
_____. (1991). El sentido de lo humano. 9. ed. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1997.
Maturana, Humberto & Verden-Zöller, Gerda (1993). Amor y Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia 5. ed. Santiado de Chile: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997.
Maturana, Humberto (1994). Vinte Anos Depois, Prefácio à segunda edição da versão em espanhol do De Máquinas e Seres Vivos (ed. cit.).
Maturana, Humberto (s. d.). A democracia é uma obra de arte (alocução em uma mesa redonda organizada pelo Instituto para o Desenvolvimento da Democracia Luís Carlos Galán, Colômbia – repro. obtida pessoalmente com o autor e agora desaparecida).
Putnam, Robert. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
Ridley, Matt. The red queen: sex and the evolution of human nature. London: Viking, 1993.
_____. As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Thompson, William Irwin. As implicações culturais da nova biologia in Thompson, W. I. (org.) (1987). Gaia: uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia-Global, 1990.
Trivers, Richard. The evolution of reciprocal altruism, Quarterly Review of Biology, 46 (35-56), 1971.
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von Mises, Ludwig. Socialism: na economic and sociological analysis. Indianápolis: Liberty Classics, 1981.
Wilson, Edward. The insect societies. Cambridge: Harvard University Press, 1971.
_____. Sociobiology: the new synthesis. Cambridge: Harvard University Press, 1975.
_____. On human nature. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
Wright, Robert. O Animal Moral. Por que somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista. Rio de Janeiro: Campus, 1996.
_____. Não-Zero: a lógica do destino humano. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

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http://escoladeredes.net/group/bibliotecahumbertomaturana

BIBLI.E=Rjá reuniu os seguintes textos de Humberto Maturana:

A LISTA ABAIXO PODE SER BAIXADA DA BIBLIOTECA HUMBERTO MATURANA REORGANIZADA
MATURANA, Humberto (2004): Entrevista para revista Humanitates
MATURANA, Humberto et all. (2009): Matriz Ética do Habitar Humano
MATURANA, Humberto, DAVILA, Ximena, MUÑOZ, Ignacio & GARCÍA, Patrício (2009):Sustentabilidade o armonía biológico-cultural de los procesos?
MATURANA, Humberto (1993?): A democracia é uma obra de arte
MATURANA, Humberto e PÖRKSEN, B. (2004): Del ser ao hacer
MATURANA, Humberto e DÁVILA, Ximena (2003): Biologia del Tao y el Camino del Amar
MATURANA, Humberto (2001): Cognição, ciência e vida cotidiana
MATURANA, Humberto (1993): Conversações matrísticas e patriarcais
MATURANA, Humberto (1992): El sentido de lo humano
MATURANA, Humberto (1985): Desde la biologia a la psicologia
MATURANA, Humberto (1985): Biologia del fenómeno social
MATURANA, Humberto (1988): Ontologia del conversar
MATURANA, Humberto (1987): Biology of language
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984): El Árbol del Conocimiento
MATURANA, Humberto & VARELA, Francisco (1984): A árvore do conhecimento
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1973): De máquinas y seres vivos. Autopoiesis: la organización de lo vivo
MATURANA, Humberto (s./d.): Aprendizaje o deriva ontogénica
MATURANA, Humberto (s./d.): Reflexões: Aprendizagem ou consequência ontogenética

Falta levantar, procurar a versão digital e pendurar aqui os demais textos de Maturana.

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CONVERSAÇÕES MATRÍSTICAS E PATRIARCAIS - APRESENTAÇÃO E INTRODUÇÃO

Este é o primeiro capítulo do livro de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller (1993) intitulado Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano, traduzido e publicado no Brasil pela Palas Athena Editora (São Paulo: 2009).
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Sumário
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
1 - O QUE É UMA CULTURA?
2 - MUDANÇA CULTURAL
3 - CULTURA MATRÍSTICA E CULTURA PATRIARCAL
3.1 - Cultura patriarcal
3.2 - Cultura matrística
4 - O EMOCIONAR
4.1 - O emocionar patriarcal
4.2 - O emocionar matrístico
5 - ORIGEM DO PATRIARCADO
6 - A DEMOCRACIA
6.1 - Origem
6.2 - Ciência e Filosofia
6.3 - A Democracia hoje
7 – REFLEXÕES ÉTICAS FINAIS
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NOTA PRELIMINAR
O termo "matrístico" é usado no título e no texto deste capítulo com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra "matrístico", portanto, é o contrário de "matriarcal", que significa o mesmo que o termo "patriarcal", numa cultura na qual as mulheres têm o papel dominante. Em outras palavras - e como se verá ao longo deste capítulo -, a expressão "matrística" é aqui usada intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa relação de participação e confiança, e não de controle e autoridade, e na qual a vida cotidiana é vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres vivos, mesmo na relação predador-presa.
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APRESENTAÇÃO
Este ensaio é o resultado de várias, inspiradas e iluminadoras conversas que tive com Gerda Verden-Zoller, nas quais aprendi muito sobre a relação materno-infantil e comecei a perguntar-me sobre a participação da mudança emocional na transformação cultural. Mas isso não é tudo. Essas conversas levaram-me também a considerar as relações homem-mulher de uma maneira independente das particularidades da perspectiva patriarcal, e a perceber como elas surgem na constituição do espaço relacional da criança em crescimento. Por tudo isso, agradeço-lhe e reconheço sua participação na origem de muitas das ideias contidas neste trabalho.
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INTRODUÇÃO
Este ensaio é um convite a uma reflexão sobre a espécie de mundo em que vivemos, e a fazê-lo por meio do exame dos fundamentos emocionais do nosso viver. A vida humana, como toda vida animal, é vivida no fluxo emocional que constitui, a cada instante, o cenário básico a partir do qual surgem nossas ações. Além disso, creio que são nossas emoções (desejos, preferências, medos, ambições...) - e não a razão - que determinam, a cada momento, o que fazemos ou deixamos de fazer. Cada vez que afirmamos que nossa conduta é racional, os argumentos que esgrimimos nessa afirmação ocultam os fundamentos emocionais em que ela se apoia, assim como aqueles a partir dos quais surge nosso suposto comportamento racional.
Ao mesmo tempo, penso que os membros de diferentes culturas vivem, movem-se e agem de maneira distinta, conduzidos por configurações diferentes em seu emocionar. Estas determinam neles vários modos de ver e não ver, distintos significados do que fazem ou não fazem, diversos conteúdos em suas simbolizações e diferentes cursos em seu pensar, como modos distintos de viver. Por isso mesmo, também creio que são os variados modos de emocionar das culturas o que de fato as torna diferentes como âmbitos de vida diversos.
Por fim, considero que se levarmos em conta os fundamentos emocionais de nossa cultura - seja ela qual for -, poderemos entender melhor o que fazemos ou não fazemos como seus membros. E, ao perceber os fundamentos emocionais do nosso ser cultural, talvez possamos também deixar que o entendimento e a percepção influenciem nossas ações, ao mudar nosso emocionar em relação ao nosso ser cultural.

Fonte: http://escoladeredes.net/group/bibliotecahumbertomaturana/page/conversacoes-matristicas-e-patriarcais-apresentacao-e-introducao

CONVERSAÇÕES... 1 - O QUE É UMA CULTURA?

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Nós, humanos, surgimos na história da família dos primatas bípedes à qual pertencemos quando o linguajear - como maneira de conviver em coordenações de coordenações comportamentais consensuais - deixou de ser um fenômeno ocasional. Ao conservar-se, geração após geração, num grupo humano, ele se tornou parte central da maneira de viver que definiu dali por diante a nossa linhagem. Ou seja - e dito de modo mais preciso -, penso que a linhagem a que pertencemos como seres humanos surgiu quando a prática da convivência em coordenações de coordenações comportamentais consensuais - que constitui o linguajear - passou a ser conservada de maneira transgeracional pelas formas juvenis desse grupo de primatas, ao ser aprendida, geração após geração, como parte da prática cotidiana de convívio.
Além disso, penso que, ao surgir como um modo de operar na convivência, o linguajear apareceu necessariamente entrelaçado com o emocionar. Constituiu-se então de fato o viver na linguagem, a convivência em coordenações de coordenações de ações e emoções que chamo de conversar (Maturana, 1988). Por isso penso que, num sentido estrito, o humano surgiu quando nossos ancestrais começaram a viver no conversar como uma maneira cotidiana de vida que se conservou, geração após geração, pela aprendizagem dos filhos.
Também penso que, ao aparecer o humano - na conservação transgeracional do viver no conversar -, todas as atividades humanas surgiram como conversações (redes de coordenações de coordenações comportamentais consensuais entrelaçadas com o emocionar). Portanto, todo o viver humano consiste na convivência em conversações e redes de conversações. Em outras palavras, digo que o que nos constitui como seres humanos é nossa existência no conversar.
Todas as atividades e afazeres humanos ocorrem como conversações e redes de conversações. Aquilo que um observador diz que um Homo sapiens faz fora do conversar não é uma atividade ou um afazer tipicamente humano. Assim, caçar, pescar, guardar um rebanho, cuidar das crianças, a veneração, a construção de casas, a fabricação de tijolos, a medicina... como atividades humanas, são diferentes classes de conversações. Consistem em distintas redes de coordenações de coordenações consensuais de ações e emoções.
Na história da humanidade, as emoções preexistem à linguagem, porque como modos distintos de mover-se na relação são constitutivas do animal. Cada vez que distinguimos uma emoção em nós mesmos ou em um animal, fazemos uma apreciação das ações possíveis desse ser. As diversas palavras que usamos para referir-nos a distintas emoções denominam, respectivamente, os domínios de ações em que nós ou os outros animais nos movemos ou podemos mover-nos.
Assim, ao falar de amor, medo, vergonha, inveja, nojo... conotamos domínios de ações diferentes, e advogamos que cada um deles - animal ou pessoa - só pode fazer certas coisas e não outras. Com efeito, sustento que a emoção define a ação. Falando num sentido biológico estrito, o que conotamos ao falar de emoções são distintas disposições corporais dinâmicas que especificam, a cada instante, que espécie de ação é um determinado movimento ou uma certa conduta. Nessa ordem de idéias, mantenho que é a emoção sob a qual ocorre ou se recebe um comportamento ou um gesto que faz deles uma ação ou outra; um convite ou uma ameaça, por exemplo.
Daí se segue que, se quisermos compreender o que acontece em qualquer conversação, é necessário identificar a emoção que especifica o domínio de ações no qual ocorrem as coordenações de coordenações de ações que tal conversação implica. Portanto, para entender o que acontece numa conversação, é preciso prestar atenção ao entrelaçamento do emocionar e do linguajear nela implicado.
Além disso, temos de fazê-lo percebendo que o linguajear ocorre, a cada instante, como parte de uma conversação em progresso, ou surge sobre um emocionar já presente. Como resultado, o significado das palavras - isto é, as coordenações de ações e emoções que elas implicam como elementos, no fluxo do conversar a que pertencem - muda com o fluir do emocionar. E vice-versa: o fluxo do emocionar muda com o fluir das coordenações de ações. Portanto, ao mudar o significado das palavras modifica-se o fluxo do emocionar.
Por causa do contínuo entrelaçamento do linguajear e do emocionar que implica o conversar, as conversações recorrentes estabilizam o emocionar que elas implicam. Ao mesmo tempo, devido a esse mesmo entrelaçamento do linguajear com o emocionar, mudanças nas circunstâncias do viver que modificam o conversar implicam alterações no fluir do emocionar, tanto quanto no fluxo das coordenações de ações daqueles que participam dessas conversações.
Pois bem: o que é uma cultura, segundo essa perspectiva?
Sustento que aquilo que conotamos na vida cotidiana, quando falamos de cultura ou de assuntos culturais, é uma rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações de emoções e ações. Esta se realiza como uma configuração especial de entrelaçamento do atuar com o emocionar da gente que vive essa cultura. Desse modo, uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua participação nas conversações que a constituem e definem. Daí se segue, também, que nenhuma ação e emoção particulares definem uma cultura, porque esta, como rede de conversações, é uma configuração de coordenações de ações e emoções.
Por fim, de tudo isso resulta que diferentes culturas são redes distintas e fechadas de conversações, que realizam outras tantas maneiras diversas de viver humano como variadas configurações de entrelaçamento do linguajear com o emocionar. Também se segue que uma mudança cultural é uma alteração na configuração do atuar e do emocionar dos membros de uma cultura. Como tal, ela ocorre como uma modificação na rede fechada de conversações que originalmente definia a cultura que se modifica.
Deveria ser aparente, pelo que acabo de dizer, que as bordas de uma cultura, como modo de vida, são operacionais. Surgem com seu estabelecimento. Ao mesmo tempo, deveria ser também aparente que a pertença a uma cultura é uma condição operacional, não uma condição constitutiva ou propriedade intrínseca dos seres humanos que a realizam. Qualquer ser humano pode pertencer a diferentes culturas em diversos momentos do seu viver, segundo as conversações das quais ele participa nesses momentos.
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CONSERVAÇÕES... 2 - MUDANÇA CULTURAL

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Se uma cultura, como modo humano de vida, é uma rede fechada de conversações, ela surge logo que uma comunidade humana começa a conservar uma rede especial de conversações como a maneira de viver dessa comunidade. Por outro lado, desaparece ou muda quando tal rede de conversações deixa de ser preservada.
Dito de outra forma: uma cultura - na qualidade de rede particular de conversações - é uma configuração especial de coordenações de coordenações de ações e emoções (um entrelaçamento específico do linguajear com o emocionar). Ela surge quando uma linguagem humana começa a conservar, geração após geração, uma nova rede de coordenações de coordenações de ações e emoções como sua maneira própria de viver. E desaparece ou se modifica quando a rede de conversações que a constitui deixa de se conservar. Assim, para entender a mudança cultural devemos ser capazes de caracterizar a rede fechada de conversações que - como prática cotidiana de coordenações de ações e emoções entre os membros de uma comunidade específica - constituem a cultura que vive tal comunidade. Devemos também reconhecer as condições de mudança emocional sob as quais as coordenações de ações de uma comunidade podem se modificar, de modo a que surja nela uma nova cultura.
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CONVERSAÇÕES... 3 - CULTURA MATRISTICA E CULTURA PATRIARCAL

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Considerarei agora dois casos específicos. Um é a cultura básica na qual nós, humanos ocidentais modernos, estamos imersos - a cultura patriarcal européia. O outro é a cultura que, sabemos agora (Gimbutas, 1982 e 1991), a precedeu na Europa e que chamaremos de cultura matrística. Essas duas culturas constituem dois modos diferentes de viver as relações humanas. Segundo foi dito antes, as redes de conversação que as caracterizam realizam duas configurações de coordenações de coordenações de ações e emoções distintas, que abrangem todas as dimensões desse viver.
A seguir, descreverei essas duas culturas em termos bem mais coloquiais. Falarei do modo diferente de operar na vida cotidiana de seus membros no âmbito das relações humanas. Mas antes quero fazer algumas considerações sobre a vida cotidiana.
Penso que a história da humanidade seguiu e segue um curso determinado pelas emoções e, em particular, pelos desejos e preferências. São estes que, em qualquer momento, determinam o que fazemos ou deixamos de fazer, e não a disponibilidade do que hoje conotamos ao falar de recursos naturais ou oportunidades econômicas, os quais tratamos como condições do mundo cuja existência seria independente do nosso fazer. Nossos desejos e preferências surgem em nós a cada instante, no entrelaçamento de nossa biologia com nossa cultura e determinam, a cada momento, nossas ações. São eles, portanto, que definem, nesses instantes, o que constitui um recurso, o que é uma possibilidade ou aquilo que vemos como uma oportunidade.
Além disso, sustento que sempre agimos segundo nossos desejos, mesmo quando parece que atuamos contra algo ou forçados pelas circunstâncias; fazemos sempre o que queremos, seja de modo direto, porque gostamos de fazê-lo, ou indiretamente, porque queremos as conseqüências de nossas ações, mesmo que estas não nos agradem. Afirmo, ademais, que se não compreendermos isso não poderemos entender o nosso ser cultural. Se não compreendermos que nossas emoções constituem e guiam nossas ações na vida, não teremos elementos conceituais para entender a participação de nossas emoções no que fazemos como membros de uma cultura e, conseqüentemente, o curso de nossas ações nela. Também afirmo, por fim, que se não entendermos que o curso das ações humanas segue o das emoções, não poderemos compreender a trajetória da história da humanidade.
Caracterizemos agora as culturas patriarcal e matrística, em termos das conversações fundamentais que as constituem, com base em como estas aparecem no que fazemos em nossa vida cotidiana.
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3.1 - Cultura patriarcal
Os aspectos puramente patriarcais da maneira de viver da cultura patriarcal européia - à qual pertence grande parte da humanidade moderna, e que doravante chamarei de cultura patriarcal - constituem uma rede fechada de conversações. Esta se caracteriza pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade.
Assim, em nossa cultura patriarcal falamos de lutar contra a pobreza e o abuso, quando queremos corrigir o que chamamos de injustiças sociais; ou de combater a contaminação, quando falamos de limpar o meio ambiente; ou de enfrentar a agressão da natureza, quando nos encontramos diante de um fenômeno natural que constitui para nós um desastre; enfim, vivemos como se todos os nossos atos requeressem o uso da força, e como se cada ocasião para agir fosse um desafio.
Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança e buscamos certezas em relação ao controle do mundo natural, dos outros seres humanos e de nós mesmos. Falamos continuamente em controlar nossa conduta e emoções. E fazemos muitas coisas para dominar a natureza ou o comportamento dos outros, com a intenção de neutralizar o que chamamos de forças antissociais e naturais destrutivas, que surgem de sua autonomia.
Em nossa cultura patriarcal, não aceitamos os desacordos como situações legítimas, que constituem pontos de partida para uma ação combinada diante de um propósito comum. Devemos convencer e corrigir uns aos outros. E somente toleramos o diferente confiando em que eventual- mente poderemos levar o outro ao bom caminho - que é o nosso ou até que possamos eliminá-lo, sob a justificativa de que está equivocado.
Em nossa cultura patriarcal, vivemos na apropriação e agimos como se fosse legítimo estabelecer, pela força, limites que restringem a mobilidade dos outros em certas áreas de ação às quais eles tinham livre acesso antes de nossa apropriação. Além do mais, fazemos isso enquanto retemos para nós o privilégio de mover-nos livremente nessas áreas, justificando nossa apropriação delas por meio de argumentos fundados em princípios e verdades das quais também nos havíamos apropriado. Assim, falamos de recursos naturais, numa ação que nos torna insensíveis à negação do outro implícita em nosso desejo de apropriação.
Em nossa cultura patriarcal, repito, vivemos na desconfiança da autonomia dos outros. Apropriamo-nos o tempo todo do direito de decidir o que é ou não legítimo para eles, no contínuo propósito de controlar suas vidas. Em nossa cultura patriarcal, vivemos na hierarquia, que exige obediência. Afirmamos que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão. E estamos sempre prontos para tratar todas as relações, humanas ou não, nesses termos. Assim, justificamos a competição, isto é, o encontro na negação mútua como a maneira de estabelecer a hierarquia dos privilégios, sob a afirmação de que a competição promove o progresso social, ao permitir que o melhor apareça e prospere.
Em nossa cultura patriarcal, estamos sempre prontos a tratar os desacordos como disputas ou lutas. Vemos os argumentos como armas, e descrevemos uma relação harmônica como pacífica, ou seja, como uma ausência de guerra - como se a guerra fosse a atividade humana mais fundamental.
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3.2 - Cultura matrística
A julgar pelos restos arqueológicos encontrados na área do Danúbio, nos Bálcãs e no Egeu (Gimbutas, 1982), a cultura matrística pré-patriarcal européia deve ter sido definida por uma rede de conversações completamente diferente da patriarcal. Não temos acesso direto a tal cultura. Penso, porém, que a rede de conversações que a constituiu pode ser reconstruída pelo que se revela na vida cotidiana daqueles povos que ainda a vivem, e pelas conversações não-patriarcais presentes nas malhas das redes de conversação patriarcais que constituem nossa cultura patriarcal de hoje.
Assim, acredito que devemos deduzir, com base nos restos arqueológicos acima mencionados, que os povos que viviam na Europa entre sete e cinco mil anos antes de Cristo eram agricultores e coletores. Tais povos não fortificavam seus povoados, não estabeleciam diferenças hierárquicas entre os túmulos dos homens e das mulheres, ou entre os túmulos dos homens, ou entre os túmulos das mulheres.
Também é possível notar que esses povos não usavam armas como adornos, e que naquilo que podemos supor que eram lugares cerimoniais místicos (de culto), depositavam principalmente figuras femininas. Mais ainda, desses restos arqueológicos podemos também deduzir que as atividades de culto (cerimoniais místicos) eram centradas no sagrado da vida cotidiana, num mundo penetrado pela harmonia da contínua transformação da natureza por meio da morte e do nascimento, abstraída como uma deusa biológica em forma de mulher, ou combinação de mulher e homem, ou de mulher e animal.
Como vivia esse povo matrístico? Os campos de cultivo e coleta não eram divididos. Nada mostra que permita falar de propriedade. Cada casa tinha um pequeno lugar cerimonial, além do local de cerimônias da comunidade. As mulheres e os homens se trajavam de modo muito similar, nas vestes que vemos nas pinturas murais minóicas de Creta.
Tudo indica que viviam imbuídos do dinamismo harmônico da natureza, evocado e venerado sob a forma de uma deusa. Também usavam as fases da lua, a metamorfose dos insetos e as diferentes peculiaridades da vida das plantas e animais, não para representar as características da deusa como um ser pessoal, mas sim para evocar essa harmonia. Para eles, toda a natureza deve ter sido uma contínua fonte de recordação de que todos os aspectos de sua própria vida compartilhavam a sua presença e estavam plenos de sacralidade.
Na ausência da dinâmica emocional da apropriação, esses povos não podem ter vivido na competição, pois as posses não eram elementos centrais de sua existência. Ademais, uma vez que sob a evocação da deusa-mãe os seres humanos eram, como todas as criaturas, expressões de sua presença - e portanto iguais, nenhum melhor do que o outro apesar de suas diferenças -, não podem ter vivido em ações que excluíssem sistematicamente algumas pessoas do bem-estar vindo da harmonia do mundo natural.
Por tudo isso, penso que o desejo de dominação recíproca não foi parte da vida cotidiana desses povos matrísticos. Esse viver deve ter sido centrado na estética sensual das tarefas diárias como atividades sagradas, com muito tempo disponível para contemplar a vida e viver o seu mundo sem urgência.
O respeito mútuo, não a negação suspensa da tolerância ou da competição oculta, deve ter sido o seu modo cotidiano de coexistência, nas múltiplas tarefas envolvidas na vida da comunidade. A vida numa rede harmônica de relações, como a que evoca a noção da deusa, não implica operações de controle ou concessões de poder por meio da autonegação da obediência.
Por fim, já que a deusa constituía, como foi dito, uma abstração da harmonia sistêmica do viver, a vida não pode ter estado centrada na justificação racional das ações que implicam a apropriação da verdade. Tudo era visível ante o olhar inocente e espontâneo daqueles que viviam, como algo constante e natural, na contínua dinâmica de transformação dos ciclos de nascimento e morte. A vida é conservadora. As culturas são sistemas conservadores, porque são os meios nos quais se criam aqueles que as constituem com seu viver ao tornar-se membros delas, porque crescem participando das conversações que as produzem.
Assim, as crianças dessa cultura matrística devem ter crescido nela com a mesma facilidade com que nossas crianças crescem em nossa cultura. Para elas, ser matrísticos na estética da harmonia da natureza deve ter sido natural e espontâneo. Não há dúvida de que possivelmente ocorreram ocasiões de dor, enfado e agressão. Mas elas, como cultura - diferentemente de nós não viviam a agressão, a luta e a competição como aspectos definidores de sua maneira de viver. A seu ver, cair na armadilha da agressão provavelmente foi, para dizer o mínimo, algo de mau gosto. (Eisler, 1990).
Com base nessa maneira de viver, podemos inferir que a rede de conversações que definia a cultura matrística não pode ter consistido em conversações de guerra, luta, negação mútua na competição, exclusão e apropriação, autoridade e obediência, poder e controle, o bom e o mau, tolerância e intolerância - e a justificação racional da agressão e do abuso. Ao contrário, é crível que as conversações de tal rede fossem de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração.
Não há dúvida de que a presença dessas palavras, em nosso falar moderno, indica que as coordenações de ações e emoções que elas evocam ou conotam também nos pertencem nos dias de hoje, apesar de nossa vida agressiva. Contudo, em nossa cultura reservamos o seu uso para ocasiões especiais, porque elas não conotam, para a atualidade que vivemos, nosso modo geral de viver. Ou então as tratamos como se evocassem situações ideais e utópicas, mais adequadas para as crianças pequenas, do jardim de infância, do que para a vida séria dos adultos - a menos que as usemos nessa situação tão especial que é a democracia.
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CONVERSAÇÕES... 4- O EMOCIONAR

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À medida que nos desenvolvemos como membros de uma cultura, crescemos numa rede de conversações, participando com os outros membros dela em uma contínua transformação consensual, que nos submerge numa maneira de viver que nos faz e nos parece espontaneamente natural. Ali, à proporção que adquirimos nossa identidade individual e consciência individual e social (Verden-Zõller, 1978, 1979, 1982), seguimos como algo natural o emocionar de nossas mães e dos adultos com quem convivemos, aprendendo a viver o fluxo emocional de nossa cultura, que torna todas as nossas ações, ações próprias dela.
Em outras palavras, nossas mães nos ensinam sem saber que o fazem, e aprendemos com elas, na inocência de um coexistir não-refletido, o emocionar de sua cultura; e o faze- mos simplesmente convivendo. O resultado é que, uma vez que crescemos como membros de uma dada cultura, tudo nela nos resulta adequado e evidente. Sem que percebamos, o fluir de nosso emocionar (de nossos desejos, preferências, aversões, aspirações, intenções, escolhas...) guia nossas ações nas circunstâncias mutantes de nossa vida, de maneira que todas as ações pertencem a essa cultura.
Insisto que isso simplesmente nos acontece e, a cada instante de nossa existência como membros de uma cultura, fazemos o que fazemos confiando em sua legitimidade, a menos que reflitamos... que é precisamente o que estamos fazendo neste momento. Agindo assim, embora só de um modo superficial, olhemos - tanto no emocionar da cultura patriarcal européia como no da cultura matrística pré-patriarcal - para o fio básico das coordenações de ações e emoções que constituem as redes de conversação que as definem e estruturam como culturas diferentes.
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4.1 - O emocionar patriarcal
No entanto, ainda assim nossa cultura atual tem as suas próprias fontes de conflito, porque está fundamentada no fluir de um emocionar contraditório que nos leva ao sofrimento ou à reflexão. Com efeito, o crescimento da criança, em nossa cultura patriarcal européia, passa por duas fases opostas.
A primeira ocorre na infância de meninos e meninas, embora eles entrem no processo de tornar-se humanos e crescer, como membros da cultura de suas mães, num viver centrado na biologia do amor como o domínio das ações que tornam o outro um legítimo outro em coexistência conosco. Trata-se de um viver que os adultos, com base na cultura patriarcal em que estão imersos, veem como um paraíso, um mundo irreal de confiança, tempo infinito e despreocupação.
A segunda fase começa quando a criança principia a viver uma vida centrada na luta e na apropriação, num jogo contínuo de relações de autoridade e subordinação. A criança vive a primeira fase de sua vida como uma dança prazerosa, na estética da coexistência harmônica própria da coerência sistêmica de um mundo que se configura com base na cooperação e no entendimento.
A segunda fase de sua vida, em nossa cultura patriarcal européia, é vivida pela criança que nela entra - ou pelo adulto que ali já se encontra - como um contínuo esforço pela apropriação e controle da conduta dos outros, lutando sempre contra novos inimigos. Em especial, homens e mulheres entram na contínua negação recíproca de sua sensualidade e da sensualidade e ternura da convivência. Os emocionares que conduzem essas duas fases de nossa vida patriarcal européia são tão contraditórios que se obscurecem mutua- mente. O habitual é que o emocionar adulto predomine na vida adulta, até que a sempre presente legitimidade biológica do outro se torne patente.
Quando isso acontece, começamos a viver uma contradição emocional, que procuramos superar por meio do controle ou do autodomínio; ou transformando-a em literatura, escrevendo utopias; ou aceitando-a como uma oportunidade de refletir, que vivemos como um processo que nos leva a gerar um novo sistema de exigências dentro da mesma cultura patriarcal; ou a abandonar o mundo, refugiando-nos na desesperança; ou a de nos tornarmos neuróticos; ou viver uma vida matrística na biologia do amor.
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4.2 - O emocionar matrístico
Numa cultura matrística pré-patriarcal européia, a primeira infância não pode ter sido muito diferente da infância em nossa cultura atual. Com efeito, penso que ela - como funda- mento biológico do tornarmo-nos humanos ao crescer na linguagem - não pode ser muito diferente nas diversas culturas sem interferir no processo normal de socialização da criança.
A emoção que estrutura a coexistência social é o amor, ou seja, o domínio das ações que constituem o outro como um legítimo outro em coexistência. E nós, humanos, nos tornamos seres sociais desde nossa primeira infância, na intimidade da coexistência social com nossas mães. Assim, a criança que não vive sua primeira infância numa relação de total confiança e aceitação, num encontro corporal íntimo com sua mãe, não se desenvolve adequadamente como um ser social bem integrado (Verden-Zõller, 1978, 1979, 1982).
De fato, é a maneira em que se vive a infância - e a forma em que se passa da infância à vida adulta - na relação com a vida adulta de cada cultura, que faz a diferença nas infâncias das distintas culturas. Por tudo o que sabemos das culturas matrísticas em diferentes partes do mundo, podemos supor que as crianças da cultura pré-patriarcal matrística européia chegavam à vida adulta mergulhados no mesmo emocionar de sua infância. Isto é, na aceitação mútua e no compartilhamento, na cooperação, na participação, no autorrespeito e na dignidade, numa convivência social que surge e se constitui no viver em respeito por si mesmo e pelo outro.
No entanto, talvez se possa dizer algo mais. A vida adulta da cultura matrística pré-patriarcal européia não pode ter sido vivida como uma contínua luta pela dominação e pelo poder, porque a vida não era centrada no controle e na apropriação. Se olharmos para as figuras cerimoniais da deusa matrística em suas várias formas, poderemos vê-la como uma presença, uma corporificação, um lembrete e uma evocação do reconhecimento da harmonia dinâmica da existência.
Descrições dela em termos de poder, autoridade ou dominação não se aplicam, pois revelam uma visão patriarcal da deusa. Há figuras que a mostram, antes da cultura patriarcal, como uma mulher nua com traços de pássaros ou serpentes - ou simplesmente como um corpo feminino exuberante ou volumoso, com pescoço e cabeça com características fálicas, ou então sem rosto e com as mãos apenas sugeridas. Tais figuras revelam, segundo penso, a ligação e a harmonia da existência de um viver que não estava centrado na manipulação nem na reafirmação do ego.
Na cultura matrística pré-patriarcal européia, a vida humana só pode ter sido vivida como parte de uma rede de processos cuja harmonia não dependia exclusiva ou primariamente de nenhum processo particular. Assim, o pensamento humano talvez tenha sido naturalmente sistêmico, lidando com um mundo em que nada existia em si ou por si mesmo, no qual tudo era o que era em suas conexões com tudo mais. As crianças provavelmente cresceram e alcançaram a vida adulta com ou sem ritos de iniciação, chegando a um mundo mais complexo que o pertinente à sua infância, com novas atividades e responsabilidades, à medida que seu mundo se expandia. Mas sempre na participação feliz de um mundo que estava totalmente presente em qualquer aspecto de seu viver.
Além disso, os povos matrísticos europeus pré-patriarcais devem ter vivido uma vida de responsabilidade total, na consciência de pertença a um mundo natural. A responsabilidade ocorre quando se está consciente das consequências das próprias ações e quando se age aceitando-as. Isso inevitavelmente acontece quando uma pessoa se reconhece como parte intrínseca do mundo em que vive.
O pensamento patriarcal é essencialmente linear, ocorre num contexto de apropriação e controle, e flui orientado primariamente para a obtenção de algum resultado particular porque não observa as interações básicas da existência. Por isso, o pensamento patriarcal é sistematicamente irresponsável. O pensamento matrístico, ao contrário, ocorre num contexto de consciência da interligação de toda a existência. Por- tanto, não pode senão viver continuamente no entendimento implícito de que todas as ações humanas têm sempre consequências na totalidade da existência.
Por conseguinte, conforme a criança tornava-se adulta na cultura matrística pré-patriarcal europeia, ela deve ter vivido em contínua expansão da mesma maneira de viver: harmonia na convivência, participação e inclusão num mundo e numa vida que estavam de modo permanente sob seus cuidados e responsabilidade. Nada indica que a cultura matrística européia pré-patriarcal tenha vivido com uma contradição interna, como a que vivemos em nossa atual cultura patriarcal européia.
A deusa não constituía um poder, nem era um governante dos distintos aspectos da natureza, que devia ser obedecida na autonegação, como podemos nos inclinar a pensar, baseados na perspectiva de nosso modo patriarcal de viver, centrado na autoridade e na dominação. No povo matrístico pré-patriarcal europeu, ela era a corporifícação de uma evocação mística do reconhecimento da coerência sistêmica natural que existe entre todas as coisas, bem como de sua abundância harmônica. E os ritos realizados em relação a ela provavelmente foram vividos como lembretes místicos da contínua participação e responsabilidade humana na conservação dessa harmonia.
O sexo e o corpo eram aspectos naturais da vida, e não fontes de vergonha ou obscenidade. E a sexualidade deve ter sido vivida na interligação da existência. Não primariamente como uma fonte de procriação, mas sim como uma vertente de prazer, sensualidade e ternura, na estética da harmonia de um viver no qual a presença de tudo era legitimada por meio de sua participação na totalidade. As relações humanas não eram de controle ou dominação, e sim de congruência e cooperação, não para realizar um grande projeto cósmico, mas sim um viver interligado, no qual a estética e a sensualidade eram a sua expressão normal.
Para esse modo de vida, uma dor ocasional, um sofrimento circunstancial, uma morte inesperada, um desastre natural, eram rupturas da harmonia normal da existência. Eram também chamadas de atenção diante de uma distorção sistêmica, que surgia por causa de uma falta de visão humana que punha em perigo toda a existência.
Viver dessa maneira requer uma abertura emocional para a legitimidade da multidimensionalidade da existência que só pode ser proporcionada pela biologia do amor. A vida matrística européia pré-patriarcal estava centrada no amor, como a própria origem da humanidade, e nela a agressão e a competição eram fenômenos ocasionais, não modos cotidianos de vida.
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CONVERSAÇÕES... 5 - ORIGEM DO PATRIARCADO (1)

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A cultura matrística européia pré-patriarcal estava centrada no amor e na estética, na consciência da harmonia espontânea de todo o vivo e do não-vivo, em seu fluxo contínuo de ciclos entrelaçados de transformação de vida e morte. Mas se assim era, como pôde surgir a cultura patriarcal, centrada na apropriação, hierarquia, inimizade, guerra, luta, obediência, dominação e controle?
A arqueologia nos mostra que a cultura pré-patriarcal européia foi brutalmente destruída por povos pastores patriarcais, que hoje chamamos de indo-europeus e que vieram do Leste, há cerca de sete ou seis mil anos. De acordo com essas evidências, o patriarcado não se originou na Europa. Quando o patriarcado indo-europeu invadiu a Europa, trans- formou-se em patriarcado europeu por meio de seus encontros com as culturas matrísticas lá preexistentes. Em outras palavras, o patriarcado foi trazido à Europa por povos invasores, cujos ancestrais haviam-se tornado patriarcais no curso de sua própria história de mudanças culturais em alguma outra parte, de maneira independente das culturas matrísticas européias. Nesta seção, meu propósito é refletir sobre como ocorreram as mudanças culturais que deram origem ao Patriarcado em nossos ancestrais indo-europeus.
Como disse antes, penso que uma cultura é uma rede fechada de conversações, conservada como modo de viver num sistema de comunidades humanas. Para compreender como acontecem modificações culturais, é necessário olhar para as circunstâncias que podem ter originado uma mudança na rede de conversações que constitui a cultura em alteração. Foi também dito que, para que se produza uma transformação de cultura, deve mudar o emocionar fundamental que constitui os domínios de ações da rede de conversações que forma a cultura em transição. Foi dito, ainda, que sem modificação no emocionar não há mudança cultural.
Em outras palavras, acredito que para compreender como uma cultura específica pode ter se modificado, na história humana, devemos reconstruir o conjunto de circunstâncias sob as quais a nova configuração de emocionar que constitui os fundamentos da nova cultura pode ter começado a conservar-se de maneira transgeracional, como o fundamento de uma nova rede de conversações, numa comunidade humana específica que originalmente não a vivia. Tal comunidade pode ter sido tão pequena como uma família, e o novo emocionar não deve ter sido nada de especial como emocionar ocasional.
Com efeito, acho que na origem de uma nova cultura o novo emocionar surge como uma variação ocasional e trivial do emocionar cotidiano próprio da cultura antiga. Além do mais, creio que nesse processo a nova cultura surge quando a presença do novo emocionar contribui para a realização das condições que tornam possível a sua ocorrência no viver cotidiano. Como resultado disso, o novo emocionar começa a se conservar de maneira transgeracional como uma nova forma corrente de viver em comunidade, numa mudança que é aprendida de modo simples, pelos jovens e recém-chegados membros dessa comunidade.
Por fim - e em termos gerais -, uma linhagem, seja biológica ou cultural, se estabelece por meio da conservação transgeracional numa maneira de viver, à medida que esta é praticada de fato pelos jovens da comunidade.
Assim, qualquer variação ocasional da forma de vida corrente de uma comunidade específica, que começa a ser conservada geração após geração, constitui uma mudança que dá origem a uma nova linhagem. Se esta persistirá ou não, depende evidentemente de outras circunstâncias, ligadas às conseqüências da manutenção da nova maneira de viver. Toda- via, convém destacar - agora e em relação a isso - que o surgimento de uma nova linhagem só pode acontecer como uma variação da maneira de viver já estabelecida que, ao conservar-se de modo transgeracional, constitui e define a nova linhagem.
No caso particular das culturas como linhagens humanas de modos de convivência, só se produz uma modificação numa dada comunidade humana quando uma nova forma de viver como rede de conversações começa a se manter geração após geração. Isso acontece cada vez que uma configuração no emocionar - e portanto uma nova configuração no agir - principia a fazer parte da forma corrente de incorporação cultural das crianças de tal comunidade e estas aprendem a vivê-la.
Vejamos o que deve ter acontecido na transformação da maneira de viver que deu origem à cultura patriarcal indo-europeia, quando o emocionar fundamentou o que constituiu a forma típica de viver na apropriação, inimizade, hierarquias e controle, autoridade e obediência, vitória e derrota. Depois de surgir como um traço ocasional, no modo de vida de uma das comunidades ancestrais, esse emocionar começou a se manter, geração após geração, como um simples resultado da aprendizagem espontânea das crianças dessa comunidade. Imaginemos agora como isso pode de fato ter acontecido.
Entre os povos paleolíticos - fundamentalmente matrísticos - que viviam na Europa há mais de 20 mil anos, houve alguns que se tornaram sedentários, coletores e agricultores. Outros se movimentaram para o Leste até à Ásia, seguindo as migrações anuais de manadas de animais silvestres, como os lapões faziam com as renas até épocas recentes ou mesmo, talvez, ainda hoje. Essas comunidades humanas que seguiam os animais em suas migrações não eram pastoras, pois não eram proprietárias desses rebanhos. Não possuíam os animais dos quais viviam, porque não limitavam a mobilidade de tais rebanhos de modo a restringir significativamente o acesso a eles por outros animais - como os lobos -, que também se alimentavam de sua carne como parte da vida silvestre natural. Na ausência de tal restrição, os lobos permaneciam como comensais, com direitos inquestionados de alimentação, embora fossem ocasionalmente ameaçados para que fossem comer um pouco mais longe.
Em outras palavras, proponho que naqueles tempos remotos nossos ancestrais matrísticos, na origem do patriarcado, não eram pastores porque não restringiam o acesso de outros animais às manadas das quais eles próprios se alimentavam. Sugiro que não faziam isso porque o emocionar da apropriação não fazia parte de seu viver cotidiano. A criação de animais domésticos no lar implica uma maneira de viver completamente distinta do pastoreio, pois, entre outras coisas, é o cuidado e a atenção nas cercanias do lar - e não a apropriação - o emocionar que o define.
Portanto, sustento que a cultura do pastoreio, isto é, a rede de conversações que o constitui, surge quando os membros de uma comunidade humana, que vive seguindo alguma manada específica de animais migratórios, começa a restringir o acesso a eles de outros comensais naturais, como os lobos. E, além disso, que o fazem não apenas de modo ocasional, mas sim como prática cotidiana que se mantém de maneira transgeracional, por meio da aprendizagem corrente e espontânea das crianças que crescem nessa comunidade. Também afirmo que o pastoreio, como modo de vida, não pode ter surgido sem a mudança do emocionar que o tornou possível como maneira de viver, e que tal mudança no emocionar surgiu no próprio processo no qual se começou a vi- ver dessa forma.
Em geral, não vemos essa interdependência entre a mudança no emocionar e a modificação cultural, porque não estamos habitualmente conscientes de que toda cultura, como uma rede de conversações, é um modo específico de entrelaçamento do linguajear e do emocionar. Também não é fácil para nós, humanos patriarcais modernos, compreender a mudança no emocionar implicada na adoção de novas maneiras de viver: estamos acostumados a explicar o que fazemos ou o que nos acontece com argumentos racionais, que excluem a perspectiva do emocionar. Mas não é raro observar que uma pessoa pode viver uma grande transformação em seu emocionar, em relação a alterações de seu modo de vida.
Com efeito, essas transformações no emocionar acontecem com freqüência quando há mudanças no trabalho, na situação econômica ou no âmbito místico. Quando elas ocorrem, freqüentemente se pensa que são conseqüência de mudanças no trabalho ou nas condições de vida. Penso que não é assim. Acredito que é a transformação no emocionar que possibilita as circunstâncias de vida nas quais acontece a alteração de trabalho, situação econômica ou vida mística. E quando tal ocorre, os dois processos - as novas maneiras de viver e de emocionar - acontecem daí em diante de tal forma que se implicam e se apoiam mutuamente.
Desse modo, acho que se quisermos compreender como ocorreu uma mudança de cultura histórica, teremos de imaginar as condições de vida que tornaram possível a modificação no emocionar sob o qual se deu tal mudança, dando origem a uma rede de conversações que começou a se manter como resultado de sua própria realização.
Voltemos agora ao que creio ter acontecido na adoção do modo de vida pastoril por nossos ancestrais indo-europeus pré-patriarcais. O primeiro passo foi a operação inconsciente que constitui a apropriação, isto é, o estabelecimento de um limite operacional que negou aos lobos o acesso a seu alimento natural, que eram os animais da mesma manada da qual vivia a família que começou tal exclusão. A implementação do limite operacional cedo ou tarde levou à morte dos lobos. Matar um animal não era, seguramente, uma novidade para nossos ancestrais. O caçador tira a vida do animal que irá comer. Contudo, fazer isso e matar um animal restringindo-lhe o acesso a seu alimento natural - e agir assim de modo sistemático - são ações que surgem sob emoções diferentes. No primeiro caso, o caçador realiza um ato sagrado, próprio das coerências do viver no qual uma vida é tirada para que outra possa continuar. No segundo caso, aquele que mata o faz dirigindo-se diretamente à eliminação da vida do animal que mata. Essa matança não é um caso no qual uma vida é tirada para que outra possa prosseguir; aqui, uma vida é suprimida para conservar uma propriedade, que fica definida como tal nesse mesmo ato.
As emoções que tornam essas duas atitudes completamente diferentes são de todo opostas. Na primeira circunstância o animal caçado é um ser sagrado, que é morto como parte do equilíbrio da existência; aqui, o caçador que tira a vida do animal caçado fica agradecido. Na segunda alternativa, o animal cuja vida se tira é uma ameaça à ordem artificial, criada em seu ato pela pessoa que se transforma em pastor. Nessa situação, ela fica orgulhosa. Doravante, falarei em caçada apenas para referir-me ao primeiro caso. Na segunda hipótese, falarei em matar ou assassinar. Entretanto, note-se que tão logo as emoções que constituem essas duas ações se tornam aparentes, também fica claro que na ação de caça o animal caçado é um amigo, enquanto que na ação de matar o animal morto é um inimigo.
Com efeito, acho que com a origem do pastoreio surgiu o inimigo - aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio desse ato, que configura a defesa de algo que se transforma em propriedade nessa mesma atitude de defesa. Ou seja: mantenho que a vida pastoril de nossos ancestrais surgiu quando uma família que vivia seguindo os movimentos livres de alguma manada silvestre adotou o hábito de impedir a outros animais - que eram comensais naturais - seu livre acesso à dita manada. Em tal processo, esse hábito se transformou numa característica conservada de modo trans- geracional, como forma de vida cotidiana dessa família.
Além disso, sustento que a adoção desse hábito numa família deve ter comportado, como um traço desse mesmo processo, mudanças adicionais no emocionar. Estas a levaram a incluir, juntamente com o emocionar da apropriação, outras emoções, como a inimizade; a valorização da procriação, bem como a associação da sexualidade das mulheres a esta; o controle da sexualidade das mulheres como procriadoras pelo patriarca e o controle da sexualidade do homem pela mulher como propriedade; a valorização das hierarquias e a obediência como características intrínsecas da rede de conversações que constituiu o modo pastoral de vida.
Por fim, também sustento que, devido ao modo humano de generalizar o entendimento, a rede de conversações que constituiu a vida pastoril patriarcal se tornou a mesma rede que estruturou o patriarcado como uma maneira de viver independentemente do pastoreio, sob a forma de uma rede de conversações que suscitam:
a) relações de apropriação e exclusão, inimizade e guerra, hierarquia e subordinação, poder e obediência;
b) relações com o mundo natural, que se deslocaram da confiança ativa na harmonia espontânea de toda a existência para a desconfiança ativa nessa harmonia e para um desejo de dominação e controle;
c) relações com a vida que se deslocaram da confiança na fertilidade espontânea de um mundo sagrado, que existe na legitimidade da abundância harmônica e do equilíbrio natural de todos os modo de vida, para a busca ansiosa da segurança. Esta traz consigo a abundância unidirecional, obtida pela valorização da procriação, a apropriação e o crescimento ilimitado;
d) relações de existência mística, que se deslocaram da aceitação original da participação na unidade dos seres vivos, por meio de uma experiência de pertença a uma comunidade humana que se estende à totalidade vivente. Tal deslocamento leva ao desejo de abandonar a comunidade viva, mediante experiências de pertença a uma unidade cósmica, a qual configura um domínio de espiritualidade invisível que transcende os vivos.
Voltemos à minha proposição de como a cultura patriarcal indo-européia pode ter se originado, e de como nossa cultura patriarcal européia moderna pode ter dela derivado. Para tanto buscarei reconstruir a história, considerando as várias transformações que acredito que devem ter ocorrido ao longo desse processo.
Os membros de uma pequena comunidade humana (que pode ter sido uma família; entendo por família um grupo de adultos e crianças que funciona como uma unidade de convivência) que viviam seguindo alguma manada de animais migratórios, rechaçavam ocasionalmente os lobos que se alimentavam desta. Enquanto esse afugentamento dos lobos foi ocasionalmente bem sucedido - sem a morte deles -, não ocorreu nenhuma mudança fundamental no emocionar dos membros dessa comunidade.
Contudo, quando o rechaçar, o perseguir os lobos e o correr com eles - de modo a que não se alimentassem da manada - transformou-se numa prática cotidiana, aprendida pelas crianças geração após geração, produziu, entrelaçada com essa prática, uma mudança básica no emocionar dos membros de tal comunidade e surgiu um modo de viver na proteção da manada. Isto é: surgiu um modo de vida que incluía o emocionar da apropriação e defesa daquilo que havia sido apropriado. À medida que essa forma de emocionar começou a ser conservada, geração após geração, as crianças da comunidade aprenderam a viver em ações que negavam aos lobos o acesso normal à manada. E apareceram outras emoções, que também começaram a se transmitir de pais para filhos.
Assim, enquanto se começou a perseguir os lobos para impedir-lhes o acesso à alimentação normal, surgiu a insegurança. Esta veio da perda de confiança, trazida pela contínua atenção aos comportamentos de proteção das manadas diante dos lobos, já excluídos como comensais naturais. Além do mais, quando surgiu o emocionar da insegurança, a segurança começou a ser vivida como a total exclusão dos lobos por meio da morte. Entretanto, ao ocorrerem essas modificações no emocionar e no agir, deve ter aparecido outra mudança no emocionar. Ela constituiu uma alteração básica e nova na maneira de viver da comunidade, a saber, a inimizade como desejo recorrente de negar a um outro em particular.
Ao surgir a inimizade surgiu o inimigo; e assim os instrumentos de caça - até então usados para matar o lobo como um inimigo - se transformaram em armas.
(Notemos - quase como uma reflexão à parte - que nos mitos patriarcais o lobo é o grande inimigo. Fala-se do lobo como cruel e sanguinário, mas ele não o é. Em sua vida silvestre, esse animal não ataca o ser humano. O que ele procura são os animais que sempre lhe serviram de alimento, os quais são protegidos pelos humanos em seu pastoreio. É no aparecimento do patriarcado que o lobo surge como inimigo, num processo associado à perda de confiança no mundo natural que ele reforça.)
Mas o que implicam as mudanças do modo de vida recém-mencionado? Reflitamos um instante. Na condição de maneira de viver, uma cultura é uma rede de conversações mantida de maneira transgeracional, como um núcleo de coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações e emoções. Em torno dela, podem aparecer novas ações e emoções. Quando estas também começam a ser conservadas transgeracionalmente, na rede de conversações que define essa comunidade, ocorre uma mudança cultural. As ações e emoções humanas podem ser as mesmas em muitos domínios diferentes de existência (ou do fazer), e o que um aprende num domínio de existência (ou do fazer) pode ser facilmente transferido a outro.
Assim, uma vez que as conversações de inimizade e apropriação foram aprendidas na vida pastoril, elas puderam ser vividas em outros domínios de existência. E puderam ocorrer em relação a outras entidades como a terra, as idéias ou as crenças, quando surgiram as circunstâncias de vida apropriadas. Do mesmo modo, embora a apropriação e a inimizade possam ter começado como aspectos do emocionar do homem, se foi ele quem iniciou o pastoreio nos termos que assinalamos, nada restringe esse emocionar apenas aos humanos.
O patriarcado como modo de vida não é uma característica do ser do homem. É uma cultura, e portanto um modo de viver totalmente vivível por ambos os sexos. Homens e mulheres podem ser patriarcais, assim como ambos podem ser, e foram, matrísticos.
Continuemos agora com nossa reconstrução da origem do patriarcado indo-europeu e do patriarcado europeu moderno. Uma vez que a vida pastoril se manteve no cuidado dos animais apropriados e na defesa contra os lobos - que foram transformados em inimigos perdeu-se a confiança na coerência e no equilíbrio natural da existência. E então a segurança em relação à disponibilidade dos meios de vida começou a ser uma preocupação, amainada pelo crescimento da manada ou do rebanho sob o cuidado do pastor.
Nesse processo, devem ter-se produzido três modificações adicionais na dinâmica do emocionar de nossos ancestrais, que se transmitiram de pai para filho: o desejo constante por mais, numa interminável acumulação de coisas que proporcionavam segurança; a valorização da procriação como forma de obter segurança mediante o crescimento do rebanho ou manada; e o temor da morte como fonte de dor e perda total. Como resultado desse novo emocionar, a fertilidade deixou de ser vivida como coerência e harmonia da abundância natural de todas as formas de vida, na dinâmica cíclica e espontânea de nascimento e morte; e começou a ser vivida como procriação e crescimento que proporcionam segurança.
A vida no interior da família pastoril provavelmente mudou de um modo coerente com o vivido anteriormente. A participação do homem na procriação, que até aqui era vista como parte da harmonia da existência, deve ter começado a ser associada à apropriação dos filhos, da mulher e da família. Além disso, a sexualidade da mulher deve ter-se convertido em propriedade do homem que gerava os seus filhos. Como resultado, as crianças e as mulheres perderam sua liberdade ancestral para transformar-se em propriedade. E as mulheres das famílias pastoris, por meio da associação de sua sexualidade com a procriação, converteram-se, junto com as fêmeas da manada, numa fonte de riqueza.
Finalmente, nessa transformação cultural a apropriação pelo pastor da vida sexual da mulher se deu junto com a apropriação de seus filhos. Com a valorização da procriação, a família pastoril se transformou numa família patriarcal e o homem pastor converteu-se em patriarca. Mas essa transformação da maneira de viver - na qual uma família nômade, comensal de alguma manada migratória de animais silvestres passou a ser pastora - teve uma conseqüência fundamental: a explosão demográfica, animal e humana.
De fato, a valorização da procriação implica ações que abrem as portas ao crescimento exponencial da população. Isso se deve a que essa valorização se opõe a qualquer ação de regulação dos nascimentos e do crescimento da população, que permite a noção matrística de fertilidade como coerência sistêmica de todos os seres vivos em seus ciclos contínuos de vida ou morte.
Não devemos esquecer, porém, que essas mudanças culturais - como modificações na rede de conversações que constituíam a maneira de viver da família em mudança - surgem de alterações no emocionar e nas coordenações de ações. Estas devem ter acontecido inicialmente na harmonia da vida cotidiana. Ou seja, essas mudanças devem ter ocorrido pela transformação harmônica de uma forma conservadora de vi- ver - que envolvia de modo natural a todos os membros da família - em outra, que também os envolveu de maneira natural.
Assim, enquanto as mulheres e crianças, juntamente com os homens, tornavam-se patriarcais no processo de se tornarem pastores, a biologia do amor deve ter permanecido a base de seu estar juntos como família. Isso aconteceu ao longo de uma transformação na qual homens e mulheres não estavam em oposição constitutiva, e na qual as crianças cresciam na intimidade de relações materno-infantis de aceitação e confiança. Os homens não tinham dúvidas nem contradições básicas em suas relações com as mulheres e crianças que constituíam suas famílias, nem estas em suas relações com eles. As mudanças fundamentais que foram acontecendo, na trans- formação que originou a família patriarcal pastoril, devem ter ocorrido como um processo imperceptível para a própria família em transformação.
Em outras palavras, a mudança no emocionar dentro da família - no que diz respeito à mobilidade e à autonomia das mulheres e crianças que foi ocorrendo na estrutura patriarcal pastoril emergente, não foi visível no seio da família em transformação; nela, os homens, mulheres e crianças se tornaram patriarcais sem conflitos. Nesse processo a vida das crianças mudou, da infância à vida adulta, num movimento em que o emocionar da vida adulta surgiu como uma transformação do emocionar da infância, não como uma negação do infantil e do feminino pelo homem. Desse modo, tal modificação possivelmente foi vivida com inocência na família patriarcal.
Devemos notar também que essas mudanças no emocionar e no agir - mesmo quando deram origem, na família patriarcal, a uma forma de viver completamente diversa do modo de vida da família matrística original - ocorreram como processos sem reflexão, fora de qualquer intencionalidade, no simples fluir da vida cotidiana. Assim, o homem começou a intervir na proteção diária da manada, e aprendeu a fazê-lo matando eventualmente os lobos. As mulheres e crianças também aprenderam o mesmo, tomando parte no estabelecimento da nova forma de viver na inimizade com os lobos e na apropriação da manada.
Em tal processo, a apropriação e a inimizade, a defesa e a agressão se tornaram parte da forma de vida que se conservou transgeracionalmente no devir histórico de uma determinada comunidade. Enquanto isso ocorria, esse emocionar deve ter constituído uma operacionalidade delimitadora, que separou essa comunidade das outras. E o fez de maneira transitória ou permanente, a depender de se essas outras comunidades estavam ou não dispostas a adotar o novo emocionar e agir, e com eles o novo conversar.
Porém - como foi dito anteriormente a aprendizagem do emocionar é transferível. Uma vez que a inimizade e a apropriação foram aprendidas como modos de emocionar num dado domínio de experiências, elas puderam ser vividas em outros. Por isso, uma vez que a inimizade e a apropriação se tornaram características da forma de viver na proteção de um rebanho, também passaram a fazer parte da defesa de outras características e formas de vida, como idéias, verdades ou crenças.
Abriram-se então as portas para o fanatismo, a avidez e a guerra. Além do mais, as oportunidades para a inimizade e a defesa da propriedade devem ter surgido enquanto o cresci- mento da população e as migrações conseqüentes forçaram o encontro de comunidades diferentes. Muitas delas poderiam já ter desenvolvido alguns sistemas de crença próprios que, por já serem pastoras patriarcais, também estariam prontas para defender. Crenças místicas, por exemplo. 
Nós, humanos, podemos ter de maneira espontânea, num momento ou em outro de nossas vidas, uma experiência peculiar. E a vivemos como uma percepção súbita de nossa conexão e participação num domínio mais amplo de existência, para além do entorno imediato. Sustento que essa experiência peculiar de perceber que se pertence ou se é parte de um âmbito de identidade maior que o da estreita vida individual é o que em geral se conota, em diferentes culturas, quando se fala de uma experiência mística ou espiritual.
Também afirmo que a experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência - pode acontecer-nos de modo espontâneo. Nesse caso, certas condições internas e externas surgem naturalmente ao longo de nossas vidas. Podem também surgir como conseqüência da realização intencional de determinadas práticas, que resultam na criação artificial de tais condições. Em qualquer dos casos, todavia, a forma pela qual a experiência mística é vivida depende da cultura em que ela ocorre, ou seja, depende da rede de conversações em que ela está imersa, e na qual vive a pessoa que tem essa experiência.
Assim, acho que na cultura matrística agricultora e coletora da Europa pré-patriarcal, as experiências místicas foram vividas como uma integração sistêmica na rede do viver, dentro da comunidade de todos os seres vivos. "A comunidade e eu, o mundo do viver e eu, somos um só. Todos os seres vivos e não-vivos pertencemos ao mesmo reino de existências interconectadas... todos viemos da mesma mãe, e somos ela porque somos unos com ela e com os outros seres, na dinâmica cíclica do nascimento e da morte". Esta poderia ser a descrição de uma experiência mística da gente matrística, expressa com nossas palavras.
Compartilhar e participar na harmonia da coexistência, por meio da igualdade e da unidade de todos os seres vivos e não-vivos - sem importar quais possam ser suas diferenças individuais específicas na contínua renovação cíclica e re- corrente da vida: eis o que acho que devem ter sido os elementos relacionais predominantes da experiência mística matrística. Creio que a experiência mística dos povos europeus matrísticos pré-patriarcais teve essas características. E assim ocorreu porque as pessoas agricultoras e coletoras raramente devem ter experimentado a vida sem o total apoio e proteção das comunidades às quais pertenciam, ou mediante a ruptura de sua conexão com uma natureza harmoniosa e acolhedora.
Em outras palavras, acredito que a experiência mística da gente matrística européia pré-patriarcal foi de conexão com a concretude da vida diária. Também creio que esse modo proporcionou uma abertura para ver tudo o que era visível. Em suma, julgo que a "espiritualidade" matrística é inerentemente terrestre.
Na cultura patriarcal pastoril, as coisas devem ter sido diferentes. Sabemos que o emocionar fundamental que define a rede de conversações patriarcais pastoris está centrado na apropriação, defesa, inimizade, procriação, controle, autoridade e obediência. Por isso, é possível que a experiência mística de nossos ancestrais patriarcais indo-europeus mais antigos tenha sido muito diferente da que descrevemos para a cultura matrística européia pré-patriarcal. O pastor talvez tenha passado muitos dias e noites, durante o verão, afasta- do da companhia protetora de sua comunidade, enquanto cuidava, seguia ou guiava seus rebanhos em busca de boas pastagens nos vales montanhosos. Ao mesmo tempo ele os protegia dos lobos, que se haviam transformado em seus inimigos. Lá, solitário, exposto à amplitude imensa do céu estrelado e enfrentando a grandeza imponente das montanhas, ele deve ter presenciado, simultaneamente fascinado e aterrorizado, os muitos fenômenos elétricos luminosos e inesperados que ocorrem nessas paragens - e não só em dias de tempestade.
Creio que nessas circunstâncias a experiência mística e espontânea dos pastores foi vivida como pertença e conexão, num âmbito cósmico ameaçador e impressionante por seu poder e força. Tal ambiente, ao mesmo tempo cheio de inimizade e amizade, simultaneamente belo e perigoso, é um domínio cósmico no qual só se pode existir na submissão e obediência. "Pertenço ao cosmos apesar de minha infinita pequenez; submeto-me ao poder dessa totalidade obedecendo às suas exigências, tal como me submeto à autoridade do patriarca". Esta poderia ser a descrição de uma experiência mística, vivida por nosso pastor imaginário na solidão de uma noite aberta nas montanhas.
Penso que na cultura pré-patriarcal matrística da Europa o indivíduo que teve uma experiência mística manteve-se conectado, por meio dela, com o confortável reino diário e tangível do viver. Na cultura pastoril patriarcal, porém, o pastor que teve uma experiência mística, na solidão da montanha, vivenciou uma transformação que o ligou a um reino intocável de relações de imensidão, poder, temor e obediência.
Acredito ainda que, na cultura matrística da Europa pré- patriarcal, a pessoa que passou por uma experiência mística deve ter vivido a congruência na harmonia de uma dinâmica sempre renovada de nascimento e morte. Contudo, na cultura patriarcal pastoril, o pastor com o mesmo tipo de experiência certamente teve uma vivência de submissão e fascinação, diante do fluxo ameaçador de um poder que deu lugar à vida e à morte, na conservação e ruptura de uma ordem precária, baseada na obediência ao seu arbítrio.
A experiência mística da cultura patriarcal pastoril provavelmente foi de conexão com um reino abstrato de natureza completamente diverso daquele da vida diária. Isto é, essa experiência mística deve ter sido de pertença a um âmbito de existência transcendental, e assim se constituiu numa abertura para ver o invisível. Além disso, é provável que os relatos dos pastores, que voltaram transformados como resultado de suas experiências místicas espontâneas, foram ouvidos pelas comunidades tanto com admiração quanto com medo. Elas ouviram e entenderam esse discurso de autoridade e subordinação, poder e obediência, amizade e inimizade, exigência e controle em termos inteiramente pessoais, e podem ter sido seduzidas por sua grandeza. Com paixão suficiente após uma experiência mística, um pastor talvez tenha se tornado um líder espiritual.
Para resumir: na cultura matrística não-patriarcal da Europa antiga, a experiência mística foi vivida como uma pertença plena de prazer, numa rede mais ampla de existência cíclica que englobava tudo o que estava vivo e não-vivo no fluxo de nascimento e morte. Deve ter implicado o autorrespeito e a dignidade da confiança e aceitação mútuas. De modo contrário, na cultura patriarcal pastoril a experiência mística provavelmente foi vivida como pertença a um âmbito cósmico imenso, temível e sedutor, de uma autoridade arbitrária e invisível. O que deve ter implicado a exigência de uma absoluta negação de si mesmo, pela total submissão a esse poder, própria do fluxo unidirecional de inimizade e amizade de toda autoridade absoluta.
Em outros termos, o misticismo matrístico convida à participação e à colaboração no autorrespeito e no respeito pelo outro e, inevitavelmente, não é exigente, profético ou missionário. Já o misticismo patriarcal convida à autonegação da submissão e desse modo fatalmente se torna exigente, profético e missionário.
Quero agora fazer uma pequena digressão fisiológica. O sistema nervoso é constituído de uma rede neuronal fechada, com uma estrutura plástica que muda seguindo um curso contingente à sequencia das interações do organismo que ele integra (Maturana, 1983). Nessas circunstâncias, a forma como opera o sistema nervoso de um animal é, sempre e necessariamente, função de sua história específica de vida. Por causa disso um sistema nervoso implica, em seu funcionamento, a história individual do animal de que é parte. Em nós, humanos, essa relação entre a história de vida de um animal e a estrutura de seu sistema nervoso implica que, independentemente de se ele está acordado ou dormindo - e em todas as experiências que podemos viver -, nosso sistema nervoso funciona, sempre e necessariamente, de uma forma congruente com a cultura a que pertencemos: gera uma dinâmica comportamental que faz sentido nessa cultura.
Dito de outro modo: os valores, imagens, temores, aspirações, esperanças e desejos que uma pessoa vive em qual- quer experiência - esteja ela desperta ou sonhando, seja uma experiência comum ou mística - são necessariamente os valores, imagens, temores, aspirações, esperanças e desejos de sua cultura, somados às variações que essa pessoa possa ter acrescentado à sua vida pessoal, individual. É por causa dessa relação entre o funcionamento do sistema nervoso de uma pessoa e a cultura à qual ela pertence, que afirmo que os povos das culturas européias matrística e patriarcal pastoril devem ter tido experiências místicas diferentes. Além disso, tais experiências devem ter sido diversas porque cada uma delas incorpora necessariamente o emocionar da cultura na qual surge.
Proponho esta reconstituição da origem de nossa cultura patriarcal porque me dei conta de que todas as experiências humanas - inclusive as místicas - ocorrem como parte da rede de conversações que constituem a cultura em que surgem e, portanto, incorporam o seu emocionar. Ademais, dado que acho que é o emocionar de uma cultura que define o seu caráter, creio que minha reconstituição do que podem ter sido as experiências místicas de nossos ancestrais europeus matrísticos - e de nossos ancestrais patriarcais pastores indo- europeus - é tão boa quanto minha reconstrução do emocionar dessas culturas. Acredito que essa reconstrução é boa porque ela recolhe as emoções dos elementos matrísticos e patriarcais de nossa cultura européia patriarcal moderna.
Continuemos, então. Uma vez surgida a forma de viver patriarcal pastoril, a família ou comunidade na qual ela começa a ser mantida de modo transgeracional se expande, tanto por meio da sedução de outras famílias ou comunidades quanto mediante o crescimento populacional humano descontrolado. Além disso, tal crescimento, numa comunidade pastora, deve ter ocorrido acompanhado de uma ampliação comparável dos rebanhos. Essa circunstância inevitavelmente levou a um abuso das pastagens e a uma expansão territorial, o que não pode ter deixado de resultar em alguma forma de conflito com outras comunidades. Tais conflitos possivelmente ocorreram independente de que essas comunidades tenham ou não estado centradas na apropriação e na inimizade. A guerra, a pirataria, a dominação política e a escravidão devem ter começado nessa época e, eventualmente, produziram migrações maciças, em busca de novos recursos a serem apropriados.
Imagino que foi sob essas circunstâncias que nossos ancestrais indo-europeus chegaram à Europa, num movimento de conquista, pirataria e domínio. Se a apropriação é legítima, se a inimizade faz parte do emocionar da cultura, se a autoridade, a dominação e o controle são características da forma de viver de uma comunidade humana, então a pirataria é possível ou mesmo natural. Além do mais, se a apropriação é parte do modo natural de viver tudo está aberto a ela: os homens, as mulheres, os animais, as coisas, o países, as crenças... Se o emocionar adequado estiver presente, tudo pode ser capturado pela força, do mesmo modo que os lobos foram originalmente excluídos de seu legítimo acesso aos rebanhos silvestres nos quais se alimentavam.
Assim, à medida que os povos patriarcais indo-europeus começaram a se deslocar para a Europa, levaram consigo a guerra. Mas não só ela: levaram também um mundo completamente diverso daquele que encontraram. Esses povos foram donos de propriedades e delas defensores; foram hierárquicos; exigiram obediência e subordinação; valorizaram a procriação e controlaram a sexualidade das mulheres. Os povos matrísticos europeus não se assemelhavam a nada disso. Em seu encontro com a gente matrística européia, os indo-europeus patriarcais pastores depararam com seu completo oposto cultural em cada aspecto material ou espiritual.
Mais ainda: como povos patriarcais pastores, eles devem ter vivido essas diferenças opostas como uma ameaça ou perigo à sua própria existência e identidade. Do mesmo modo que vivenciaram sua relação com os lobos, na qual, por meio da apropriação do rebanho, provocaram o seu extermínio, sua reação deve ter sido a defesa de sua própria cultura pela negação da outra, tanto por seu completo controle e domínio quanto por sua total destruição.
Quando constituem idéias ou crenças, os títulos de propriedade e a defesa das "legítimas" possessões de um indivíduo criam limites. Estes separam o que é correto do que não o é, o que é legítimo do que é ilegítimo, o aceitável do inaceitável.
Se vivermos centrados na apropriação, viveremos tanto nossas propriedades quanto nossas idéias e crenças como se elas fossem nossa identidade.
Que isso acontece dessa maneira é evidente pelo fato de que nós, ocidentais patriarcais modernos, vivemos qualquer ameaça a nossas propriedades - e qualquer contradição ou falta de acordo com nossas idéias e crenças - como um perigo ou ameaça que põe em risco os próprios fundamentos de nossa existência. Como resultado, em seu encontro com a cultura européia matrística os indo-europeus patriarcais pastores viram no sistema de crenças completamente diverso dessa cultura um perigo e ameaça à sua identidade. Essa circunstância deve ter ocorrido especificamente em relação às crenças místicas que estão na base das experiências que dão significado à vida humana. Quando ocorreu o encontro dos povos patriarcais com os europeus matrísticos, os primeiros começaram a defender e impor suas crenças místicas patriarcais. Estabeleceu-se então uma fronteira de legitimidade entre ambos os sistemas de crenças místicas, e os dois se tornaram religiões.
Uma religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e plenamente verdadeiro. Antes de seu violento encontro com o patriarcado pela invasão dos indo-europeus patriarcais pastores, a gente matrística não vivia numa religião, pois não viviam na apropriação e defesa da propriedade.
Reflitamos um momento sobre esse assunto. Os povos matrísticos tiveram crenças místicas baseadas em experiências também místicas que, segundo acreditamos, manifestavam ou revelavam sua compreensão básica da relação que tinham com a totalidade da existência. Expressavam essa compreensão por meio de uma deidade - a deusa-mãe - que incorporava e evocava a coerência dinâmica e harmônica de toda a existência numa rede sem fim de ciclos de nascimento e morte.
De modo contrário - segundo pensamos - o povo patriarcal pastoril teve crenças místicas baseadas em experiências também místicas. Estas foram vividas como reveladoras de sua conexão com um âmbito cósmico dominado por entidades poderosas, arbitrárias, que exerciam sua vontade em atos criativos capazes de violar qualquer ordem previamente existente. Os povos patriarcais pastores expressavam sua compreensão das relações cósmicas por meio de deuses - entidades transcendentes que impunham temor e exigiam obediência. Em seu domínio místico, esses povos não tinham nada a defender e, conseqüentemente, nada a impor: cada crença era natural e auto-evidente. Como entidade cósmica todo-poderosa, Deus era óbvio em sua invisibilidade, e assim inerentemente espiritual.
Com efeito, tinha de ser desse modo, pela forma com que Ele devia ter surgido na montanha, enquanto expressava seu caráter onipotente de patriarca cósmico. As visões místicas matrísticas européias eram totalmente diversas, dado o seu caráter terrestre. Para os povos matrísticos, os fundamentos da existência estavam no equilíbrio dinâmico do nascimento e da morte, tanto quanto na coerência harmônica de todas coisas, vivas ou não. Não havia nada a temer quando alguém se movia na coerência da existência; para eles não havia forças arbitrárias que exigissem obediência, só rupturas humanas da harmonia natural, devidas a alguma falta circunstancial de consciência e à limitação por ela implicada.
A divindade não era uma força ou autoridade; e não poderia ter sido assim, pois esses povos não estavam centrados na autoridade, dominação ou controle. A deusa-mãe concretizava e evocava a consciência dessa harmonia natural. E, segundo penso, suas imagens e os rituais nos quais elas eram usadas significavam presença, evocação e participação na harmonia de todas as coisas existentes, de uma maneira que permitia que tanto os homens quanto as mulheres permanecessem conectados com ela em seu viver cotidiano. Os povos matrísticos europeus não tinham nada a defender, tanto porque viviam na consciência da harmonia da diversidade, quanto porque não viviam em apropriação.
Logo a seguir, quando os povos indo-europeus patriarcais pastoris invadiram a Europa, seus patriarcas perceberam que não podiam aceitar as crenças, o modo de vida espiritual ou as conversações místicas dos povos matrísticos, pois estes contradiziam completamente os fundamentos de sua própria existência. Assim, preferiram defender seu modo de vida e suas crenças da única maneira que conheciam, isto é, por meio da negação do outro modo de vida ou do sistema de crenças daqueles povos, transformando-os em seus inimigos.
Além do mais, no processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo-europeus criaram uma fronteira de negação de todas as conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a práxis de exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou das "crenças" verdadeiras. Contudo, antes de prosseguir reflitamos mais sobre o místico e o religioso.
Uma experiência mística - ou espiritual, como é geralmente chamada na atualidade como experiência de pertença ou conexão a um âmbito mais amplo do que o do entorno imediato de alguém, é pessoal, privada, inacessível a outros, ou seja, intransferível. Portanto, o ato de relatar uma experiência assim diante de uma audiência adequada pode ser algo cativante e sedutor, pois evoca um emocionar congruente em quem escuta, casos em que ocorre a sedução. Mesmo quando não há transferência da experiência, muitos dos ouvintes podem chegar a converter-se em adeptos da explicação do expositor.
Como resultado, pode se formar uma comunidade de crentes. Quando isso acontece, todavia, o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer que seja a sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião. Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças, baseadas em outros relatos de experiências místicas ou espirituais.
A apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma religião. Requer um emocionar e um modo de vida que não estavam presentes na cultura européia matrística. Nossa cultura patriarcal européia confunde religião com espiritualidade. Nela se fala, com freqüência, de experiências religiosas como se fossem místicas.
Acredito que essa confusão obscurece o fato de que uma religião não pode existir sem a apropriação de idéias e crenças, e não nos permite ver o emocionar que a constitui. Some-se a isso que o advento do pensamento religioso, por meio da defesa do que é "verdadeiro" e da negação do que é "falso", é um processo que nos tornou insensíveis para as bases emocionais de nossos atos. Em conseqüência, nos tornou inconscientes de nossa responsabilidade em relação a eles, e obstruiu nossas possibilidades de entender que a história humana segue o caminho do emocionar, e não um curso guiado por possibilidades materiais ou recursos naturais. Nossa visão torna-se obscurecida para o fato de que são nossos desejos e preferências que determinam aquilo que vivemos como verdades, necessidades, vantagens e fatos.
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CONVERSAÇÕES... 5- ORIGEM DO PATRIARCADO (2)

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Façamos agora um paralelo entre as conversações definidoras da cultura patriarcal pastoril e da cultura matrística européia:
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Conversações definidoras da cultura patriarcal pastoril
Conversações definidoras da cultura matrística europeia
De apropriação
De participação

Nas quais a fertilidade surge como uma noção que valoriza a procriação, num processo contínuo de crescimento.

Nas quais a fertilidade surge como a visão da abundância harmoniosa de todas as coisas vivas, numa rede coerente de processos cíclicos de nascimento e morte.

Nas quais a sexualidade das mulheres se associa à procriação e fica sob o controle do patriarca.

Nas quais a sexualidade das mulheres e dos homens surge como um ato associado à sensualidade e à ternura.

Nas quais se valoriza a procriação e se abomina qual- quer noção ou ação de controle da natalidade e regulação do crescimento populacional.

Nas quais se respeita a procriação e se aceitam ações de controle da natalidade e de regulação do crescimento populacional.

Nas quais a guerra e a com- petição surgem como modos naturais de convivência, e também como valores e virtudes.

Nas quais surgem a valorização da cooperação e do companheirismo como modos naturais de convivência.

Nas quais o místico é vivido em relação à subordinação a uma autoridade cósmica e transcendental, que requer obediência e submissão.

Nas quais o místico surge como participação consciente na realização e conservação da harmonia de toda a existência, no ciclo contínuo e coerente da vida e da morte.

Nas quais os deuses surgem como autoridades normativas arbitrárias, que exigem total submissão e obediência
Nas quais as deusas surgem como relações de evocação da geração e conservação da harmonia de toda a existência, na legitimidade do todo que há nela, e não como autoridades ou poderes.

Nas quais o pensamento é linear e vivido na exigência de submissão à autoridade na negação do diferente.

Nas quais o pensamento é sistêmico e é vivido no convite à reflexão diante do diferente.

Nas quais as relações inter-pessoais surgem baseadas principalmente na autoridade, obediência e controle.

Nas quais as relações inter- pessoais surgem baseadas principalmente no acordo, cooperação e co-inspiração
Nas quais o viver patriarcal de homens, mulheres e crianças surge, ao longo de toda a vida, como um processo natural.
Nas quais o viver matrístico de homens, mulheres e crianças surge, ao longo de toda a vida, como um processo natural.
Nas quais não aparece uma oposição intrínseca entre homens e mulheres, mas se subordina a mulher ao homem, pela apropriação da procriação como um valor.

Nas quais não aparece uma oposição entre homens e mulheres nem subordinação de uns aos outros.

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Sustento que nossa forma de vida patriarcal européia surgiu do encontro das culturas patriarcal pastoril e matrística pré-patriarcal européia como resultado de um processo de dominação patriarcal diretamente orientado para a completa destruição de todo o matrístico, mediante ações que só poderiam ter sido moderadas pela biologia do amor. Com efeito, se quisermos imaginar como isso pode ter ocorrido, tudo o que temos a fazer é ler a história da invasão da Palestina - fundamentalmente matrística - pelos hebreus patriarcais, tal como está relatada na Bíblia.
A cultura matrística não foi completamente extinta: sobreviveu aqui e ali em bolsões culturais. Em especial, permaneceu oculta nas relações entre as mulheres e submersa na intimidade das interações mãe-filho, até o momento em que a criança tem de entrar na vida adulta, na qual o patriarcado aparece em sua plenitude. Num empreendimento de pirataria e domínio, os homens invasores patriarcais pastores destruíram tudo e, depois de exterminar os homens matrísticos, apropriaram-se de suas mulheres. Acredito que estas não se submeteram voluntária e plenamente, o que deu origem a uma oposição na relação homem-mulher que não estivera presente em nenhuma das culturas originais.
Nesse processo, à medida que os homens patriarcais lutaram para submeter as mulheres matrísticas das quais se tinham apropriado, estas resistiram e se esforçaram para manter a identidade matrística. Só cederam para proteger suas vidas e as de seus filhos, mas sem nunca esquecer sua liberdade ancestral. As crianças nascidas sob esse conflito foram e são testemunhas participantes dele. E o viveram e vivem como uma luta permanente entre o homem e a mulher, que acabou por ser vivida como se fosse uma oposição intrínseca entre o masculino e o feminino, também no seio de sua identidade psíquica individual.
Em meio a essa luta, o homem patriarcal, como possui- dor da mãe, tornou-se para a criança o pai - uma autoridade que negava o amor ao mesmo tempo em que o exigia. Um ser próximo e distante, que era simultaneamente amigo e inimigo, numa dinâmica que igualava a masculinidade à força e à dominação, e a feminilidade à debilidade e ã emoção. Nessas circunstâncias, as mulheres descobriram que seu único refúgio, diante da impossibilidade de escapar ao controle e à dominação possessiva dos homens patriarcais, era conservar sua cultura matrística em relação à sua prole - particularmente, em relação às filhas, as quais não tinham um futuro de autonomia na vida adulta como os meninos.
Além do mais, os meninos da nova cultura patriarcal européia emergente viveram uma vida que implicava uma contradição fundamental, à medida que cresciam numa comunidade matrística por alguns anos, para depois entrar numa comunidade patriarcal na vida adulta.
Como foi dito anteriormente, essa contradição permanece também conosco, como uma fonte de sofrimento que não percebemos mas que pode ser reconhecida em mitos e contos de fada, e que às vezes é mal interpretada de um ponto de vista patriarcal, seja como uma luta constitutiva entre o filho e o pai pelo amor da mãe - como a noção freudiana do complexo de Édipo -, seja como expressão de uma desarmonia biológica, também constitutiva, entre o masculino e o feminino.
No primeiro caso, a legitimidade da raiva do menino diante de um pai (homem patriarcal) que abusa da mãe (mulher matrística) é obscurecida ao tratá-la como expressão de uma suposta relação de competição biológica entre pai e filho pelo amor da mãe. Na relação mãe-filho matrística não perturbada, a criança jamais tem dúvidas sobre o amor de sua mãe. Também não há competição entre pai e filho pelo amor da mãe deste, pois para ela essas relações ocorrem em domínios completamente diversos. E o homem sabe que essa relação vem com os filhos e que só durará enquanto durar seu amor por eles.
No caso puramente patriarcal pastoril, tampouco há conflito entre o menino e o patriarca, porque este sabe que é o pai dos meninos de sua mulher, e que esta não duvida da legitimidade de sua relação amorosa com ela e com seus filhos precisamente porque ele é o patriarca.
A situação do menino em nossa cultura patriarcal européia atual é completamente diversa, porque a luta constitutiva matrística patriarcal, na qual ele cresce, não é apenas um aspecto ancestral do mito da criação, mas sim um processo sempre presente. De fato, em nossa cultura patriarcal européia atual, um menino está sempre em risco de negação: tanto por parte do pai, em sua oposição à mãe, quanto por meio do descuido por parte desta, que vive sob uma permanente exigência. Tal exigência a leva a desviar sua atenção do menino, enquanto pretende recuperar sua plena identidade, chegando ela própria a se transformar em patriarca.
Repitamos isso em outras palavras. Na história de nossa cultura patriarcal européia, o processo de negação da cultura matrística pré-patriarcal européia original não se deteve na separação e oposição de uma infância matrística e uma vida adulta patriarcal. Ao contrário - e com diferentes velocidades e distintas formas em diversas partes do mundo -, o impulso para a total negação de tudo o que seja matrístico chegou até a infância. E o fez por meio de uma pressão que corrói continuamente os fundamentos matrísticos do desenvolvimento da criança como um ser humano que cresce no autorrespeito e na consciência social, por meio de uma relação mãe-filho fundamentada no livre brincar, em total confiança e aceitação mútuas.
É claro que esse curso não é conscientemente escolhido: ele é o resultado da expansão da vida adulta patriarcal ao âmbito da infância, enquanto se pede - ou se exige - à mãe e ao filho que atuem segundo os valores e desejos da vida adulta patriarcal. À medida que as exigências da vida adulta patriarcal são introduzidas na relação mãe-filho, a atenção tanto daquela quanto deste se desvia do presente de sua relação. E assim o menino acaba crescendo na desconfiança do amor de sua mãe, pois ela sem se dar conta cede a essas pressões, criando ao redor do filho um espaço de negação no qual seu desenvolvimento humano normal no autorrespeito e na consciência social é distorcido.
No segundo caso, a oposição e a desarmonia cultural que há, no patriarcado europeu, entre os homens patriarcais e as mulheres matrísticas, é vivida como a expressão de uma luta entre o bem e o mal. Na cultura matrística não há bem nem mal, pois nada é algo em si mesmo e cada coisa é o que é nas relações que a constituem. Numa cultura assim, as ações inadequadas revelam situações humanas de insensibilidade e falta de consciência das coerências normais da existência, que só podem ser corrigidas por meio de rituais que reconstituam tal consciência ou capacidade de perceber.
Na cultura patriarcal pastoril, por meio da emoção da inimizade, uma ação inadequada é vista como má ou perversa em si mesma, e seu autor deve ser castigado. No encontro da cultura patriarcal pastoril com a matrística, todo o matrístico se torna perverso, ou fonte de perversidade, e todo o patriarcal se torna bom e fonte de virtude. Assim, o feminino se tor- na equivalente ao cruel, decepcionante, não-confiável, caprichoso, pouco razoável, pouco inteligente, débil e superficial - enquanto o masculino passa a equivaler ao puro, honesto, confiável, direto, razoável, inteligente, forte e profundo.
Resumamos então esta apresentação em quatro afirmativas, que aludem ao que ocorre atualmente em nossa cultura européia patriarcal:
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♦ Nossa vida presente como povo patriarcal europeu, com todas as suas exigências de trabalho, êxito, produção e eficácia, interfere no estabelecimento de uma relação normal mãe-filho. Interfere, portanto, no desenvolvimento fisiológico e psíquico normal das crianças como seres humanos autoconscientes, com auto-respeito e respeito social (ver Verden-Zõller no próximo capítulo).
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♦ O desenvolvimento fisiológico e psíquico inadequado da criança que cresce em nossa cultura patriarcal se revela em suas dificuldades de estabelecer relações sociais permanentes (amor), ou na perda da confiança em si mesma, ou na perda do autorrespeito e do respeito pelo outro, bem como no desenvolvimento de diversas classes de dificuldades psicossomáticas em geral.
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♦ A interferência no livre brincar mãe-filho em total confiança e aceitação - que traz consigo a destruição da relação materno-infantil matrística - produz uma dificuldade fundamental na criança em crescimento e por fim no adulto, para viver a confiança e o conforto do respeito e aceitação mútuos, que constituem a vida social como um processo sustentado. Crianças e adultos permanecem na busca infinda de uma relação de aceitação mútua que não aprenderam a reconhecer, nem a viver nem a conservar quando ela lhes acontece. Como resultado disso, crianças e adultos continuam a fracassar sempre em suas relações, na dinâmica patriarcal das exigências e da busca do controle mútuo, que nega precisamente o mútuo respeito e a aceitação que eles desejam.
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♦ As relações de convivência masculino-feminina são vivi- das como se existisse uma oposição intrínseca entre homem e mulher que se torna evidente em seus diferentes valores, interesses e desejos. As mulheres são vistas como fontes de perversidade e os homens como fontes de virtude.
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O conflito básico de nossa cultura européia patriarcal não é a competição do menino com o pai pelo amor da mãe como nos leva a crer a noção do complexo de Édipo. Também não é a desarmonia intrínseca entre o feminino e o masculino suposta nessa noção, e também nas terapias que nos convidam a harmonizar nossos lados feminino e masculino. A raiva do menino contra o pai, conotada no complexo de Édipo, é reativa à sua observação das múltiplas agressões dele, pai, contra a sua mãe. O menino cresce com essa raiva, negando-a, pois é também ensinado a amar o pai como a fonte de tudo o que é bom, embora perceba, em seu cotidiano, que é tanto no domínio prático quanto no emocional da patriarcalidade paterna que está a origem da contínua negação dos fundamentos matrísticos de sua condição humana como ser social bem integrado.
Ao mesmo tempo, a oposição entre o homem e a mulher - que vivemos em nossa cultura patriarcal européia - resulta da oposição sem fim entre o patriarcal e o matrístico que a criança começa a viver em tenra idade, ao ouvir as mútuas queixas maternas e paternas próprias da oposição das conversações patriarcais e matrísticas, incluídas em nossa cultura patriarcal européia. O conflito básico de nossa cultura patriarcal européia está, ainda, na luta entre o matrístico e o patriarcal que a originou, e que ainda vivemos de modo extremo na transição da infância à vida adulta, como logo veremos.
As mulheres mantêm uma tradição matrística fundamental em suas inter-relações e no relacionamento com seus filhos. O respeito e aceitação mútuos no autorrespeito, a preocupação com o bem-estar do outro e o apoio recíproco, a co- laboração e o compartilhamento - eis as ações que orientam fundamentalmente seus relacionamentos. Ainda assim, as crianças, homens e mulheres devem tornar-se patriarcais na vida adulta, cada um segundo o seu gênero. Os meninos devem tornar-se competitivos e autoritários, as meninas serviçais e submissas. Os meninos vivem uma vida de contínuas exigências, que negam a aceitação e o respeito pelo outro, próprios de sua infância. As meninas vivem uma vida que as pressiona continuamente para que mergulhem na submissão, que nega o autorrespeito e a dignidade pessoal que adquiriram na infância.
A adolescência e seus conflitos correspondem a essa transição. Os conflitos da adolescência não são um aspecto próprio da psicologia do crescimento. Eles surgem na criança que enfrenta uma transição, na qual tem de adotar um modo de vida que nega tudo o que ela aprendeu a desejar na relação materno-infantil das relações matristicas da infância, que corresponde aos fundamentos de sua biologia.
Em outras palavras, a rebeldia da adolescência expressa o nojo, a frustração e o asco da criança que tem de aceitar e tornar seu um modo de vida que vê como mentiroso e hipócrita. Esse é o cenário em que vivemos nossa vida adulta na cultura patriarcal européia. É nele que estamos como homens e mulheres, como homens e homens, como mulheres e mulheres. É onde, na maior parte do tempo, vivemos nossa convivência como um contínuo confronto de dominação, qualquer que seja o âmbito de coexistência em que nos encontremos. Além disso, mergulhamos nessa luta ou confronto sem nos darmos conta, como um simples resultado da convivência com nossos pais patriarcais europeus, e não necessariamente em resposta ao seu desejo explícito de que assim seja.
Esse modo de viver resulta simplesmente de nossa parti- cipação inocente no fluxo das conversações de luta e guerra em que submergimos ao nascer: conversações de luta entre o bem e o mal, o homem e a mulher, razão e emoção, desejos contraditórios, matéria e espírito, valores, humanidade e natureza... entre ambição e responsabilidade, aparência e essência. Crescemos imersos nessas conversações contraditórias; vivemos desgarrados pelo desejo de conservar nossa infância matrística e satisfazer os deveres de nossa vida adulta patriarcal. E por isso precisamos de terapias, para recuperar nossa saúde psíquica e espiritual, mediante o resgate do respeito por nosso corpo e emoções na harmonização, como se diz, de nossos lados masculino e feminino.
Entretanto, esse conflito - que aprisiona nosso crescimento como crianças da cultura patriarcal europeia - é também nossa possibilidade de entrar na reflexão e sair da armadilha da luta contínua em que caímos com o patriarcado.
Não há dúvida de que o patriarcado mudou de modo diferente em distintas comunidades humanas, segundo as diversas particularidades da história destas. Assim, a posição da mulher, no lar ou fora dele, ou a escravidão como forma econômica de vida, ou a maneira de exercer o poder e o controle, modificaram-se de modos tão diferentes, nas várias comunidades, que podemos falar delas como subculturas patriarcais diversas. Continuamos a chamá-las de patriarcais, porque nelas se conservou a rede fundamental de conversações que as constitui dessa maneira.
Só o aparecimento da democracia foi de fato uma ameaça ao patriarcado, porque ela surge como uma expansão das conversações matristicas da infância de uma forma que nega as conversações patriarcais. Desse modo, o fato de que o patriarcado tenha seguido muitos caminhos distintos, em diferentes comunidades humanas, não nega a validade de meu argumento. O patriarcado ocorre no domínio das relações humanas como um modo de ser humano; não é uma forma de vida "econômica", é uma maneira de relação entre seres humanos, uma modalidade de existência psíquica humana.
Como dissemos na introdução a estes ensaios, o patriarcado surgiu como uma mudança na configuração dos desejos que definiam nosso modo de coexistência em meio a um viver matrístico. Só uma nova modificação na configuração de nossos desejos, em nossa coexistência, pode levar-nos a uma transformação que nos tire do patriarcado. E ela só nos poderá acontecer agora se assim o quisermos.
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CONVERSAÇÕES... 6 - A DEMOCRACIA

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As culturas são sistemas essencialmente conservadores. Alguém se torna membro de uma cultura seja ao nascer nela, seja ao incorporar-se a ela como jovem ou adulto, no processo de aprender a rede de conversações que a constitui, participando dessas mesmas conversações ao longo do viver como membro dessa cultura. As crianças ou os adultos recém-chegados que não entrem em tal processo não se tornam membros da cultura; são expelidos, excluídos ou aceitos como residentes estrangeiros. Uma cultura é, de modo inerente, um sistema homeostático para a rede de conversações que a define. E a mudança cultural em geral não é fácil - não o é, sobretudo, em nossa cultura patriarcal, que é constitutivamente um domínio de conversações que gera e justifica, explicitamente, ações destrutivas contra aqueles que direta ou indiretamente a negam com sua conduta. É em relação a essa dinâmica conservadora do patriarcado que a origem da democracia constitui um caso peculiar de mudança cultural, já que ela surge em meio a este como uma ruptura súbita das conversações de hierarquia, autoridade e dominação que o definem. Reflitamos sobre o que pode ter acontecido.
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6.1 - Origem
Falemos da origem da democracia, segundo minha proposição. A oposição entre uma infância matrística e uma vida adulta patriarcal - que está no fundamento de nossa vida patriarcal européia - se manifesta em nós, adultos, por uma nostalgia inconsciente da dignidade inocente e direta de nossa infância. Essa nostalgia constitui em nós uma disposição operacional sempre presente, que toma a forma de um desejo recorrente e inconsciente de viver na coexistência fácil que surge do respeito mútuo, sem a luta nem o esforço contínuos pela dominação do outro que são próprios da cultura patriarcal. Ela é um aspecto remanescente de nosso emocionar infantil matrístico.
Acredito que essa nostalgia pelo respeito recíproco constitui o fundamento emocional do qual surgiu a democracia na Grécia, como uma cunha que abriu uma fenda em nossa cultura patriarcal. Por meio dessa abertura pôde emergir nova- mente, em nossa vida adulta, o emocionar infantil matrístico que estava oculto. Ao mesmo tempo, também creio que é precisamente a natureza matrística do emocionar que dá origem à democracia, o que desencadeia a oposição que a ela faz o patriarcado. Minha proposição a respeito disso é a seguinte.
A democracia surgiu na praça do mercado das cidades- estado gregas, a Ágora, enquanto os cidadãos conversavam sobre os assuntos de sua comunidade e como resultado de suas conversações sobre tais assuntos. Os cidadãos gregos eram gente patriarcal, no momento em que a democracia começou a lhes acontecer de fato como um aspecto da práxis de sua vida cotidiana. Sem dúvida conheciam-se desde crianças e tratavam-se como iguais. Não há dúvida de que todos eles estavam pessoalmente preocupados com os assuntos da comunidade, sobre os quais falavam e discutiam. Desse modo, falar livremente sobre os assuntos comunitários na Ágora, como se estes fossem questões legitimamente acessíveis ao exame de todos, seguramente começou como um acontecimento espontâneo e fácil para os cidadãos gregos.
Contudo, conforme esses cidadãos principiaram a falar dos assuntos da comunidade como se estes fossem igualmente acessíveis a todos, tais assuntos se transformaram em entidades que podiam ser observadas, e sobre as quais era possível agir como se tivessem existência objetiva num domínio independente. Isto é: como se eles fossem "públicos" e por isso não apropriáveis pelo rei.
O encontrar-se na Ágora, ou na praça do mercado, tornando públicos os assuntos da comunidade ao conversar sobre eles, transformou-se numa forma cotidiana de viver em algumas das cidades-estado gregas. Nesse processo o emocionar dos cidadãos mudou, quando a nostalgia matrística fundamental pela dignidade do respeito mútuo, própria da infância, foi de fato satisfeita espontaneamente na operacionalidade dessas mesmas conversações. Além disso, à medida que esse hábito de tornar públicos os assuntos comunitários - de uma forma que os excluía constitutivamente da apropriação pelo rei - se estabeleceu por meio das conversações que os tornaram públicos, o ofício real acabou tornando-se irrelevante e indesejável.
Como conseqüência, em algumas cidades-estado gregas os cidadãos reconheceram essa maneira de viver por meio de um ato declaratório. Este aboliu a monarquia e a substituiu pela participação direta de todos os cidadãos num governo que manteve a natureza pública dos assuntos da comunidade implícita nessa mesma maneira cotidiana de viver. Isso se deu mediante uma declaração que, como processo, era parte dessa forma de vida. Em tal declaração, a democracia nasceu como uma rede combinada de conversações que:
a) efetivava o Estado como uma forma de coexistência comunitária, na qual nenhuma pessoa ou grupo podia apropriar-se dos assuntos da comunidade. Estes eram sempre mantidos visíveis e acessíveis à análise, exame, consideração, opinião e ação responsável de todos os cidadãos que constituíam a comunidade que era o Estado;
b) tornava a tarefa de decidir sobre os diferentes assuntos do Estado uma responsabilidade direta ou indireta de to- dos os cidadãos;
c) coordenava as ações que asseguravam que todas as tarefas administrativas do Estado fossem atribuídas de modo transitório, por meio de um processo eleitoral em que cada cidadão tinha de participar, num ato de responsabilidade fundamental. O fato de que numa cidade-estado como Atenas nem todos os habitantes eram originalmente cidadãos - só o eram os proprietários de terras - não altera a natureza fundamental do acordo de coexistência comunitária democrática, como ruptura básica das conversações autoritárias e hierárquicas de nossa cultura patriarcal européia. Talvez essa situação discriminatória entre os habitantes da cidade-estado tenha sido uma condição que possibilitou o aparecimento institucional da democracia. Esta surgiu, aparentemente, só como uma reordenação das relações de autoridade, que conservava as dimensões hierárquicas do patriarcado de um modo que ocultava tanto sua inspiração constitutivamente matrística quanto sua operacionalidade inerentemente antipatriarcal.
Com efeito, a democracia é uma ruptura na coerência das conversações patriarcais, embora não as negue de todo. Isso se torna evidente, por um lado, na longa luta histórica pela manutenção da instituição democrática - ou para estabelecê-la em novos lugares - contra o esforço recorrente pela reinstalação, em sua totalidade, das conversações que constituem o Estado autoritário patriarcal. De outra parte, essa evidência surge na longa luta pela ampliação do âmbito da cidadania e, portanto, pela participação no modo de vida democrático de todos os seres humanos que ficaram de fora dele em sua origem.
Ademais, o fato de que a democracia surja sob uma inspiração matrística - mesmo quando não recupera completa- mente o modo de vida matrístico - é evidente em sua operacionalidade de respeito mútuo. Este cria uma forma sistêmica de pensar mediante a aceitação dos outros, pois nega e se opõe à apropriação dos assuntos da comunidade por qualquer indivíduo isolado e por qualquer classe ou grupo de pessoas.
Ao surgir, a democracia não negou de todo o patriarcado. Apesar da contínua pressão patriarcal para negá-la e voltar à total patriarcalidade, o modo de pensar implícito na democracia se expandira a todos os domínios das relações humanas, às emoções, ações e reflexões. Criaram-se espaços nos quais o acordo, a cooperação, a reflexão e a compreensão substituíram a autoridade, o controle e a obediência como formas de coexistência humana. Isso ocorreu em todos os domínios da coexistência humana? Sim, dentro dos limites da contradição básica de nossa cultura patriarcal européia. Com efeito, em seu modo de constituição a democracia é uma forma de viver que considero neomatrística.
No entanto, como nem todas as formas de patriarcado têm um núcleo cultural matrístico na infância, nem todas elas incluem um fundo de conversações matristicas que permitam um emocionar adulto, no qual as conversações democráticas podem ser vividas como algo que faz sentido como um mo- do naturalmente legítimo de coexistência. Tal acontece, por exemplo, nas formas patriarcais mais puras, como aquelas dos povos que vivem sob as diferentes ramificações da religião muçulmana. As pessoas que cresceram originalmente no seio das conversações patriarcais muçulmanas devem primeiro modificar algumas dimensões de seu espaço convencional e orientá-las de modo matrístico, para que as conversações democráticas façam sentido para elas como geradoras de um espaço de coexistência legítimo e desejável.
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6.2 - Ciência e Filosofia
Quando os assuntos da comunidade passaram a ser públicos nas cidades-estado gregas, e quando falar deles se tornou parte do viver cotidiano, o emocionar que torna possível o pensamento objetivo - isto é, o modo de pensar que trata os objetos que surgem na experiência do observador como se eles fossem entidades e processos com existência independente de suas ações - transformou-se no ponto de partida para duas formas diferentes de pensar e lidar com o mundo da experiência: a ciência e a filosofia, especificamente. Essas duas maneiras de pensar e lidar com os fenômenos da experiência diferem segundo aquilo que alguém pretende fazer, em suas relações, ao falar delas.
Na cultura matrística - na qual a ordem das relações humanas não se fundamenta em relacionamentos de autoridade e obediência -, os objetos são o que são na relação em que surgem ao ser percebidos. Na cultura patriarcal - em que a ordem nas relações humanas se baseia na autoridade e na obediência -, os objetos são o que são segundo a autoridade de seu criador, ou seja, existem por si mesmos. Em nenhuma dessas duas culturas, todavia, as conversações objetivadoras são parte da maneira normal de viver. Com a objetivação dos assuntos da comunidade, que faz surgir a democracia na praça do mercado das cidade-estado gregas, a prática da objetivação chega a ser uma característica de muitas conversações diferentes, pelo menos entre os cidadãos. Ela abre a possibilidade de argumentar sobre outros aspectos da vida cotidiana em termos de objetos. Mas não é só isso que acontece.
As duas maneiras de relacionar-se na ação, próprias dos aspectos matrísticos e patriarcais de nossa cultura patriarcal européia, começam a participar de modo diferente na objetivação. Assim, na disposição matrística os objetos e processos existem na relação que os constitui na distinção - eles são o que são segundo o modo como são usados. Nessa disposição, os objetos não têm identidade própria a impor. Como eles surgem como distinções numa comunidade não centrada na autoridade, é o acordo - ou o consenso comunitário em relação a algum propósito comum, ou à alguma dimensão da convivência - que decide de fato o que será o processo ou o objeto distinguido, não estes em si mesmos.
Isto é, segundo o pensar matrístico - que se origina ao surgir a objetivação que leva à democracia -, as propriedades e características dos objetos e processos aparecem como relações constituintes que surgem em sua distinção. Nesse modo de pensar, é a participação no conviver que confere aos objetos e processos a sua existência. Isso leva a uma validação operacional, que possibilita que a reflexão e a explicação científica sejam vistas como formas sistêmicas de dar conta da vida cotidiana.
Por outro lado, segundo o aspecto patriarcal do modo objetivo de pensar que surge com a democracia, é a autoridade que manda e determina. Os objetos e processos distinguidos são o que são por si mesmos e constituem uma autoridade para tudo o que tenha a ver com eles, com base no funcionamento de suas propriedades e características intrínsecas.
Como resultado, segundo esse modo de pensar, o controle, o poder e a obediência devem prevalecer a qualquer custo. E assim surgem princípios explicativos transcendentais, que, como meios de dominação pela razão, dão origem ao modo filosófico linear de explicar, fundamentado em verdades inegáveis. Na disposição matrística - e, portanto, na democracia como um domínio neomatrístico - conserva-se o respeito mútuo; na disposição patriarcal - e, portanto, na conservação da hierarquia e da autoridade - mantêm-se o poder, a subordinação e a obediência.
Creio que os cidadãos gregos faziam entre si estas reflexões, quando a democracia começou a acontecer em seu cotidiano. Afirmo que seu emocionar se movia dessa maneira e que, como resultado dele, surgiram as duas maneiras de argumentar que hoje ainda verificamos entre os homens de ciência e filosofia. Além disso, também sustento que, como conseqüência do emocionar diferente que implicam essas duas formas de argumentar, resultou o estabelecimento dos dois domínios basicamente diversos que são a ciência e a filosofia como âmbitos explicativos. Ou seja: o domínio das ações da ciência como âmbito de explicações válidas pela coerência das experiências do cientista, e o domínio das ações da filosofia como âmbito de explicações validadas por sua coerência, com a conservação dos princípios básicos sustentados pelo filósofo.
Diante do exposto, é evidente que acredito que a prática do pensamento objetivo surgiu com a democracia, inicialmente imerso no caráter autoritário de nossa cultura patriarcal européia ainda presente. E tanto permaneceu assim, normativo, que ainda se mantém normativo na política, no seio da vida democrática e em muitos outros aspectos da vida fora dela. Constitui o modo de pensar ideológico e a forma filosófica de explicar. Como resultado, o que predomina desde o começo do pensamento europeu moderno, com a origem da democracia grega, é o uso normativo de teorias filosóficas que dão conta da experiência humana por meio de princípios explicativos. Estes são julgados como transcendentalmente válidos a priori, ou pelo uso da razão sob a forma de teorias filosóficas de caráter político, moral ou religioso, fundamentadas em verdades aceitas a priori como evidentes e inegáveis.
Desde então, são múltiplas as noções básicas e os princípios explicativos distintos que têm sido usados em muitas teorias filosóficas diferentes, como noções e princípios que são tratados como se revelassem características cognoscíveis, objetivas e inegáveis de uma realidade transcendente. É como se elas existissem independentemente do que faz o observador e fossem usadas como fundamento para tudo. A água, o fogo, o movimento, a matéria, a mente, a consciência... e muitas outras noções têm sido utilizadas dessa maneira, ao longo da história do patriarcado europeu.
O pensamento matrístico está na base da objetivação não normativa que constitui o fundamento do modo científico de explicar. Não se desenvolveu inicialmente nesta história, ou só o fez de maneira parcial, formando pequenas áreas isoladas de sistemas explicativos de validação operacional, que permaneceram subordinadas às normas de doutrinas filosóficas que pretenderam incluí-las e validá-las. Com efeito, embora a possibilidade da ciência como uma forma relacional de reflexão e explicação surja com a democracia, ela não se desenvolve propriamente até muito mais tarde, na história da cultura patriarcal européia. E quando a ciência de fato se desenvolve, ela o faz de uma maneira fundamental- mente contraditória com o pensamento patriarcal, que sempre pretende ou usá-la de maneira normativa ou subordiná-la à filosofia.
Em outras palavras, a ciência e a filosofia como modos diversos de lidar com o objeto surgem junto com a democracia, no processo que dá origem ao emocionar da objetivação. Contudo, como tanto a democracia quanto a ciência são rupturas matristicas da rede de conversações patriarcais, ambas enfrentam uma contínua oposição patriarcal. Esta as destrói totalmente, ou as distorce, submergindo-as numa classe de formalismo filosófico hierárquico.
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6.3 - A Democracia hoje
Vivemos hoje um momento da história da humanidade no qual, de uma maneira ou de outra, muitas nações declararam a democracia como sua forma preferida de governo. Contudo, a atual prática da democracia como uma coexistência neomatrística responsável, no respeito mútuo e no respeito à natureza que implica a sua realização, permanece em muitas das nações como um mero desejo literário, ou só é realizada de modo parcial. Isso se deve à sua negação direta ou indireta, por meio de uma longa história política de conversações recorrentes de apropriação, hierarquia, dominação, guerra e controle.
Vejamos algumas das formas mais freqüentemente adotadas por essas conversações recorrentes que negam a democracia.
a) Conversações que confundem a democracia como um modo eleitoral de conseguir o "poder político". O emocionar básico sob o qual ocorrem tais conversações é o desejo, aberto ou oculto, de dominação ou controle do comportamento dos outros, com o fim de satisfazer a uma vontade privada de autoridade e apropriação. Conversações dessa classe escondem o fato de que aquilo que numa cultura patriarcal se chama poder acontece na obediência do outro, mediante a submissão obtida pela coerção. Além disso, tal coerção ocorre disfarçada, sob argumentos que afirmam que o poder é uma propriedade ou dom daqueles que a exercem por meio das ações de seus adeptos, de tal forma que oculta a coerção por eles praticada. A democracia não opera como poder, autoridade ou exigências de obediência. Muito ao contrário, ela se realiza por meio de condutas que surgem de conversações de co-inspiração que geram cooperação, consenso e acordos.
b) Conversações que negam a alguns de seus membros o livre acesso à observação, exame, opinião ou ação em relação aos assuntos da comunidade. Fazem isso argumentando que tais membros excluídos são intrinsecamente incapazes de ter uma participação adequada em tais assuntos. A emoção fundamental implícita em conversações de exclusão diferencial desse tipo é a preferência patriarcal por relações de hierarquia e controle do funcionamento de uma comunidade humana. Tais preferências em geral se ocultam sob algum argumento de justiça ou direito, validado mediante referências a algum sistema de noções e princípios tratados como transcendental- mente válidos. Entretanto, devido à sua forma de constituição, não há nem pode haver nenhuma justificativa transcendental para a democracia. Ela é uma forma de viver em comunidade que surge - quando é de fato adotada - na forma de um acordo social aberto, que provém de uma nostalgia ou desejo profundo de recuperar a vida matrística como um viver no respeito mútuo e no autorrespeito.
c) Conversações que justificam a negação do acesso aos meios básicos de subsistência a alguns membros da comunidade, mediante argumentos que afirmam a legitimidade da competição num mundo aberto à livre empresa. Em nossa cultura patriarcal, o emocionar fundamental envolvido nessas conversações é o da inimizade que surge com o desejo de apropriação. A inimizade, a interferência ativa no acesso que outro ser vivo poderia normalmente ter a seus meios de subsistência, é uma característica de nossa cultura patriarcal. Que a justifica com argumentos que fazem da apropriação do mundo natural uma virtude ou, ainda, um direito transcendental. Num viver democrático, a cooperação, o compartilha- mento e a participação fazem parte do emocionar básico, e a ação a que conduz tal emocionar ante a escassez é a distribuição participativa, não a apropriação. Desse modo, qualquer argumento que justifique a apropriação é restritivo, ou interfere no acesso aos meios de vida de alguns dos membros de uma comunidade democrática, destruindo assim a democracia nessa comunidade. 
d) Conversações que validam a oposição entre os direitos do indivíduo e os da comunidade, sob o argumento de que aquele e esta se negam mutuamente por meio de um conflito de interesses. O emocionar fundamental implícito nessas conversações é a apropriação e a inimizade, sob a afirmação de que a individualidade humana se constitui numa dinâmica de oposições, em que cada indivíduo surge mediante um processo de diferenciação ativa do outro. Mas o indivíduo humano não provém de uma dinâmica de oposições e sim, ao contrário, no desenvolvimento do autorrespeito e da dignidade, que acontecem pela confiança e respeito mútuos. Isso se dá num âmbito próprio da vida matrística da infância, na qual ele se transformou tanto num ser individual quanto num ser social. Em conseqüência, a coexistência democrática não surge, na história européia, do desejo de satisfazer interesses comuns, mas da nostalgia da aceitação e do respeito mútuos. Com outras palavras, segundo o que sustento, o viver democrático não aparece como um mecanismo que permite resolver conflitos de interesse. Ele surge como intenção de realizar um modo neomatrístico de convivência, na constituição do Estado democrático como um projeto comum. A democracia não é uma solução. É um ato poético, que define um ponto de partida para uma vida adulta neomatrística, porque é a constituição - por declaração - de um Estado como sistema de convivência, um sistema social humano, um âmbito de respeito recíproco, cooperação e co-participação, coextensivo com uma comunidade humana regida ou realizada por tal declaração.
e) Conversações que afirmam a necessidade de ordem e estabilidade para assegurar a livre empresa e a livre competição, com o argumento de que estas é que levam ao progresso social, na suposição implícita de que, com a noção de progresso, se conota algo que é um valor em si. Em nossa cultura patriarcal, o emocionar fundamental em relação à noção de progresso é próprio dos desejos de apropriação ou autoridade, implícitos nas conversações de hierarquia, crescimento, controle e subordinação. Todavia, o controle dos outros, a obediência sob as relações hierárquicas que se mantêm pela coerção e o crescimento como uma acumulação de bem-estar pela apropriação dos meios de vida dos outros, são ações que mantêm a exclusão e geram miséria material, depredação ambiental e sofrimento. Isso acontece porque tais circunstâncias são dinâmicas de negação recorrente dos fundamentos matrísticos de nossa infância ocidental e, mais profundamente, de nossa constituição como seres humanos. São, pois, intrinsecamente negadoras do respeito mútuo e do autorrespeito constitutivos do viver democrático. Além do mais, essa maneira de viver, no contínuo jogo da competição e da demanda de estabilidade, faz da educação um instrumento de criação de meninos e meninas patriarcais. Eles viverão em contradição emocional, pois o farão tanto na contínua negação da democracia como modo de coexistência humana, quanto na permanente nostalgia da recuperação de seus fundamentos matrísticos.
f) Conversações de poder, controle e confrontação, na defesa da democracia ou para resolver as dificuldades que surgem ao vivermos nela, em vez de conversações de reflexão, acordo e responsabilidade em relação ao propósito comum que a fundamenta. O emocionar que faz surgir essas conversações implica a perda da confiança no outro, junto com o desejo de segurança e proteção garantidos por uma autoridade amiga e forte que o controle. Tal ocorre numa forma de coexistência na qual cada desacordo é vivido como uma ameaça, que tem de ser encarada por meio da guerra e da negação dos outros; ou na qual cada dificuldade é vivida como um problema que tem de ser resolvido pela luta, e na qual cada oportunidade para uma nova ação aparece como um desafio que tem de ser vivido como um confronto. Essa classe de conversações nega a democracia, de fato ou por inspiração, ao destruir o respeito mútuo fundamental que torna possível a co- inspiração para a convivência em respeito recíproco que a constitui.
g) Conversações que louvam as relações hierárquicas, de autoridade e obediência como virtudes que asseguram a ordem nas relações humanas. Conversações dessa espécie garantem uma divisão hierárquica das atividades humanas e sustentam os privilégios sem o uso da força. O emocionar que lhes dá origem é o desejo de manter e assegurar o controle dos privilégios apropriados. Tais conversações restringem o acesso que todos os membros de uma comunidade democrática deveriam ter aos assuntos comunitários, e o concedem como privilégio apenas a alguns. Elas destroem a democracia pela negação de seus fundamentos.
h) Conversações que apresentam todos os desacordos numa comunidade democrática como lutas pelo poder, argumentando que a democracia é uma oportunidade para que todas as forças sociais participem de tais lutas. Nessas conversações, o emocionar fundamental se dá por meio do desejo de controle e dominação, sob o qual vivemos o nosso ser adulto em nossa cultura patriarcal européia. Nesse emocionar, vivemos todos os desacordos como ameaças à nossa identidade. Não os respeitamos como expressão de uma diversidade legítima de co-inspiradores para uma vida na democracia. Conversações desse tipo obscurecem o propósito comum da vida democrática, e cedo ou tarde a negam em sua totalidade.
i) Conversações de competição e criatividade, que afirmam que o progresso é uma característica necessária da vida humana e também a escalada na dominação da natureza e o controle da vida. Em tais conversações, o emocionar fundamental é a cobiça, o desejo pela apropriação e controle. As conversações de competição e criatividade negam o outro, seja de modo direto, no ato de competir, ou indiretamente, quando afirmam que ele carece da criatividade básica, necessária numa sociedade que só sobrevive por meio de uma interminável busca de novidades. Tais conversações negam a democracia, ao negar o outro em sua total legitimidade, ao desvalorizar a harmonia do viver que surge na consensualidade e ao louvar as diferenças que se manifestam na luta contínua.
j) Conversações de urgência e impaciência, que exigem ação imediata e que, sob o argumento da desconfiança, tentam impor uma visão particular antes que esta seja submetida à reflexão pública. Tais conversações surgem do desejo de controle e certeza a qualquer custo, e são apresentadas sob os argumentos de direito e justiça. Destroem qualquer espaço para conversações de co-inspiração, limitando a possibilidade seja de qual for o acordo que possa levar à compreensão e à ação democrática. As conversações que implicam desconfiança dão-lhe origem e destroem a democracia ao tornar possíveis ações autoritárias.
A democracia é uma ruptura em nossa cultura patriarcal européia. Emerge de nossa nostalgia matrística da vida em respeito mútuo e dignidade, que são negadas pela vida centrada na apropriação, autoridade e controle. Desse modo, a democracia é uma obra de arte, um sistema artificial de convivência conscientemente gerado, que só pode existir por meio das ações propositivas que lhe dão origem como uma co-inspiração numa comunidade humana. Contudo, ao nos darmos conta da não-racionalidade constitutiva da democracia como produto de uma co-inspiração social matrística, procuramos dar-lhe uma justificação racional. E argumentamos empregando princípios transcendentais de justiça e direito, que julga- mos universalmente válidos precisamente por meio dessa mesma argumentação racional.
Além do mais, nossos argumentos racionais falharam, ao não convencer os que não aceitavam a priori os fundamentos matrísticos não-racionais de nossa argumentação e que, portanto, não precisavam deles. Por isso, temos feito somente a outra coisa que sabemos fazer em nossa cultura patriarcal. Isto é, temos recorrido ao uso da força, com base em teorias filosóficas que justificam seu uso para o bem comum. Mas a força também tem fracassado no propósito de criar uma convivência democrática. E sempre falhará, porque nega de modo constitutivo as conversações de confiança, respeito mútuo, autorrespeito e dignidade que devemos vi- ver se quisermos uma vida democrática. Mas isso não é tudo.
A democracia não é um produto da razão humana: é uma obra de arte, uma produção de nosso emocionar. É uma forma diferente de viver segundo o desejo neomatrístico de uma convivência humana dignificada na estética do respeito recíproco. O que dificulta o viver democrático, no meio de uma cultura patriarcal que a nega continuamente, é que as pessoas que querem viver a democracia são patriarcais por origem.
É precisamente por isso que elas não entendem que a democracia não tem justificativas transcendentais: ela é na verdade artificial, é um produto da co-inspiração. As pessoas acreditam que, uma vez estabilizada, a democracia pode ser defendida racionalmente por meio do uso de noções como direitos humanos - como se estes tivessem validade universal transcendente -, sem perceber que também eles são obras de arte arbitrárias. Como uma forma de coexistência matrística em meio a uma cultura patriarcal que a ela se opõe e constitutivamente a nega, a democracia não pode ser estabilizada nem defendida: só pode ser vivida. A defesa da democracia - com efeito, a defesa de qualquer sistema político - conduz necessariamente à tirania.
Portanto, tudo o que podemos fazer, se de fato quiser- mos viver em democracia, é viver de acordo com ela no processo de gerar acordos públicos para todas as ações que desejarmos que nela ocorram - e fazer isso enquanto vivermos segundo os acordos públicos que a originam e constituem. Viver em democracia é um ato de responsabilidade pública, que surge de um desejo de viver tanto na dignidade individual quanto na legitimidade social que ela implica como for- ma matrística de vida. E falhamos em nosso propósito, quando não realizamos essa maneira de viver enquanto afirmamos que queremos viver nela.
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ONVERSAÇÕES... 7 - REFLEXÕES ÉTICAS FINAIS

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Quero fazer algumas considerações adicionais, quase como um resumo de tudo o que foi dito neste longo ensaio.
Neste texto, afirmei que a vida humana é cultural, isto é, ocorre como uma rede de conversações no entrelaçamento do linguajear e do emocionar. Ou - o que é o mesmo - que a vida humana acontece como uma rede de coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações e emoções entre seres humanos que se tornaram humanos vivendo uma vida humana. Além disso, fiz a totalidade de minha argumentação neste ensaio considerando o emocionar que, a cada momento, torna possível a rede de conversações que define uma dada cultura como forma específica de coexistência numa comunidade humana.
No processo de apresentar meus argumentos, sustentei que a existência humana surgiu na linhagem particular de primatas bípedes a que pertencemos. Tal ocorreu quando o viver em conversações - como um entrelaçamento do linguajear com o emocionar - começou a ser mantido, geração após geração, como parte do modo de vida que definiu desde então essa linhagem. De fato, fez dela uma linhagem humana. Também afirmei que o viver em redes de conversações acabou sendo a característica mais central do modo de vida de nossos ancestrais, e indica que eles devem ter vivido uma história de coexistência fundada na biologia do amor. Entretanto, ao fazer essa afirmação também sustentei que o amor, como o domínio das ações que constituem o outro como legítimo outro em coexistência, é uma emoção básica que constitui a vida social em geral. É também a emoção essencial da história humana, tanto na origem da linguagem quanto na realização e conservação do modo humano de viver.
Por fim, também afirmei que devido à nossa origem evolutiva, nós, seres humanos, somos animais - animais de- pendentes do amor, que adoecem ao ser privados dele em qualquer idade. Como humanos, somos também seres culturais que podem viver em qualquer cultura que não negue totalmente, em seu desenvolvimento inicial, uma relação mãe- filho de íntimo contato corporal em total confiança.
A guerra, a agressão e a maldade como formas de viver na negação dos outros não são características de nossa biologia. Como animais, nós, seres humanos, sem dúvida somos biologicamente capazes de agressão, ódio, raiva - ou de qualquer emoção que a experiência nos mostra que podemos viver e que constitua um domínio de ações que leve à destruição ou à negação dos outros. Mas vivemos esses domínios de ações seja como episódios transitórios, seja como alienações culturais, que, como sabemos, distorcem nossa condição humana e nos levam à loucura ou à infelicidade. A agressão, a guerra e a maldade não são parte da maneira de viver que nos define como seres humanos e que nos deu origem como humanos.
Mas existimos em conversações e podemos cultivar conversações de agressão, guerra, ódio, controle, obediência, e assim gerar e viver culturas que alimentam esses domínios de ações, como fizeram nossos ancestrais indo-europeus ao produzir sua cultura patriarcal. E continuam a fazê-lo as culturas patriarcais dela descendentes, como a nossa cultura patriarcal européia.
Em outras palavras, acredito que o conflito entre o bem e o mal, que deu origem a tantos mitos na história de nossa cultura, não é próprio de nossa animalidade. E tampouco o é de nossa condição humana: corresponde a um aspecto da história da humanidade que surge com a cultura patriarcal indo-europeia e que, ao tornar-se uma maneira cotidiana de viver, cedo ou tarde nos distancia de nossa condição humana de seres filhos do amor.
Na condição de seres humanos ocidentais modernos, falamos em valorizar a paz e vivemos como se os conflitos que surgem na convivência pudessem ser resolvidos na luta pelo poder; falamos de cooperação e valorizamos a competição; falamos em valorizar a participação, mas vivemos na apropriação, que nega ao outros os meios naturais de subsistência; falamos da igualdade humana, mas sempre validamos a discriminação; falamos da justiça como um valor, mas vive- mos no abuso e na desonestidade; afirmamos valorizar a verdade, mas negamos que mentimos para conservar as vantagens que temos sobre os demais... Isto é: em nossa cultura patriarcal ocidental vivemos em conflitos, e freqüentemente dizemos que a fonte deles está no caráter conflituoso de nossa natureza humana.
Com freqüência, dizemos que tanto a luta entre o bem e o mal quanto o viver em agressão são características próprias da natureza biológica dos seres humanos. Discordo, não por pensar que o ser humano, em sua natureza, seja pura bondade ou pura maldade, mas porque considero que a questão do bem e do mal não é biológica e sim cultural. Esse conflito em que nós, seres humanos patriarcais modernos, vivemos, nos dobrará com sofrimentos e por fim nos destruirá, a menos que o resolvamos.
A meu ver, a maior parte da humanidade vive o presente de uma cultura que nos aliena para nossos fundamentos, alienando-nos na apropriação, no poder, nas hierarquias, na guerra. Isto é, vivemos na negação de nossa condição de filhos do amor que gera nossa cultura patriarcal européia. Além disso, creio que nosso conflito como seres humanos modernos da cultura patriarcal européia - à qual pertencemos - surge da contradição emocional em que nos mergulha a sucessiva incorporação aos modos de vida matrístico e patriarcal que vivemos ao crescer como membros dessa cultura.
Examinemos de novo a natureza do conflito fundamental em que vivemos imersos em nossa cultura patriarcal européia, ao vivermos a oposição desses dois modos de vida que negam um ao outro em todos os aspectos de seu emocionar. A primeira é a forma matrística de viver da nossa infância, na qual nos formamos como seres sociais absorvidos na dinâmica relacional da biologia do amor. Nela, homens e mulheres são de sexos diferentes, mas são iguais na co-participação equivalente na configuração do conviver. A outra é a maneira patriarcal adulta de viver. Esta nos submerge de modo recorrente na negação da biologia do amor, por meio de uma dinâmica de relações mútuas baseada na fascinação da manipulação da natureza e da vida. Associa-se a ela a idéia da superioridade intrínseca do homem sobre a mulher, numa oposição fundamental de feminino e masculino.
O modo matrístico de viver abre intrinsecamente um espaço de coexistência, com a aceitação tanto da legitimidade de todas as formas de vida quanto da possibilidade de acordo e consenso na geração de um projeto comum de convivência. O modo de vida patriarcal restringe intrinsecamente a coexistência mediante as noções de hierarquia, dominação, verdade e obediência, que exigem a autonegação e a negação do outro. A maneira matrística de viver nos descortina a possibilidade da compreensão da vida e da natureza porque nos leva ao pensamento sistêmico, permitindo-nos ver e viver a interação e a co-participação de todo vivente no viver de tudo o que é vivo. A forma patriarcal de vida restringe nossa compreensão da vida e da natureza, ao levar-nos à busca de uma manipulação unidirecional de tudo, pelo desejo de controlar o viver.
No entanto, nesse conflito também está a possibilidade de saída por meio da reflexão, num processo que pode levar- nos a uma compreensão que de outro modo não seriamos capazes de conseguir: o entendimento da origem de nossos desejos de democracia, bem como a compreensão da origem dos nossos desejos de eqüanimidade e justiça. Com efeito, o que sabemos de eqüanimidade e justiça para poder desejá-las? Diz-se que é próprio da natureza humana viver em conflito entre o amor e ódio, assim como na agressão e em guerra. E, quando se fala em natureza humana, fala-se em biologia humana. Também se diz com freqüência, em relação aos aspectos indesejáveis da conduta humana, que estes revelam nossa natureza animal.
Neste ensaio, afirmei que não é assim, e que não é nossa natureza animal - nem nossa natureza humana como animais na linguagem e no conversar - que nos conduzem a viver em agressão e competição. Isso se deve à nossa cultura patriarcal européia. Afirmo que é o patriarcal que gera a agressão e a competição como modos de vida. Foi o conflito entre as culturas matrística pré-patriarcal européia e patriarcal pastoril - na origem de nosso presente cultural patriarcal ocidental - que gerou o conflito entre o bem e o mal, o amor e o ódio, que, como foi dito há pouco, freqüentemente se afirma serem características da natureza humana.
De todo modo, afirmo que nós, membros da cultura patriarcal européia, sabemos ou conhecemos algo sobre participação, eqüanimidade e cooperação por meio de nossa infância matrística. E desejamos viver na democracia quando queremos recuperar a essência de tal infância. Sustento que nós, membros da cultura patriarcal européia, queremos a democracia quando desejamos recuperar a dignidade, o autorrespeito e o respeito pelos outros. Também afirmo que queremos recuperar tudo isso somente à proporção que já o vivemos em nossa infância.
Além do mais, sabemos que esses desejos não correspondem a uma nostalgia vazia ou a uma simples esperança, pois chegado o momento saberemos o que fazer na coexistência neomatrística da democracia. De fato, saberemos o que fazer porque vivemos, em nossa infância, imersos em conversações matristicas que têm a ver com nossa condição humana de seres amorosos, dependentes do amor para a sua saúde física e mental.
Assim, sabemos que devemos considerar a criação de nossos filhos oferecendo-lhes as relações matristicas de total confiança e aceitação, nas quais eles crescem com dignidade, isto é, com respeito por si mesmos e pelos outros. Também sabemos que nossos filhos devem viver assim até entrar plenamente em sua juventude, de modo que seu autorrespeito, consciência e responsabilidade social não venham a ser de todo negados pelas conversações patriarcais adultas (ver Verden-Zõller no próximo capítulo). Sabemos ainda que nós, adultos, também precisamos viver em autorrespeito e respeito pelos outros, se quisermos viver uma vida física e psiquicamente saudável. Por fim, sabemos que tudo o que temos a fazer para que o autorrespeito ocorra como um fenômeno natural da vida é agir com autorrespeito e respeito pelos outros: aceitando-os como legítimos outros em coexistência conosco na prática das conversações neomatrísticas da democracia, tanto no acordo quanto na discrepância.
O mundo está mudando e os direitos da mulher se tornaram aceitos. É verdade? Podemos dizer que as mulheres estão recuperando seus direitos como cidadãs totalmente democráticas por meio dos movimentos feministas. Contudo, o fato de que a mulher afirme - e de que os homens concordem com ela - que tem de lutar ou pelejar pelo que ela sustenta serem seus legítimos direitos de cidadã democrática reafirma a patriarcalidade. Esta é, precisamente, o domínio cultural em que a questão da dignidade e do respeito recíproco nas relações humanas são vividos na forma de direitos e deveres, que têm de ser assegurados por alguma forma de luta social, e não como algo natural e próprio da convivência social humana. É a dissolução da luta que deve acontecer como seu verdadeiro propósito, e tal dissolução só é possível na passagem de uma cultura patriarcal para uma cultura neomatrística.
Estejamos ou não conscientes disso, o curso da história da humanidade segue o caminho do emocionar, e não o da razão ou o das possibilidades materiais ou dos recursos naturais. Isso se dá porque são nossas emoções que constituem os distintos domínios de ações que vivemos nas diferentes conversações em que aparecem os recursos, as necessidades ou as possibilidades. Assim, a vida que vivemos, o que somos e o que chegaremos a ser - e também o mundo ou os mundos que construímos com o viver e o modo como os vivemos - são sempre o nosso fazer.
No fim das contas, ao percebermos que assim é, os mundos em que vivermos serão de nossa total responsabilidade. A compreensão como modo de olhar contextual, que acolhe todas as dimensões da rede de relações e interações na qual ocorre o que se compreende, abre-nos a possibilidade de perceber nossas emoções quando o que entendemos é a nossa própria vida. Portanto, abre-nos também a possibilidade de sermos responsáveis por nossas ações. Por fim, se ao perceber nossa responsabilidade nos dermos conta de nossa percepção e agirmos de acordo com ela, seremos livres e nossas ações surgirão na liberdade.
Quando somos responsáveis, agimos conscientes das conseqüências de nossas ações e segundo o nosso desejo delas. Um ato responsável implica, pois, a consciência de que toda conduta humana ocorre num âmbito de relações vitais muito mais amplo do que o da própria individualidade e é, portanto, uma experiência espiritual. Por isso, um ato responsável e livre, embora possa ter conseqüências dolorosas, não acarreta grande sofrimento individual. Nessas circunstâncias, nossa possibilidade de sair da contradição emocional básica em que estamos imersos em nossa cultura patriarcal ocidental - e assim escapar do sofrimento que essa contradição traz consigo - está em nossa possibilidade de perceber que sua origem é cultural e não biológica.
Afirmei muitas vezes que nós, humanos, somos seres emocionais como todos os mamíferos e que, por existirmos na linguagem e no conversar, usamos a razão para ocultar ou justificar nossos desejos. Tal afirmação não desvaloriza a razão. Tudo o que foi dito neste texto - ou, de um modo mais geral, tudo o que fazemos - surge em nosso ser racional, por- que o racional consiste em operar nas coerências do linguajear.
O problema com a racionalidade não está nela mesma, mas na apropriação da verdade nas situações de conflito que surgem quando, num espaço de convivência humana, se rompe a unidade cultural.
Dado que somos membros da mesma rede de conversações, da mesma cultura - e vivemos imersos na mesma rede de noções fundamentais que orientam nosso fazer e pensar como verdades evidentes -, nunca vivemos discrepâncias racionais; apenas desacordos emocionais ou meros erros lógicos. Todo sistema racional, seja ele científico, técnico, filosófico ou místico, fundamenta-se em premissas aceitas implícita ou explicitamente a priori, isto é, segundo as preferências implícitas ou explícitas daquele que o aceita.
Ao crescer como membro de uma cultura, cresce-se imerso de modo natural e como algo que se aceita como próprio e espontaneamente desejado. Isso ocorre numa rede de conversações que implicam um emocionar que especifica, operacionalmente, o conjunto de premissas que fundamenta as distintas argumentações racionais dessa cultura. Para os membros da comunidade que a vivem, uma cultura é um âmbito de verdades evidentes. Elas não requerem justificação e seu fundamento não se vê nem se investiga, a menos que no futuro dessa comunidade surja um conflito cultural que leve a tal reflexão. Esta última é a nossa situação atual. Como membros da cultura patriarcal européia, vivemos duas culturas opostas numa só.
Em nossa infância, vivemos imersos naquilo que é uma cultura principalmente matrística. Na vida adulta, vivemos quase que exclusivamente uma cultura patriarcal. No entanto, se nos dermos conta dessa oposição, teremos oportunidade de refletir e dar à racionalidade o seu verdadeiro lugar.
Partindo do pensamento científico - que surge como possibilidade da democracia como uma forma neomatrística de pensar-, é possível perceber que todo sistema racional tem um fundamento emocional. Mas também é possível perceber que, à medida que alguém se dá conta disso, ele pode se tornar responsável por sua racionalidade, e não amarrá-la à crença de ser dono de um acesso privilegiado a uma verdade transcendente. Desse modo, é possível, de fato, dar ao pensamento racional e ao saber humano responsabilidade e liberdade. Nós, humanos, somos muitos e contaminamos tudo com uma quantidade crescente de detritos. Isso resulta da superpopulação e esta, por sua vez, se origina do fato de que, em nossa cultura patriarcal ocidental, consideramos a procriação e o crescimento como valores em si, e não como meras preferências culturais.
Assim, geramos miséria ao nosso redor, movidos pelo desejo de um enriquecimento ilimitado pela apropriação de tudo a qualquer custo, sob o argumento de que a livre empresa é um direito. Destruímos e alteramos o mundo natural no qual somos seres vivos porque, induzidos por nosso orgulho de mestres do tecnológico, queremos controlá-lo e explorá-lo, argumentando que esse é o nosso direito, visto que somos os seres mais inteligentes da Terra. Vivemos em tensão e exigência porque, em nosso afã de ser melhores, competimos e usamos os outros - e não o nosso próprio fazer - como a medida do nosso valor, afirmando que a competição leva ao progresso e que este é um valor.
Habitualmente atuamos, de modo consciente ou inconsciente, segundo os nossos desejos. Mas, como nem sempre somos responsáveis por eles, geramos nos outros e em nós mesmos um sofrimento nem sempre desejado. Portanto, se quisermos atuar de modo diverso, se quisermos viver num mundo diferente, devemos mudar nossos desejos. Para isso precisamos modificar nossas conversações. Mas temos de fazê-lo totalmente conscientes do que queremos para corrigir nossas ações, se estas nos levam a uma direção não desejada. Como humanidade, nossas dificuldades atuais não se devem a que nossos conhecimentos sejam insuficientes ou a que não disponhamos das habilidades técnicas necessárias. Elas se originam de nossa perda de sensibilidade, dignidade individual e social, autorrespeito e respeito pelo outro. E, de um modo mais geral, originam-se da perda do respeito por nossa própria existência, na qual submergimos levados pelas conversações de apropriação, poder e controle da vida e da natureza, próprias de nossa cultura patriarcal.
Por fim, creio que as reflexões que apresentei neste ensaio mostram que a única saída para essa situação é a recuperação de nossa consciência de responsabilidade individual por nosso atos, ao percebermos de novo que o mundo em que vivemos é configurado por nosso fazer. Acredito que isso só é possível pela recuperação do modo de viver matrístico. É ele que de fato vivemos quando, honestamente, nas relações neomatrísticas de uma vida honesta, nas conversações que constituem a vida democrática, tornamo-nos responsáveis por nossa racionalidade e responsabilizamo-nos por nossos desejos.
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CONCEPÇÕES DE HUMBERTO MATURANA SOBRE CIÊNCIA E FILOSOFIA

http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/016e4.pdf