quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Onde está Organismo? DERIVAS E OUTRAS HISTÓRIAS NA BIOLOGIA E IMUNOLOGIA - Nelson Vaz

Onde está Organismo?
Nelson Vaz
Onde está Organismo?” é um pequeno livro da editora-UFSC, Florianópolis, que reune transcritos de palestras de um simpósio realizado na UFSC, em 2006. Editado por Gustavo Ramos (UFSC), tem como autores além de Gustavo Ramos: João Francisco Botelho (UFSC), Jorge Mpodozis (Universidad de Chile, Santiago) e Nelson Vaz (UFMG). 



Onde está Organismo?
DERIVAS E OUTRAS HISTÓRIAS NA BIOLOGIA E IMUNOLOGIA.

APRESENTAÇAO (NELSON VAZ)
PREFÁCIO. AS PERGUNTAS ANTES DAS RESPOSTAS. (GUSTAVO RAMOS)

1. ONDE ESTÁ O ORGANISMO?
1.a. “A EQUAÇÃO FUNDAMENTAL DA BIOLOGIA”. (JORGE MPODOZIS)
1.b. “ONTOGENIA”. (JORGE MPODOZIS)
1.c. “A DERIVA NATURAL DOS SISTEMAS DE DESENVOLVIMENTO” (JOÃO FRANCISCO BOTELHO)
1.d. “FILOGENIA”. (JORGE MPODOZIS)

2. UM SISTEMA IMUNOLÓGICO, AFINAL
2.a. “O NÓ GÓRDIO ENTRE BIOLOGIA E IMUNOLOGIA” (GUSTAVO CAMPOS RAMOS)
2.b. “Inflamação como um fenômeno do desenvolvimento animal” (GUSTAVO RAMOS)
2.c. “UMA BREVE HISTÓRIA DAS CERTEZAS IMUNOLÓGICAS” (NELSON VAZ)
2.d. “ A FISIOLOGIA CONSERVADORA DO SISTEMA IMUNOLÓGICO” (NELSON VAZ)
2.e. “IMUNOPATOGÊNESE POR DESCONEXÃO”. (NELSON VAZ, ICB/ UFMG)

POSFÁCIO - O MODO DE OUVIR. (JORGE MPODOZIS)




Derivas
O livro trata a Biologia e a Imunologia com base na Deriva Natural (Maturana and Mpodozis, 2000) um conceito que substitui à idéia de evolução biológica baseada na Seleção Natural (o neo-Darwinismo), uma das idéias mais poderosas dos tempos modernos.
Desde que publiquei o “Guia Incompleto de Imunobiologia” (Vaz e Faria, 1993), outro pequeno livro cuja edição se esgotou rapidamente, perguntam porque não fiz uma re-edição. Senti que não valeria fazer isto sem a companhia de outros textos que legitimassem outra revolução, mais ampla, na Biologia. Porqu, como afirma Gustavo Ramos neste segundolivro, há um nó Górdio entre a maneira de ver a Imunologia e o neodarwinismo. Desde os anos 1960,a Imunologia está baseada no conceito de seleção clonal, primo-irmão da seleção natural.

Seleção Natural, como outros processos considerados “seletivos”, na realidade é a conjugação de dois processos, ou um processo em duas fases. Na primeira fase, uma ampla gama de variantes deve ser gerada ao acaso; na segunda fase, estes variantes competem entre si para o desempenho de uma dada função e são “selecionados” os variantes “mais aptos”. A geração dos variantes deve ser aleatória para validar o processo de “seleção” como o real construtor do processo; se fatores não-aleatórios governarem o que se passa, seriam estes fatores e não a “seleção” o motor do que se passa. Segundo o neo-Darwinismo, entre as fontes aleatórias de variantes na origem das espécies de seres vivos estão a reprodução sexual, as mutações e recombinações do DNA.

Na deriva natural, a noção de acaso, necessária aos processos seletivos, é substituída pela noção de história, definida como uma sequência de mudanças estruturais. Maturana diz que:

“Os sistemas vivos são sistemas históricos, existem como entidades singulares em um fluxo contínuo de mudanças estruturais em torno da conservação de sua auto-construção/manutenção (sua autopoiese) e da conservação de sua congruência com as circunstâncias do meio em que vivem (sua adaptação). Não é a mudança que torna a evolução biológica um processo histórico: é a conservação (ontogenética e filogenética) da autopoiese e da adaptação, como aquilo em torno do qual, todo o resto pode variar. Nessas circunstâncias, o que é primariamente conservado na história dos sistemas vivos é o viver.”

A “orelha” do nosso novo livro cita Jorge Mpodozis, ao dizer:
“Há plasticidade nos modos de desenvolver. Os caminhos do desenvolvimento têm plasticidade em todos os momentos, e isso é o que permite essa maravilhosa diversidade de linhagens de seres vivos. Mas o problema não é o que é plástico, e sim o que se conserva. Se a mudança é uma condição constitutiva do viver, então, como se conserva aquilo que se conserva?”

Como se conserva aquilo que se conserva? Nesta outra maneira de ver, na qual a adaptação é invariante, as perguntas fundamentais estão dirigidas aos processos que determinam as direções que seguem a mudança e a conservação das características biológicas. Como é mantido aquilo que se conserva naquilo que muda; uma visão do viver como um processo epigenético, no qual o presente não contém o futuro e que se passa no presente não foi determinado no passado, mas sim, é decidido a cada instante.

Aquilo que a imunologia tradicional considera seu objeto de estudo - as reações defensivas, como a formação de anticorpos - não é aquilo que é primariamente conservado pelo organismo. Estas reações consideradas defensivas são parte da conservação da construção/manutenção do organismo (sua autopoiese) e da conservação de sua congruência com as circunstâncias do meio (sua adaptação). Nestes termos, um dos aspectos mais importantes da imunologia atual, por exemplo, é a caracterização da constância de padrões de reatividade nas imunoglobulinas naturais e em linfócitos T naturalmente ativados,problemas que raramente são percebidos como importantes (Nóbrega et al., 2002; Madi et al., 2011)


UM SISTEMA IMUNOLÓGICO, AFINAL
Em nosso novo livro, “Onde Está o Organismo?” descrevo a atividade imunológica como uma deriva natural. A imunologia nasceu junto com a bacteriologia médica, no trabalho de Pasteur, Koch e vários outros cientistas, na segunda metade do século XIX. Nasceu inspirada pelaTeoria dos Germes, na suposição de que o contágio com germes específicos é o que causa as doenças infecciosas e que a proteção contra as mesmas seria conseguida com vacinas
.

Nasceu também embebida na contradição gerada por nossa dupla natureza de organismo/pessoa, que confere atributos de pessoa (antropomorfiza) ao nosso corpo, como se uma intencionalidade defensiva pudesse fazer parte da ação de células e moléculas. Esta intencionalidade defensiva marcou a criação dos termos imunológicos, pois não há outra maneira de entender o sentido do termo “anticorpos”. Estes conceitos fundadores, antropomorfizantes, que contêm este duplo equívoco, continuam centrais e atuantes na imunologia do século XXI.

As doenças infecciosas não são explicáveis meramente pelo contágio. A grande maioria dos organismos infectados se comporta como “portadores sãos” de milhares de bactérias; grande parte do DNA de cada organismo está enxertado com DNA viral; um terço de todos os sers vivos existe como “parasita”. As doenças infecciosas são “acidentes de percurso” na convivência do organismo com uma imensa variedade de bactérias, vírus e parasitas multicelulares.

A “defesa” do corpo é um resultado de processos de construção/manutenção do organismo, não é um mecanismo defensivonão é uma parte especial que se destaca deste viver; surge assim apenas em nossas observações tradicionais. O viver de organismos metazoários, como o nosso, envolve o convívio em harmonia com bactérias, vírus e parasitas, além do contato diário com centenas de proteínas de alimentos e com materiais diversos derivados da flora intestinal, contra os quais não “nos defendemos” como proposto na imunologia tradicional e está implícito na noção de “vacinas”.

Um entendimento adequado da biologia de linfócitos e outras células envolvidas na atividade imunológica, precisa evitar estes dois equívocos. Precisa abandonar:
a) a idéia de uma defesa intencional: e
b) a confusão do que fazemos (como pessoas) com aquilo que nosso corpo faz (seu viver).

Esta mudança não é fácil. Abrir mão desta maneira de ver esbarra na necessidade de substituí-la por uma outra maneira de ver, que preencha o vácuo criado pelo abandono de crenças seculares. Isto não ocorrerá da noite para o dia. Há o medo de buscar um conhecimento alternativo que parece não existir. Há muito menos pesquisa sobre “portadores sãos” do que sobre as doenças infecciosas. Somos todos expostos a materiais (alergenos) capazes de gerar doenças alérgicas, mas apenas alguns de nós se tornam “alérgicos”. Todos nós possuímos também linfócitos T ativados que reagem com peptídeos autólogos, além de imunoglobulinas que se comportam como “auto-anticorpos”, mas apenas alguns de nós são acometidos por “doenças autoimunes”. A saúde imunológica é a regra, mas todos os esforços se concentram em explicar as doenças, as exceções a esta regra de que a saúde é mais comum.

Isto ocorre porque atentamos mais para as mudanças que para a constância. Os objetos e os fenômenos que encontramos em nosso viver diário são de uma constância ilusória que oculta o turbilhão de mudanças que os constitui. Nossa realidade é construída com objetos estáveis e eventos previsíveis, portanto, as mudanças são o que nos preocupa e aquilo que preenche o noticiário do dia-a-dia. Com a imunologia não poderia ser diferente: a imunologia está interessada em mudanças da produção de imunoglobulinas, isto é , na formação de anticorpos
. Nesta maneira de ver, a estabilidade (a constância) das imunogloblinas que compõem os processos do viver cotidiano, é de importância secundária, ou sequer chega a ser imaginada.

Paradoxalmente, ao falar de mudança, falamos sempre de algo que se conserva, algo que assumiu uma nova forma, uma nova dinâmica. Ao valorizar a mudança e a inovação, nossa cultura está menos atenta para aquilo que se conserva. Mas só podemos falar da variação de algo que, até então, permanecia. É impossível descrever a história de eventos ao acaso A história e o acaso são incompatíveis, porque o que se passa não se passa ao acaso, mas sim como uma deriva.

Porque mudar?
A imunologia está em crise. É possível que, até mesmo para a maioria dos imunologistas profissionais, não se aperceba disso. Mas há uma flagrante defasagem entre o imenso aumento no conhecimento sobre componentes e mecanismos celulares e moleculares na imunologia experimental, e a tradução deste conhecimento em resultados práticos (clínicos,laboratoriais), no diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças. No mínimo, poderia ser dito que esta tradução é demasiadamente lenta. Isto não significa que não ocorram exceções a esta regra e que, aqui e ali, sucessos notáveis sejam obtidos. Muitos afirmam que um grande progresso é iminente.

Mas a imunologia não sabe inventar novas vacinas anti-infecciosas. Bilhões de dólares e euros foram empregados sem sucesso na pesquisa de vacinas para o HIV, ou para a malária, ou mesmo para epidemias de influenza. Não existe tratamento eficaz para as doenças alérgicas, como a asma brônquica. Não existem sequer métodos efetivos de diagnóstico de doenças autoimunes. A miastenia gravis, por exemplo, é diagnosticada pela presença de anticorpos contra o receptor nicotínico da acetilcolina; mas quando estes anticorpos são induzidos em diversas linhagens de camundongos, por imunização com o receptor de acetilcolina, não há correlação entre a formação dos anticorpos e os sintomas de miastenia. O progresso na realização de transplantes de órgãos e tecidos foi devido ao desenvolvimento de agentes imuno-supressivos mais seguros e eficazes, não a uma compreensão do que se passa imunologicamente; no transplante de medula óssea, ainda não se sabe como prevenir a reações transplante-contra-hospedeiro, frequentemente fatais.

A descrição da atividade imunológica como uma deriva natural e a definição do sistema imune como uma rede fechada de interação entre linfócitos e de linfócitos com o organismo, que é o “meio” onde este sistema opera, não se resume a descrever sua fisiologia. Prevê também situações nas quais a atividade dfe linfócitos se torna patogênica. Em termos ultra-sumários, assim como o sistema imune é visto como umconjunto de relações entre linfócitos, a patogênese imunológica fosse um desconjuntamento, uma perda de conexões nesse conjunto, que permite que clones se expandam independentemente dos demais e resultem em populações linfocitárias com um grau sub-ótimo de diversidade clonal, isto é, expansões oligoclonais - uma imunopatogênse por desconexão, como descrevo em nosso livro.

A idéia de expansões oligoclonais como fonte de imunopatologia pode sugerir explicações que são como um denominador comum para doenças infecciosas, alérgicas e autoimunes. Além disso, permite entender um mecanismo de funcionamento das vacinas anti-infecciosas baseado na diversidade clonal, em vez de estar baseado na “memória”imunológica, como atualmente se entende, e assim sugerir abordagens alternativas à pesquisa sobre novas vacinas (Vaz et al., 2006; Vaz, 2009; Vaz e Carvalho, 2009; Pordeus et al, 2008; 2009)

Fonte: 
http://nelsonvazimunologia.blogspot.com.br/2013/06/onde-esta-organismo-nelson-vaz-onde.html

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Quando surgiu a ciência? - O que é a ciência? - [ Filosofia e ciências da natureza ]

Doncovim, Proncovô...
Ao longo da minha formação escolar e na graduação universitária, tive a impressão de que a ciência (como praticamente todo saber ocidental) tinha sua origem na civilização grega e tomava isso como um lugar comum.
Ultimamente entrei em contato com uma série de materiais sobre a cultura árabe e sua contribuição para a civilização ocidental, o que me induziu a procurar possíveis origens do pensamento científico além da Grécia. Durante algum tempo meus critérios de pesquisa me levaram sempre à mesma fronteira histórica: o surgimento da álgebra, e só. Parecia-me estranho que esta tivesse sido a única “produção original” de uma civilização que foi durante séculos um império de proporções continentais e tinha alta estima pelo desenvolvimento cultural.
Partindo das observações dos comentadores árabes sobre a filosofia aristotélica, me propus a seguir o caminho de volta ao oriente para tentar delinear os contornos da produção intelectual e técnica das civilizações árabes durante o período da idade média e sua posterior apropriação pela civilização ocidental.
Através deste olhar periscópico sobre o horizonte cultural árabe, quero entender o conhecimento ocidental a partir da sua síntese judaico-islâmico-cristã, para então entender a América através dos modelos de colonização e miscigenação étnica na sua miríade politico-sócio-cultural, para então entender o Brasil enquanto nação, para daí então, com alguma consciência, propor uma divulgação científica brasileira que dialogue efetivamente com o pensamento científico.
Assim como o pensamento da civilização islâmica foi essencial para a incorporação da filosofia grega na síntese de onde renasceu a cultura ocidental, acredito que uma vez conscientes da nossa dimensão cultural, o Brasil possa se colocar autonomamente na produção do pensamento pós-moderno. Acredito termos na nossa constituição cultural alguns elementos únicos que foram perdidos na nova síntese da cultura contemporânea globalizada.
Assim como Newton foi o último dos assírios e, por essa desterritorialização epistemológica, capaz de orquestrar uma redefinição estrutural na cosmologia da sua época; talvez nós, brasileiros, sejamos os últimos bárbaros do novo mundo que ainda resistimos à homogeneização do pensamento contemporâneo.

http://paracadebagda.blogspot.com.br/2014/06/abrindo-o-jogo.html

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Filosofia e ciências da natureza

Alguns elementos históricosAires Almeida



Este ensaio pretende oferecer ao aluno uma panorâmica geral e introdutória do modo como os filósofos têm encarado as ciências da natureza ao longo da história, e apresentar simultaneamente alguns elementos básicos da própria história do desenvolvimento científico. Nestas páginas encontram-se alguns elementos da história da ciência, mas, sobretudo, da história da filosofia da ciência, assim como elementos de história das ideias em geral e de história da filosofia em particular; isto é, trata-se em grande parte de uma panorâmica do modo como os filósofos têm encarado a ciência ao longo do tempo, e não tanto uma descrição, ainda que geral, do desenvolvimento da própria ciência. Os desenvolvimentos científicos surgem apenas como pano de fundo. Procurar ver como ao longo da história a pergunta filosófica “O que é a ciência da natureza?” seria respondida, pareceu-me uma boa maneira de orientar este texto. Estas páginas incluem, como ilustração das ideias aqui apresentadas, algumas passagens dos filósofos e cientistas referidos. Apesar de essas passagens serem escolhidas a pensar na facilidade de compreensão por parte dos alunos, todo o texto pode ser lido passando por cima delas sem que algo de essencial se perca.
Apesar de o termo "ciência" ser muito abrangente, neste texto iremos sobretudo centrar a nossa atenção nas ciências da natureza. Pelo facto de as ciências da natureza, e em particular a física e a astronomia, se terem desenvolvido mais cedo do que as ciências sociais, exerceram e continuam a exercer uma influência assinalável no modo como os filósofos encaram a ciência — acontecendo até muitas vezes que eles usam o termo "ciência" como abreviatura de "física". Ao longo do texto irei muitas vezes usar o termo “ciência” para falar das ciências da natureza; quando falar das ciências formais como a geometria ou a matemática em geral, será suficientemente claro que já não estou a falar de ciências da natureza.



1. Os gregos


Mitos e deuses

Quando surgiu a ciência? Esta parece ser uma pergunta simples. Contudo, tem frequentemente dado origem a longas discussões. Discussões que acabam quase sempre por se deslocar para uma outra pergunta mais básica: o que é a ciência? Mais básica, pois a resposta para aquela depende da solução encontrada para esta.
Ora, o termo "ciência" nem sempre foi entendido da mesma maneira e ainda hoje as opiniões acerca do que deve ou não ser considerado como científico continuam divididas. Uma definição rigorosa e consensual de ciência é, pois, algo difícil de estabelecer.
Mas isso não nos deve impedir de avançar. Assim, a melhor maneira de começar talvez seja a de correr o risco de propor uma definição de ciência que, apesar de imprecisa, nos possa servir como ponto de partida, mesmo que venha depois a ser corrigida: a ciência da natureza é o estudo sistemático e racional, baseado em métodos adequados de prova, da natureza e do seu funcionamento.
Muitas das perguntas mais elementares que os seres humanos colocam a si próprios desde que são seres humanos são perguntas que podem dar origem a estudos científicos. Eis alguns exemplos dessas perguntas: Porque é que chove? O que é o trovão? De onde vem o relâmpago? Por que razão crescem as ervas? Por que razão existem os montes? Por que razão tenho fome? Por que razão morrem os meus semelhantes? Porque é que cai a noite e a seguir vem o dia de novo? O que são as estrelas? Por que razão voam os pássaros?...
Mas estas perguntas podem dar origem também a outro tipo de respostas que não as científicas; podem dar origem a respostas de carácter religioso e mítico. Essas respostas têm a característica de não se basearem nos métodos mais adequados e de não serem o produto de estudos sistemáticos. Uma resposta mítica ou religiosa apela à vontade de um Deus ou de deuses e conta uma história da origem do universo. Essa resposta não se baseia em estudos sistemáticos da natureza, mas antes na observação diária não sistemática; e não são estudos racionais dado que não encorajam a crítica, mas antes a aceitação religiosa. Isto não quer dizer que as respostas míticas e religiosas não tivessem qualquer valor. Por exemplo, é óbvio que numa altura em que a ciência, com os seus métodos racionais de prova, ainda não estava desenvolvida, as explicações míticas e religiosas eram pelo menos uma maneira de responder à curiosidade natural dos seres humanos. Além disso, as explicações míticas e religiosas de um dado povo dão a esse povo uma importância central na ordem das coisas. E têm ainda outra característica importante: essas explicações constituem muitas vezes códigos de conduta moral, determinando de uma forma integrada com a origem mítica do universo, o que se deve e o que não se deve fazer.
As explicações míticas e religiosas foram antepassados da ciência moderna, não por darem importância central aos seres humanos na ordem das coisas nem por determinarem códigos de conduta baseados na ordem cósmica, mas por ao mesmo tempo oferecerem explicações de alguns fenómenos naturais — apesar de essas explicações não se basearem em métodos adequados de prova nem na observação sistemática da natureza.



Os primeiros filósofos-cientistas
[Os Pré-socráticos]

A ciência da natureza é diferente do mito e da religião. A ciência baseia-se em observações sistemáticas, é um estudo racional e usa métodos adequados de prova. Como é natural, os primeiros passos em direção à ciência não revelam ainda todas as características da ciência — revelam apenas algumas delas. O primeiro, e tímido, passo na direção da ciência só foi dado no início do séc. VI a. C. na cidade grega de Mileto, por aquele que é apontado como o primeiro filósofo, Tales de Mileto.
Tales de Mileto acreditava em deuses. Só que a resposta que ele dá à pergunta acerca da origem ou princípio de tudo o que vemos no mundo já não é mítica; já não se baseia em entidades sobrenaturais. Dizia Tales que o princípio de todas as coisas era algo que por todos podia ser diretamente observado na natureza: a água. Tendo observado que a água tudo fazia crescer e viver, enquanto que a sua falta levava os seres a secar e morrer; tendo, talvez, reparado que na natureza há mais água do que terra e que grande parte do próprio corpo humano era formado por água; verificando que esse elemento se podia encontrar em diferentes estados, o líquido, o sólido e o gasoso, foi assim levado a concluir que tudo surgiu a partir da água. A explicação de Tales ainda não é científica; mas também já não é inteiramente mítica. Têm características da ciência e características do mito. Não é baseada na observação sistemática do mundo, mas também não se baseia em entidades míticas. Não recorre a métodos adequados de prova, mas também não recorre à autoridade religiosa e mítica.
Este último aspecto é muito importante. Consta que Tales desafiava aqueles que conheciam as suas ideias a demonstrar que não tinha razão. Esta é uma característica da ciência — e da filosofia — que se opõe ao mito e à religião. A vontade de discutir racionalmente ideias, ao invés de nos limitarmos a aceitá-las, é um elemento sem o qual a ciência não se poderia ter desenvolvido. Uma das vantagens da discussão aberta de ideias é que os defeitos das nossas ideias são criticamente examinados e trazidos à luz do dia por outras pessoas. Foi talvez por isso que outros pensadores da mesma região surgiram apresentando diferentes teorias e, deste modo, se iniciou uma tradição que se foi gradualmente afastando das concepções míticas anteriores. Assim apareceram na Grécia, entre outros, Anaximandro (séc. VI a. C.), Heráclito (séc. VI/V a. C.), Pitágoras (séc. VI a. C.), Parménides (séc. VI/V a. C.) e Demócrito (séc. V/IV a. C.). Este último viria mesmo a defender que tudo quanto existia era composto de pequeníssimas partículas indivisíveis (atomoi), unidas entre si de diferentes formas, e que na realidade nada mais havia do que átomos e o vazio onde eles se deslocavam. Foi o primeiro grande filósofo naturalista, que achava que não havia deuses e que a natureza tinha as suas próprias leis.
As ciências da natureza estavam num estado primitivo; pouco mais eram do que especulações baseadas na observação avulsa. Mas as ciências matemáticas começaram também desde cedo a desenvolver-se, e apresentaram desde o início muitos mais resultados do que as ciências da natureza. Pitágoras, por exemplo, descobriu vários resultados matemáticos importantes, e o nome dele ainda está associado ao teorema de Pitágoras da geometria (apesar de não se saber se terá sido realmente ele a descobrir este teorema, se um discípulo da sua escola). A escola pitagórica era profundamente mística; atribuía aos números e às suas relações um significado mítico e religioso. Mas os seus estudos matemáticos eram de valor, o que mostra mais uma vez como a ciência e a religião estavam misturadas nos primeiros tempos. Afinal, a sede de conhecimento que leva os seres humanos a fazer ciências, religiões, artes e filosofia é a mesma.
O maior desenvolvimento das ciências matemáticas teve repercussões importantíssimas para o desenvolvimento da ciência, para a filosofia da ciência e para a filosofia em geral. Os resultados matemáticos tinham uma característica muito diferente das especulações sobre a origem do universo e de todas as coisas. Ao passo que havia várias ideias diferentes quanto à origem das coisas, os resultados matemáticos eram consensuais. Eram consensuais porque os métodos de prova usados eram poderosos; dada a demonstração matemática de um resultado, era praticamente impossível recusá-lo.
A matemática tornou-se assim um modelo da certeza. Mas este modelo não é apropriado para o estudo da natureza, pois a natureza depende crucialmente da observação. Além disso, não se pode aplicar a matemática à natureza se não tivermos à nossa disposição instrumentos precisos de quantificação, como o termómetro ou o cronómetro. Assim, o sentimento de alguns filósofos era (e por vezes ainda é) o de que só o domínio da matemática era verdadeiramente “científico” e que só a matemática podia oferecer realmente a certeza. Só Galileu e Newton, já no século XVII, viriam a mostrar que a matemática se pode aplicar à natureza e que as ciências da natureza têm de se basear noutro tipo de observação diferente da observação que até aí se fazia.
Platão e Aristóteles
Uma das preocupações de Platão (428-348 a.C.) foi distinguir a verdadeira ciência e o verdadeiro conhecimento da mera opinião ou crença. Um dos problemas que atormentaram os filósofos gregos em geral e Platão em particular, foi o problema do fluxo da natureza. Na natureza verificamos que muitas coisas estão em mudança constante: as estações sucedem-se, as sementes transformam-se em árvores, os planetas e estrelas percorrem o céu nocturno. Mas como poderemos nós ter a esperança de conseguir explicar os fenómenos naturais, se eles estão em permanente mudança? Para os gregos, isto representava um problema por alguns dos motivos que já vimos: não tinham instrumentos para medir de forma exacta, por exemplo, a velocidade; e assim a matemática, que constituía o modelo básico de pensamento científico, era inútil para estudar a natureza. A matemática parecia aplicar-se apenas a domínios estáticos e eternos. Como o mundo estava em constante mudança, parecia a alguns filósofos que o mundo não poderia jamais ser objecto de conhecimento científico.
Era essa a ideia de Platão. Este filósofo recusava a realidade do mundo dos sentidos; toda a mudança que observamos diariamente era apenas ilusão, reflexos pálidos de uma realidade supra-sensível que poderia ser verdadeiramente conhecida. E a geometria, o ramo da matemática mais desenvolvida do seu tempo, era a ciência fundamental para conhecer o domínio supra-sensível. Para Platão, só podíamos ter conhecimento do domínio supra-sensível, a que ele chamou o domínio das Ideias ou Formas; do mundo sensível não podíamos senão ter opiniões, também elas em constante fluxo. O domínio do sensível era, para Platão, uma forma de opinião inferior e instável que nunca nos levaria à verdade universal, eterna e imutável, já que se a mesma coisa fosse verdadeira num momento e falsa no momento seguinte, então não poderia ser conhecida.
Podemos ver a distinção entre os dois mundos, que levaria à distinção entre ciência e opinião, na seguinte passagem de um dos seus diálogos:
Há que admitir que existe uma primeira realidade: o que tem uma forma imutável, o que de nenhuma maneira nasce nem perece, o que jamais admite em si qualquer elemento vindo de outra parte, o que nunca se transforma noutra coisa, o que não é perceptível nem pela vista, nem por outro sentido, o que só o entendimento pode contemplar. Há uma segunda realidade que tem o mesmo nome: é semelhante à primeira, mas é acessível à experiência dos sentidos, é engendrada, está sempre em movimento, nasce num lugar determinado para em seguida desaparecer; é acessível à opinião unida à sensação.
Platão, Timeu
Conhecer as ideias seria o mesmo que conhecer a verdade última, já que elas seriam os modelos ou causas dos objectos sensíveis. Como tal, só se poderia falar de ciência acerca das ideias, sendo que estas não residiam nas coisas. Procurar a razão de ser das coisas obrigava a ir para além delas; obrigava a ascender a uma outra realidade distinta e superior. A ciência, para Platão não era, pois, uma ciência acerca dos objectos que nos rodeiam e que podemos observar com os nossos sentidos. Neste aspecto fundamental é que o principal discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.), viria a discordar do mestre.
Aristóteles não aceitou que a realidade captada pelos nossos sentidos fosse apenas um mar de aparências sobre as quais nenhum verdadeiro conhecimento se pudesse constituir. Bem pelo contrário, para ele não havia conhecimento sem a intervenção dos sentidos. A ciência, para ele, teria de ser o conhecimento dos objectos da natureza que nos rodeia.
É verdade que os sentidos só nos davam o particular e Aristóteles pensava que não há ciência senão do universal. Mas, para ele, e ao contrário do seu mestre, o universal inferia-se do particular. Aristóteles achava que, para se chegar ao conhecimento, nos devíamos virar para a única realidade existente, aquela que os sentidos nos apresentavam.
Sendo assim, o que tínhamos de fazer consistia em partir da observação dos casos particulares do mesmo tipo e, pondo de parte as características próprias de cada um (por um processo de abstracção), procurar o elemento que todos eles tinham em comum (o universal). Por exemplo, todas as árvores são diferentes umas das outras, mas, apesar das suas diferenças, todas parecem ter algo em comum. Só que não poderíamos saber o que elas têm em comum se não observássemos cada uma em particular, ou pelo menos um elevado número delas. Ao processo que permite chegar ao universal através do particular chama-se por vezes “indução”. A indução é, pois, o método correcto para chegar à ciência, tal como escreveu Aristóteles:
É evidente também que a perda de um sentido acarreta necessariamente o desaparecimento de uma ciência, que se torna impossível de adquirir. Só aprendemos, com efeito, por indução ou por demonstração. Ora a demonstração faz-se a partir de princípios universais, e a indução a partir de casos particulares. Mas é impossível adquirir o conhecimento dos universais a não ser pela indução, visto que até os chamados resultados da abstracção não se podem tornar acessíveis a não ser pela indução. (...) Mas induzir é impossível para quem não tem a sensação: porque é nos casos particulares que se aplica a sensação; e para estes não pode haver ciência, visto que não se pode tirá-la de universais sem indução nem obtê-la por indução sem a sensação.”
Aristóteles, Segundos Analíticos
Aristóteles representa um avanço importante para a história da ciência. Além de ter fundado várias disciplinas científicas (como a taxionomia biológica, a cosmologia, a meteorologia, a dinâmica e a hidrostática), Aristóteles deu um passo mais na direcção da ciência tal como hoje a conhecemos: pela primeira vez encarou a observação da natureza de um ponto de vista mais sistemático. Ao passo que para Platão a verdadeira ciência se fazia na contemplação dos universais, descurando a observação da natureza que é fundamental na ciência, Aristóteles dava grande importância à observação.
Aristóteles desenvolveu teorias engenhosas sobre muitas áreas da ciência e da filosofia. A própria filosofia da ciência foi pela primeira vez estudada com algum rigor por ele. Aristóteles achava que havia vários tipos de explicações, que correspondiam a vários tipos de causas. Um desses tipos de causas e de explicações era fundamental, segundo Aristóteles: a explicação teleológica ou finalista. Para Aristóteles, todas as coisas tendiam naturalmente para um fim (a palavra portuguesa “teleologia” deriva da palavra grega para fim: telos)e era esta concepção teleológica da realidade que explicava a natureza de todos os seres. Esta concepção da ciência como algo que teria de ser fundamentalmente teleológica iria perdurar durante muitos séculos, e constituir até um obstáculo importante ao desenvolvimento da ciência. Ainda hoje muitas pessoas pensam que a ciência contemporânea descreve o modo como os fenómenos da natureza ocorrem, mas que não explica o porquê desses fenómenos; isto é uma ideia errada, que resulta ainda da ideia aristotélica de que só as explicações finalistas são verdadeiras explicações.
Devido a um conjunto de factores, a Grécia não voltou a ter pensadores com a dimensão de Platão e Aristóteles. Mesmo assim apareceram ainda, no séc. III a. C., alguns contributos para a ciência, tais como os Elementos de Geometria de Euclidesas descobertas de Arquimedes na Física e, já no séc. II, Ptolomeu na astronomia.




2. A idade média


Crer para compreender
Entretanto, o mundo grego desmoronou-se e o seu lugar cultural viria, em grande parte, a ser ocupado pelo império romano. Entretanto, surge uma nova religião, baseada na religião judaica e inspirada pela mitologia de Jesus Cristo, que a pouco e pouco foi ganhando mais adeptos. O próprio imperador romano, Constantino, converteu-se ao cristianismo no início do século IV, acabando o cristianismo por se tornar a religião oficial do Império Romano. Inicialmente pregada por Cristo e seus apóstolos, a sua doutrina veio também a ser difundida e explicada por muitos outros seguidores, estando entre os primeiros S. Paulo e os padres da igreja dos quais se destacou S. Agostinho (354-430).
Tratava-se de uma doutrina que apresentava uma mensagem apoiada na ideia de que este mundo era criado por um Deus único, omnipotente, omnisciente, livre e infinitamente bom, tendo sido nós criados à sua imagem e semelhança. Sendo assim, tanto os seres humanos como a própria natureza eram o resultado e manifestação do poder, da sabedoria, da vontade e da bondade divinas. Como prova disso, Deus teria enviado o seu filho, o próprio Cristo, e deixado a sua palavra, as Sagradas Escrituras. Por sua vez, os seres humanos, como criaturas divinas, só poderiam encontrar o sentido da sua existência através da fé nas palavras de Cristo e das Escrituras. Uma das diferenças fundamentais do cristianismo em relação ao judaísmo consistia na crença de que Jesus era um deus incarnado, coisa que o judaísmo sempre recusou e continua a recusar.
A religião cristã acabou por ser a herdeira da civilização grega e romana. Aquando da derrocada do império romano, foram os cristãos — e os árabes —, espalhados por diversos mosteiros, que preservaram o conhecimento antigo. Dada a sua formação essencialmente religiosa, tinham tendência para encarar o conhecimento, sobretudo o conhecimento da natureza, de uma maneira religiosa. O nosso destino estava nas mãos de Deus e até a natureza nos mostrava os sinais da grandeza divina. Restava-nos conhecer a vontade de Deus. Só que, para isso, de nada serve a especulação filosófica se ela não for iluminada pela fé. E o conhecimento científico não pode negar os dogmas religiosos, e deve até fundamentá-los. A ciência e a filosofia ficam assim submetidas à religião; a investigação livre deixa de ser possível. Esta atitude de totalitarismo religioso irá acabar por ter consequências trágicas para Galileu e para Giordano Bruno (1548-1600), tendo este último sido condenado pela Igreja em função das suas doutrinas científicas e filosóficas: foi queimado vivo.
As teorias dos antigos filósofos gregos deixaram de suscitar o interesse de outrora. A sabedoria encontrava-se fundamentalmente na Bíblia, pois esta era a palavra divina e Deus era o criador de todas as coisas. Quem quisesse compreender a natureza, teria, então, que procurar tal conhecimento não directamente na própria natureza, mas nas Sagradas Escrituras. Elas é que continham o sentido da vontade divina e, portanto, o sentido de toda a natureza criada. Era isso que merecia verdadeiramente o nome de “ciência”.
Compreender a natureza consistia, no fundo, em interpretar a vontade de Deus patente na Bíblia e o problema fundamental da ciência consistia em enquadrar devidamente os fenómenos naturais com o que as Escrituras diziam. Assim se reduzia a ciência à teologia, tal como é ilustrado na seguinte passagem de S. Boaventura (1217-1274), tirada de um escrito cujo título é, a este respeito, elucidativo:
E assim fica manifesto como a "multiforme sabedoria de Deus", que aparece claramente na Sagrada Escritura, está oculta em todo o conhecimento e em toda a natureza. Fica, igualmente, manifesto como todas as ciências estão subordinadas à teologia, pelo que esta colhe os exemplos e utiliza a terminologia pertencente a todo o género de conhecimentos. Fica, além disso, manifesto como é grande a iluminação divina e de que modo no íntimo de tudo quanto se sente ou se conhece está latente o próprio Deus.
S. Boaventura, Redução das Ciências à Teologia
Investigações recentes revelaram que, apesar do que atrás se disse, houve mesmo assim algumas contribuições que iriam ter a sua importância no que posteriormente viria a pertencer ao domínio da ciência. Mas o mundo medieval é inequivocamente um mundo teocêntrico e a instituição que se encarregou de fazer perdurar durante séculos essa concepção foi a Igreja. A Igreja alargou a sua influência a todos os domínios da vida. Não foi apenas o domínio religioso, foi também o social, o económico, o artístico e cultural, e até o político. Com o poder adquirido, uma das principais preocupações da Igreja passou a ser o de conservar tal poder, decretando que as suas verdades não estavam sujeitas à crítica e quem se atrevesse sequer a discuti-las teria de se confrontar com os guardiães em terra da verdade divina.


Compreender para crer
Todavia, começou a surgir, por parte de certos pensadores, a necessidade de dar um fundamento teórico, ou racional, à fé cristã. Era preciso demonstrar as verdades da fé; demonstrar que a fé não contradiz a razão e vice-versa. Se antes se dizia que era preciso “crer para compreender”, deveria então juntar-se “compreender para crer”. A fé revela-nos a verdade, a razão demonstra-a. Assim, fé e razão conduzem uma à outra.
Foi esta a posição do mais destacado de todos os filósofos cristãos, S. Tomás de Aquino (1224-1274). S. Tomás veio dar ao cristianismo todo um suporte filosófico, socorrendo-se para tal dos conceitos da filosofia aristotélica que se vê, deste modo, cristianizada. Tanto os conceitos metafísicos de Aristóteles — nomeadamente que tudo quanto existe tem uma causa primeira e um fim último — como a sua cosmologia (geocentrismo reformulado por Ptolomeu: o universo é formado por esferas concêntricas, no meio do qual está a Terra imóvel) foram utilizados e adaptados à doutrina cristã da Igreja por S. Tomás. Aristóteles passou a ser estudado e comentado nas escolas (que pertenciam à Igreja, funcionando nos seus mosteiros) e tornou-se, a par das Escrituras, uma autoridade no que diz respeito ao conhecimento da natureza.


A alquimia
Além do que ficou dito, há um aspecto que não pode ser desprezado quando se fala da ciência na Idade Média e que é a alquimia. As práticas alquímicas, apesar do manto de segredo com que se cobriam, eram muito frequentes na Idade Média. O alquimista encarava a natureza como algo de misterioso e fantástico, o que não era estranho ao espírito medieval, em que tudo estava impregnado de simbolismo. Cabia-lhe decifrar e utilizar esses símbolos para descobrir as maravilhas da natureza. Desse modo ele poderia não só penetrar nos seus segredos como também manipulá-la e, por exemplo, transformar os metais vis em metais preciosos. Por tudo isso, os alquimistas foram vistos, por muitos, como verdadeiros agentes do demónio. O anonimato seria a melhor forma de prosseguir nas suas práticas, as quais eram consideradas como ilícitas em relação aos programas oficiais das escolas da época. Daí a existência das chamadas sociedades secretas, do ocultismo e do esoterismo, onde a própria situação de anonimato ia a par do mistério que cobre todas as coisas.
Há quem defenda que tudo isso, ao explorar certos aspectos da natureza proibidos pelas autoridades religiosas deu também o seu contributo à ciência, nomeadamente à química, que, na altura, ainda não tinha surgido. Mas esta tese tem poucos exemplos em que se apoiar e parece até que o verdadeiro espírito científico moderno teve de se debater com a resistência dos fantasmas irracionais associados à alquimia e outras práticas do género pouco dadas à compreensão racional dos fenómenos naturais. A alquimia continuou a praticar-se e chegou mesmo a despertar o interesse de algumas das mais importantes figuras da história da ciência, como foi o caso de Newton. O mais conhecido praticante da alquimia foi Paracelso (1493-1541), em pleno período renascentista.




3. A ciência moderna

Os precursores
Não é possível dizer exactamente quando terminou a Idade Média e começou o período que se lhe seguiu. Há, todavia, uma data que é frequentemente apontada como referência simbólica da passagem de uma época à outra. Essa data é 1453, data que marca a queda do Império Romano do Oriente.
O início do Renascimento trouxe consigo uma longa série de transformações que seria impossível referir aqui na sua totalidade. Algumas dessas transformações mostraram os seus primeiros indícios ainda no período medieval e tiveram muito que ver com, entre outros factos, o aparecimento de novas classes que já não estavam inseridas na rígida estrutura feudal, própria do mundo rural medieval. Essas classes são as dos mercadores e artífices, as quais dependem essencialmente do comércio marítimo. Fora da tradicional hierarquia feudal, muitas pessoas prosperam nas cidades. Cidades que se desenvolvem e onde começa a surgir também uma indústria, sobretudo ligada à manufactura de produtos — com a valorização dos artesãos — e à construção naval. Isso trouxe consigo um inevitável progresso técnico que viria a colocar novos problemas no domínio da ciência. Para tal contribuíram, além do comércio naval atrás referido, também os descobrimentos marítimos. Descobrimentos em que Portugal ocupa um lugar de relevo. O mundo fechado do tempo das catedrais começa, assim, a abrir-se, com as velhas certezas a ruir e os horizontes de um “novo universo” a alargar-se.
O homem renascentista começou a virar-se mais para si do que para os dogmas bíblicos e a interessar-se cada vez mais pelas ideias, durante tantos séculos esquecidas, dos grandes filósofos gregos, de modo a fazer renascer os ideais da cultura clássica — daí o nome de Renascimento. Esta é uma nova atitude a que se chamou “humanismo”. O protótipo do homem renascentista é Leonardo da Vinci, pintor, escultor, arquitecto, engenheiro, escritor, etc., a quem tudo interessa. Muitas verdades intocáveis são revistas e caem do seu pedestal. O que leva, inclusivamente, à contestação da autoridade religiosa do Papa, como acontece com Lutero (1483-1546), dando origem ao protestantismo e à reforma da Igreja.
As mudanças acima apontadas irão estar na base de um acontecimento de importância capital na história da ciência: a criação, por Galileu (1564-1642), da ciência moderna. Com a criação da ciência moderna foi toda uma concepção da natureza que se alterou, de tal modo que se pode dizer que Galileu rompeu radicalmente com a tradicional concepção do mundo incontestada durante tantos séculos.
É claro que Galileu não esteve sozinho e podemos apontar pelo menos dois nomes que em muito ajudaram a romper com essa tradição e contribuíram de forma evidente para a criação da ciência moderna: Copérnico (1473-1543) e Francis Bacon (1561-1626).
Por um lado, Copérnico com a publicação do seu livro A Revolução das Órbitas Celestesveio defender uma teoria que não só se opunha à doutrina da Igreja, como também ao mais elementar senso comum, enquadrados pela autoridade da filosofia aristotélica largamente ensinada nas universidades da época: essa teoria era o heliocentrismo.
O heliocentrismo, ao contrário do geocentrismo até então reinante, veio defender que a Terra não se encontrava imóvel no centro do universo com os planetas e o Sol girando à sua volta, mas que era ela que se movia em torno do Sol. Ao defender esta teoria, Copérnico baseava-se na convicção de que a natureza não devia ser tão complicada quanto o esforço que era necessário para, à luz do geocentrismo aristotélico, compreender o movimento dos planetas, as fases da Lua e as estações do ano.
Seriam Galileu, graças às observações com o seu telescópio, e o astrónomo alemão Kepler (1571-1630), ao descobrir as célebres leis do movimento dos planetas, a completar aquilo que Copérnico não chegou a fazer: apresentar as provas que davam definitivamente razão à teoria heliocêntrica, condenando a teoria geocêntrica como falsa. Nada disto, porém, aconteceu sem uma grande resistência por parte dos “sábios” da altura e da Igreja, tendo esta ameaçado e mesmo julgado Galileu por tal heresia.
Por outro lado, Bacon propôs na sua obra Novum Organum um novo método para o estudo da natureza que viria a tornar-se uma marca distintiva da ciência moderna. Bacon defende a experimentação seguida da indução.
Mas não vimos atrás que também Aristóteles defendia a indução? É verdade que já há cerca de dois mil anos antes Aristóteles propunha a indução como método de conhecimento. Só que, para este, a indução não utilizava a experimentação. Se Aristóteles tivesse recorrido à experimentação, facilmente poderia concluir que, ao contrário do que estava convencido, a velocidade da queda dos corpos não depende do seu peso. Para Aristóteles, a indução partia da simples enumeração de casos particulares observados, enquanto que Bacon falava de uma observação que não era meramente passiva, até porque o homem de ciência deveria estar atento aos obstáculos que se interpõem entre o espírito humano e a natureza. Assim, seria necessário eliminar da observação vulgar as falsas imagens — que tinham diferentes origens e a que Bacon dava o nome de idola — e pôr essa observação à prova através da experimentação.
A par do que ficou dito, Bacon falava de uma ciência já não contemplativa como a anterior, mas uma ciência “activa e operativa” que visava possibilitar aos seres humanos os meios de intervir na natureza e a dominar. Esta ciência dos efeitos traz consigo o germe da interdependência entre ciência e tecnologia.
O nascimento da ciência moderna: Galileu
O que acaba de se referir contribuiu para o aparecimento de uma nova ciência, mas o seu fundador, como começou por se assinalar, foi Galileu.
Há três tipos de razões que fizeram de Galileu o pai de uma nova forma de encarar a natureza: em primeiro lugar, deu autonomia à ciência, fazendo-a sair da sombra da teologia e da autoridade livresca da tradição aristotélica; em segundo lugar, aplicou pela primeira vez o novo método, o método experimental, defendendo-o como o meio adequado para chegar ao conhecimento; finalmente, deu à ciência uma nova linguagem, que é a linguagem do rigor, a linguagem matemática.
Ao dar autonomia à ciência, Galileu fê-la verdadeiramente nascer. Embora na altura se lhe chamasse “filosofia da natureza”, era a ciência moderna que estava a dar os seus primeiros passos. Antes disso, a ciência ainda não era ciência, mas sim teologia ou até metafísica. A verdade acerca das coisas naturais ainda se ia buscar às Escrituras e aos livros de Aristóteles.
E não foi fácil a Galileu quebrar essa dependência, tendo que se defender, após a publicação do seu livro Diálogo dos Grandes Sistemas, das acusações de pôr em causa o que a Bíblia dizia. Esta carta de Galileu é bem disso exemplo:
Posto isto, parece-me que nas discussões respeitantes aos problemas da natureza, não se deve começar por invocar a autoridade de passagens das Escrituras; é preciso, em primeiro lugar, recorrer à experiência dos sentidos e a demonstrações necessárias. Com efeito, a Sagrada Escritura e a natureza procedem igualmente do Verbo divino, sendo aquela ditada pelo Espírito Santo, e esta, uma executora perfeitamente fiel das ordens de Deus. Ora, para se adaptarem às possibilidades de compreensão do maior número possível de homens, as Escrituras dizem coisas que diferem da verdade absoluta, quer na sua expressão, quer no sentido literal dos termos; a natureza, pelo contrário, conforma-se inexorável e imutavelmente às leis que lhe foram impostas, sem nunca ultrapassar os seus limites e sem se preocupar em saber se as suas razões ocultas e modos de operar estão dentro das capacidades de compreensão humana. Daqui resulta que os efeitos naturais e a experiência sensível que se oferece aos nossos olhos, bem como as demonstrações necessárias que daí retiramos não devem, de maneira nenhuma, ser postas em dúvida, nem condenadas em nome de passagens da Escritura, mesmo quando o sentido literal parece contradizê-las.
Galileu, Carta a Cristina de Lorena
Foi também Galileu quem, na linha de Bacon, utilizou pela primeira vez o método experimental, o que lhe permitiu chegar a resultados completamente diferentes daqueles que se podiam encontrar na ciência tradicional. Um exemplo do pioneirismo de Galileu na utilização do método experimental é o da utilização do famoso plano inclinado, por si construído para observar em condições ideais (ultrapassando os obstáculos da observação directa) o movimento da queda dos corpos. Pôde, desse modo, repetir as experiências tantas vezes quantas as necessárias e registar meticulosamente os resultados alcançados. Tais resultados devem-se, ainda, a uma novidade que Galileu acrescentou em relação ao método indutivo de Bacon: o raciocínio matemático. A ciência não poderia mais construir-se e desenvolver-se tendo por base a interpretação dos textos sagrados; mas também não o poderia fazer por simples dedução lógica a partir de dogmas teológicos:
Ao cientista só se deve exigir que prove o que afirma. (...) Nas disputas dos problemas das ciências naturais, não se deve começar pela autoridade dos textos bíblicos, mas sim pelas experiências sensatas e pelas demonstrações indispensáveis.
Galileu, Audiência com o Papa Urbano VIII
Tratava-se de uma ciência cujas verdades deveriam ter um conteúdo empírico e que podiam ser não só expressas, mas também demonstradas numa linguagem já não qualitativa mas quantitativa: a linguagem matemática. Foi o que aconteceu quando Galileu, graças ao referido plano inclinado, pôs em prática o novo método e começou a investigar o movimento natural dos corpos. O resultado foi formular uma lei universal expressa matematicamente, o que tornava também possível fazer previsões. Diz ele:
Não há, talvez, na natureza nada mais velho que o movimento, e não faltam volumosos livros sobre tal assunto, escritos por filósofos. Apesar disso, muitas das suas propriedades (...) não foram observadas nem demonstradas até ao momento. (...) Com efeito, que eu saiba, ninguém demonstrou que o corpo que cai, partindo de uma situação de repouso, percorre em tempos iguais, espaços que mantêm entre si uma proporção idêntica à que se verifica entre os números ímpares sucessivos começando pela unidade.
Galileu, As Duas Novas Ciências
A velocidade da queda dos corpos (queda livre), é de tal modo apresentada que pode ser rigorosamente descrita numa fórmula matemática. Não seria possível fazer ciência sem se dominar a linguagem matemática. Metaforicamente, é através da matemática que a natureza se exprime:
A filosofia está escrita neste grande livro que está sempre aberto diante de nós: refiro-me ao universo; mas não pode ser lido antes de termos aprendido a sua linguagem e de nos termos familiarizado com os caracteres em que está escrito. Está escrito em linguagem matemática e as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente impossível entender uma só palavra.
Galileu, Il Saggiatore
A descrição matemática da realidade, característica da ciência moderna, trouxe consigo uma ideia importante: conhecer é medir ou quantificar. Nesse caso, os aspectos qualitativos não poderiam ser conhecidos. Também as causas primeiras e os fins últimos aristotélicos, pelos quais todas as coisas se explicavam, deixaram de pertencer ao domínio da ciência. Com Galileu a ciência aprende a avançar em pequenos passos, explicando coisas simples e avançando do mais simples para o mais complexo. Em lugar de procurar explicações muito abrangentes, procurava explicar fenómenos simples. Em vez de tentar explicar de forma muito geral o movimento dos corpos, procurava estudar-lhe as suas propriedades mais modestas. E foi assim, com pequenos passos, que a ciência alcançou o tipo de explicações extremamente abrangentes que temos hoje. Inicialmente, parecia que a ciência estava mais interessada em explicar o “como” das coisas do que o seu “porquê”; por exemplo, parecia que os resultados de Galileu quanto ao movimento dos corpos se limitava a explicar o modo como os corpos caem e não a razão pela qual caem; mas, com a continuação da investigação, este tipo de explicações parcelares acabaram por se revelar fundamentais para se alcançar explicações abrangentes e gerais do porquê das coisas — só que agora estas explicações gerais estão solidamente ancoradas na observação e na medição paciente, assim como na descrição pormenorizada de fenómenos mais simples.
O mecanicismo: Descartes e Newton
A ciência galilaica lançou as bases para uma nova concepção da natureza que iria ser largamente aceite e desenvolvida: o mecanicismo.
O mecanicismo, contrariamente ao organicismo anteriormente reinante que concebia o mundo como um organismo vivo orientado para um fim, via a natureza como um mecanismo cujo funcionamento se regia por leis precisas e rigorosas. À maneira de uma máquina, o mundo era composto de peças ligadas entre si que funcionavam de forma regular e poderiam ser reduzidas às leis da mecânica. Uma vez conhecido o funcionamento das suas peças, tal conhecimento é absolutamente perfeito, embora limitado. Um ser persistente e inteligente pode conhecer o funcionamento de uma máquina tão bem como o seu próprio construtor e sem ter que o consultar a esse respeito.
Um dos grandes defensores do mecanicismo foi o filósofo francês Descartes (1596-1656), que chegou mesmo a escrever o seguinte:
Eu não sei de nenhuma diferença entre as máquinas que os artesãos fazem e os diversos corpos que a natureza por si só compõe, a não ser esta: que os efeitos das máquinas não dependem de mais nada a não ser da disposição de certos tubos, que devendo ter alguma relação com as mãos daqueles que os fazem, são sempre tão grandes que as suas figuras e movimentos se podem ver, ao passo que os tubos ou molas que causam os efeitos dos corpos naturais são ordinariamente demasiado pequenos para poderem ser percepcionados pelos nossos sentidos. Por exemplo, quando um relógio marca as horas por meio das rodas de que está feito, isso não lhe é menos natural do que uma árvore a produzir os seus frutos.
Descartes, Princípios da Filosofia
O mecanicismo é o antecessor do fisicismo, uma doutrina que hoje em dia está no centro de grande parte da investigação dos filósofos contemporâneos. Tanto o mecanicismo como o fisicismo são diferentes formas de reducionismo.
O que é o reducionismo? O reducionismo é a ideia, central no desenvolvimento da ciência e da filosofia, de que podemos reduzir alguns fenómenos de um certo tipo a fenómenos de outro tipo. Do ponto de vista psicológico e até filosófico, o reducionismo pode ser encarado como uma vontade de diminuir drasticamente o domínio de fenómenos primitivos existentes na natureza. Por exemplo, hoje em dia sabemos que todos os fenómenos químicos são no fundo agregados de fenómenos físicos; isto é, os fenómenos químicos são fenómenos que derivam dos físicos — daí dizer-se que os fenómenos físicos são primitivos e que os químicos são derivados. Mas o reducionismo é mais do que uma vontade de diminuir o domínio de fenómenos primitivos: é um aspecto da tentativa de compreender a natureza última da realidade; é um aspecto importante da tentativa de saber o que explica os fenómenos. Assim, se os fenómenos químicos são no fundo fenómenos físicos, e se tivermos uma boa explicação e uma boa compreensão do que são os fenómenos físicos, então teremos também uma boa explicação e uma boa compreensão dos fenómenos químicos, desde que saibamos reduzir a química à física. O mecanicismo foi refutado no século XIX por Maxwell (1831-79), que mostrou que a radiação electromagnética e os campos electromagnéticos não tinham uma natureza mecânica. O mecanicismo é a ideia segundo a qual tudo o que acontece se pode explicar em termos de contactos físicos que produzem “empurrões” e “puxões”.
Dado que o mecanicismo é uma forma de reducionismo, não é de admirar que o principal objectivo de Descartes tenha sido o de unificar as diferentes ciências como se de uma só se tratasse, de modo a constituir um saber universal. Não via mesmo qualquer motivo para que se estudasse cada uma das ciências em separado, visto que a razão em que se apoia o estudo de uma ciência é a mesma que está presente no estudo de qualquer outra:
Todas as ciências não são mais do que sabedoria humana, que permanece sempre una e sempre a mesma, por mais diferentes que sejam os objectos aos quais ela se aplica, e que não sofre nenhumas alterações por parte desses objectos, da mesma forma que a luz do Sol não sofre nenhumas modificações por parte das variadíssimas coisas que ilumina.
Descartes, Regras para a Direcção do Espírito
Para atingir tal objectivo seria necessário satisfazer três condições: dar a todas as ciências o mesmo método; partir do mesmo princípio; assentar no mesmo fundamento. Só assim se poderiam unificar as ciências.
Quanto ao método, Descartes achava também que só o rigor matemático poderia fazer as ciências dar frutos. Daí que tivesse dado o nome de mathesis universalis ao seu projecto de unificação das ciências. A matemática deveria, portanto, servir todas as ciências:
Deve haver uma ciência geral que explica tudo o que se pode investigar respeitante à ordem e à medida, sem as aplicar a uma matéria especial: esta ciência designa-se (...) pelo vocábulo já antigo e aceite pelo uso de mathesis universalis, porque encerra tudo o que fez dar a outras ciências a denominação de partes das matemáticas.
Descartes, Regras para a Direcção do Espírito
Relativamente à segunda condição, o princípio de que todo o conhecimento deveria partir, só poderia ser o pensamento ou razão. Descartes queria tomar como princípio do conhecimento alguma verdade que fosse de tal forma segura, que dela não pudéssemos sequer duvidar. E a única certeza inabalável que, segundo ele, resistia a qualquer dúvida só podia ser a evidência do próprio acto de pensar.
Finalmente, em relação ao fundamento do conhecimento, este deveria ser encontrado, segundo Descartes, em Deus. Deus era a única garantia da veracidade dos dados — racionais e não sensíveis — e, consequentemente, da verdade do conhecimento. Sem Deus não poderíamos ter a certeza de nada. Ele foi o responsável pelas ideias inatas que há em nós, tornando-se por isso o fundamento metafísico do conhecimento.
Temos, assim, as diversas ciências da época concebidas como os diferentes ramos de uma mesma árvore, ligados a um tronco comum e alimentados pelas mesmas raízes. As raízes de que se alimenta a ciência são, como vimos, as ideias inatas colocadas em nós por Deus. Estamos, neste caso, no domínio da metafísica:
Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a física, e os ramos que saem deste tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a medicina, a mecânica e a moral.
Descartes, Princípios da Filosofia
Vale a pena salientar duas importantes diferenças em relação a Galileu.
A primeira é a do papel que Descartes atribuiu à experiência. Se o método experimental de Galileu parte da observação sensível, o mesmo já não acontece com Descartes, cujo ponto de partida é o pensamento, acarretando com isso uma diferença de método. Não é que, para Descartes, a experiência não tenha qualquer papel, mas este é apenas complementar em relação à razão. Reforça-se, todavia, a importância da matemática.
A segunda diferença diz respeito ao lugar da metafísica. Enquanto Galileu se demarcou claramente de qualquer pressuposto metafísico, Descartes achava que a metafísica era o fundamento de todo o conhecimento verdadeiro. Mas se Descartes via em Deus o fundamento do conhecimento, não achava necessário, todavia, fazer intervir a metafísica na investigação e descrição dos fenómenos naturais.
Entretanto, a ciência moderna ia dando os seus frutos e a nova concepção do mundo, o mecanicismo, ganhando cada vez mais adeptos. Novas ciências surgiram, como é o caso da biologia, cuja paternidade se atribuiu a Harvey (1578-1657), com a descoberta da circulação do sangue. E assim se chegou àquele que é uma das maiores figuras da história da ciência, que nasceu precisamente no ano em que Galileu morreu: o inglês Isaac Newton (1642-1727).
Ao publicar o seu livro Princípios Matemáticos de Filosofia da Natureza, Newton foi responsável pela grande síntese mecanicista. Este livro tornou-se numa espécie de Bíblia da ciência moderna. Aí completou o que restava por fazer aos seus antecessores e unificou as anteriores descobertas sob uma única teoria que servia de explicação a todos os fenómenos físicos, quer ocorressem na Terra ou nos céus. Teoria que tem como princípio fundamental a lei da gravitação universal, na qual se afirmava que “cada corpo, cada partícula de matéria do universo, exerce sobre qualquer outro corpo ou partícula uma força atractiva proporcional às respectivas massas e ao inverso do quadrado da distância entre ambos”.
Partindo deste princípio de aplicação geral, todos os fenómenos naturais poderiam, recorrendo ao cálculo matemático — o cálculo infinitesimal, também inventado por Newton — , ser derivados. Vejamos o que, a esse propósito, escreveu:
Proponho este trabalho como princípios matemáticos da filosofia, já que o principal problema da filosofia parece ser este: investigar as forças da natureza a partir dos fenómenos do movimento, e depois, a partir dessas forças, demonstrar os outros fenómenos; (...) Gostaria que pudéssemos derivar o resto dos fenómenos da natureza pela mesma espécie de raciocínio a partir de princípios mecânicos, pois sou levado por muitas razões a suspeitar que todos eles podem depender de certas forças pelas quais as partículas dos corpos, por causas até aqui desconhecidas, são ou mutuamente impelidas umas para as outras, e convergem em figuras regulares, ou são repelidas, e afastam-se umas das outras.
Newton, Princípios Matemáticos de Filosofia da Natureza
O universo era, portanto, um conjunto de corpos ligados entre si e regidos por leis rígidas. Massa, posição e extensão, eis os únicos atributos da matéria. No funcionamento da grande máquina do universo não havia, pois, lugar para qualquer outra força exterior ou divina. E, como qualquer máquina, o movimento é o seu estado natural. Por isso o mecanicismo apresentava uma concepção dinâmica do universo e não estática como pensavam os antigos.
Os fundamentos da ciência: Hume e Kant
Entretanto, os resultados proporcionados pela física newtoniana iam fazendo desaparecer as dúvidas que ainda poderiam subsistir em relação ao ponto de vista mecanicista e determinista da natureza. Os progressos foram imensos, o que parecia confirmar a justeza de tal ponto de vista.
A velha questão acerca do que deveria ser a ciência estava, portanto, ultrapassada. Interessava, sim, explicar a íntima articulação entre matemática e ciência, bem como os fundamentos do método experimental. Mas tais problemas imediatamente iriam dar origem a outro mais profundo: se o que caracteriza o conhecimento científico é o facto de produzir verdades universais e necessárias, então em que se baseiam a universalidade e necessidade de tais conhecimentos?
Este problema compreende-se melhor se pensarmos que a inferência válida que se usa na matemática e na lógica tem uma característica fundamental que a diferencia da inferência que se usa na ciência e a que geralmente se chama "indução", apesar de este nome referir muitos tipos diferentes de inferências. Na inferência válida da matemática e da lógica, é logicamente impossível que a conclusão seja falsa e as premissas sejam verdadeiras. Mas o mesmo não acontece na inferência indutiva: neste caso, podemos ter uma boa inferência com premissas verdadeiras, mas a sua conclusão pode ser falsa. Isto levanta um problema de justificação: como podemos justificar que as conclusões das inferências são realmente verdadeiras? Na inferência válida, é logicamente impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa; mas como podemos justificar que, na boa inferência indutiva seja impossível que as conclusões sejam falsas se as premissas forem verdadeiras? É que essa impossibilidade não é fácil de compreender, dado que não é uma impossibilidade lógica. E apesar de as ciências da natureza usarem também muitas inferências válidas, não podem avançar sem inferências indutivas.
O filósofo empirista escocês David Hume (1711-1776) no seu Ensaio sobre o Entendimento Humano defendia que tudo o que sabemos procede da experiência, mas que esta só nos mostra como as coisas acontecem e não que é impossível que acontecem de outra maneira. É um facto que hoje o Sol nasceu, o que também sucedeu ontem, anteontem e nos outros dias anteriores. Mas isso é tudo o que os sentidos nos autorizam a afirmar e não podemos concluir daí que é impossível o Sol não nascer amanhã. Ao fazê-lo estaríamos a ir além do que nos é dado pelos sentidos. Os sentidos também não nos permitem formular juízos universais, mas apenas particulares. Ainda que um aluno só tenha tido até agora professores de filosofia excêntricos, ele não pode, mesmo assim, afirmar que todos os professores de filosofia são excêntricos. Nem a mais completa colecção de casos idênticos observados nos permite tirar alguma conclusão que possa tomar-se como universal e necessária. O facto de termos visto muitas folhas cair em nada nos autoriza a concluir que todas as folhas caem necessariamente, assim como o termos visto o Sol nascer muitas vezes não nos garante que ele nasça no dia seguinte, pois isso não constitui um facto empírico. Mas não é precisamente isso que fazemos quando raciocinamos por indução? E as leis científicas não se apoiam nesse tipo de raciocínio ou inferência? Logo, se algo de errado se passa com a indução, algo de errado se passa com a ciência.
Mas se as coisas na natureza sempre aconteceram de uma determinada maneira (se o Sol tem nascido todos os dias), não será de esperar que aconteçam do mesmo modo no futuro (que o Sol nasça amanhã)? Para Hume só é possível defender tal coisa se introduzirmos uma premissa adicional, isto é, se admitirmos que a natureza se comporta de maneira uniforme. A crença de que a natureza funciona sempre da mesma maneira é conhecida como o “princípio da uniformidade da natureza”. Mas, interroga-se Hume, em que se fundamenta por sua vez o princípio da uniformidade da natureza? A resposta é que tal princípio se apoia na observação repetida dos mesmos fenómenos, o que nos leva a acreditar que a natureza se irá comportar amanhã como se comportou hoje, ontem e em todos os dias anteriores. Mas assim estamos a cair num raciocínio circular que é o seguinte: a indução só pode funcionar se tivermos antes estabelecido o princípio da uniformidade da natureza; mas estabelecemos o princípio da uniformidade da naturezapor meio do raciocínio indutivo.
Por que razão insistimos, então, em fazer induções? A razão — ou melhor, o motivo — é inesperadamente simples: porque somos impelidos pelo hábito de observarmos muitas vezes a mesma coisa acontecer. Ora, isso não é do domínio lógico, mas antes do psicológico.
O que Hume fez foi uma crítica da lógica da indução. Esta apoia-se mais na crença do que na lógica do raciocínio. O mesmo tipo de crítica levou também Hume a questionar a relação de causa-efeito entre diferentes fenómenos. Como tal, para Hume, o conhecimento científico, enquanto conhecimento que produz verdades universais e necessárias, não é logicamente possível, assumindo, por isso, uma posição céptica.
Seria o cepticismo de Hume que iria levar Kant (1724-1804) a tentar encontrar uma resposta para tal problema.
Depois de uma crítica completa, na sua obra Crítica da Razão Pura, à forma como, em nós, se constituía o conhecimento, Kant concluiu que aquilo que conferia necessidade e universalidade ao conhecimento residia no próprio sujeito que conhece. Para Kant, o entendimento humano não se limitava a receber o que os sentidos captavam do exterior; ele era activo e continha em si as formas a priori — que não dependem da experiência — às quais todos os dados empíricos se teriam que submeter.
Era, pois, nessas formas a priori do entendimento que se devia encontrar a necessidade e universalidade do conhecimento:
Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. É verdade que a experiência nos ensina que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente. Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori (...). Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram excepções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma excepção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori. (...)
(...) Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes?
Kant, Crítica da Razão Pura
Verificando que os conhecimentos científicos se referiam a factos observáveis, mas que se apresentavam de uma forma universal e necessária, Kant caracterizou as verdades científicas como juízos sintéticos a priori. Sintéticos porque não dependiam unicamente da análise de conceitos; a priori porque se fundamentavam, não na experiência empírica, mas nas formas a priori do entendimento, as quais lhes conferiam necessidade e universalidade.
Restava, para este filósofo, uma questão: saber se a metafísica poderia ser considerada uma ciência. Mas a resposta foi negativa porque, em metafísica, não era possível formular juízos sintéticos a priori. As questões metafísicas — a existência de Deus e a imortalidade da alma — caíam fora do âmbito da ciência, ao contrário da ciência medieval em que o estatuto de cada ciência dependia, sobretudo, da dignidade do seu objecto, sendo a teologia e a metafísica as mais importantes das ciências.
A “solução” de Kant dificilmente é satisfatória. Ao explicar o carácter necessário e universal das leis científicas, Kant tornou-as inter-subjectivas: algo que resulta da nossa capacidade de conhecer e não do mundo em si. Quando um cientista afirma que nenhum objecto pode viajar mais depressa do que a luz, está para Kant a formular uma proposição necessária e universal, mas que se refere não à natureza íntima do mundo, mas antes ao modo como nós, seres humanos, conhecemos o mundo. Estavam abertas as portas ao idealismo alemão, que teria efeitos terríveis na história da filosofia. Nos anos 70 do século XX, o filósofo americano Saul Kripke (1940- ) iria apresentar uma solução parcial ao problema levantado por Hume que é muito mais satisfatória do que a de Kant. Kripke mostrou, efectivamente, como podemos inferir conclusões necessárias a partir de premissas empíricas, de modo que a necessidade das leis científicas não deriva do seu carácter sintético a priori, como Kant dizia, mas antes do seu carácter necessário a posteriori.

4. O positivismo do século XIX

Comte
No século XIX, o ritmo do desenvolvimento científico e tecnológico cresceu imenso. Em consequência disso, a vida das pessoas sofreu alterações substanciais. Era a ciência que dava origem a novas invenções, as quais impulsionavam uma série de transformações na sociedade. Com efeito, estabeleceu-se uma relação entre os seres humanos e a ciência, de tal maneira que esta passou a fazer parte das suas próprias vidas.
Apareceram muitas outras ciências ao longo do século XIX, onde se contavam, por exemplo, a psicologia. O clima era de confiança em relação à ciência, na medida em que ela explicava e solucionava cada vez mais problemas. A física era o exemplo de uma ciência que apresentava imensos resultados e que nos ajudava a compreender o mundo como nunca antes tinha sido possível. A religião ia, assim, perdendo terreno no domínio do conhecimento e até a própria filosofia era frequentemente acusada de se perder em estéreis discussões metafísicas. A ciência não tinha, pois, rival.
É neste contexto que surge uma nova filosofia, apresentada no livro Curso de Filosofia Positiva, com o francês Auguste Comte (1798-1857): o positivismo.
O positivismo considera a ciência como o estado de desenvolvimento do conhecimento humano que superou, quer o estado das primitivas concepções mítico-religiosas, as quais apelavam à intervenção de seres sobrenaturais, quer o da substituição desses seres por forças abstractas. Comte pensa mesmo ter descoberto uma lei fundamental acerca do desenvolvimento do conhecimento, seja em que domínio for. Essa lei é a de que as nossas principais concepções passam sempre por três estados sucessivos: “o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto e o estado científico ou positivo”. A cada estado corresponde um método de filosofar próprio. Trata-se, respectivamente, do método teológico, do método metafísico e do método positivo. Assim, a ciência corresponde ao estado positivo do conhecimento, que é, para Comte, o seu estado definitivo:
Estudando assim o desenvolvimento total da inteligência humana nas suas diversas esferas de actividade, desde o seu primeiro e mais simples desenvolvimento até aos nossos dias, penso ter descoberto uma grande lei fundamental, à qual ele se encontra submetido por uma necessidade invariável, e que me parece poder estabelecer-se solidamente, quer pelas provas racionais que o conhecimento da nossa organização nos fornece, quer pelas verificações históricas que resultam de um atento exame do passado. Esta lei consiste em que cada uma das nossas principais concepções, cada ramo dos nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto, o estado científico ou positivo. Noutros termos, o espírito humano, dada a sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma das suas pesquisas, três métodos de filosofar, de características essencialmente diferentes e mesmo radicalmente opostos: primeiro o método teológico, depois o método metafísico e, por fim, o método positivo. Donde decorre a existência de três tipos de filosofia ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto dos fenómenos que mutuamente se excluem: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira o seu estado fixo e definitivo; a segunda destina-se unicamente a servir de transição.
Comte, Curso de Filosofia Positiva
Comte prossegue, caracterizando cada um dos estados, de modo a concluir que os primeiros dois estados foram necessários apenas como degraus para chegar ao seu estado perfeito, o estado positivo:
No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente as suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os fenómenos que o atingem, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, concebe os fenómenos como produzidos pela acção directa e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja arbitrária intervenção explicaria todas as aparentes anomalias do universo.
No estado metafísico, que no fundo não é mais que uma modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstractas, verdadeiras entidades (abstracções personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por si mesmas todos os fenómenos observados, cuja explicação consiste então em referir para cada um a entidade correspondente.
Por último, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para se dedicar apenas à descoberta, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, das suas leis efectivas, isto é, das suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos factos, reduzida então aos seus termos reais, não é mais, a partir daqui, do que a ligação que se estabelece entre os diversos fenómenos particulares e alguns factos gerais cujo número tende, com os progressos da ciência, a diminuir cada vez mais. (...)
Assim se vê, por este conjunto de considerações, que, se a filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, aquele para o qual ela sempre, e cada vez mais, tendeu, nem por isso ela deixou de utilizar necessariamente, no começo e durante muitos séculos, a filosofia teológica, quer como método, quer como doutrina provisórios; filosofia cujo carácter é ela ser espontânea e, por isso mesmo, a única que era possível no princípio, assim como a única que podia satisfazer os interesses do nosso espírito nos seus primeiros tempos. É agora muito fácil ver que, para passar desta filosofia provisória à filosofia definitiva, o espírito humano teve, naturalmente, que adoptar, como filosofia transitória, os métodos e as doutrinas metafísicas. Esta última consideração é indispensável para completar a visão geral da grande lei que indiquei.
Com efeito, concebe-se facilmente que o nosso entendimento, obrigado a percorrer degraus quase insensíveis, não podia passar bruscamente, e sem intermediários, da filosofia teológica para a filosofia positiva. A teologia e a física são profundamente incompatíveis, as suas concepções têm características tão radicalmente opostas que, antes de renunciar a umas para utilizar exclusivamente as outras, a inteligência humana teve de se servir de concepções intermédias, de características mistas, e por isso mesmo próprias para realizar, gradualmente, a transição. É este o destino natural das concepções metafísicas que não têm outra utilidade real.”
Comte, Curso de Filosofia Positiva
O pensamento de Comte, mais do que uma filosofia original, era uma filosofia que captou um certo espírito do século XIX e lhe deu uma espécie de justificação. Este tipo de espírito positivista viria a conhecer uma reacção extrema, anti-positivista: o romantismo e o irracionalismo, que acabariam por dar o perfil definitivo à filosofia do continente europeu do século XX. Ao passo que o positivismo exaltava a ciência, o romantismo e o irracionalismo deploravam a ciência. Ambas as ideias parecem falsas e exageradas. As ideias de Comte são vagas e os argumentos que ele usa para as sustentar são pouco mais do que sugestões. A própria ideia de ciência que Comte apresenta está errada; não é verdade que a ciência tenha renunciado a explicar as causas mais profundas dos fenómenos, nem é verdade que na história do pensamento tenhamos assistido a uma passagem de uma fase mais abstracta para uma fase mais concreta ou positiva. Pelo contrário, a ciência apresenta um grau de abstracção cada vez maior, e a própria filosofia, com as suas teorias e argumentos extremamente abstractos, conheceu no século XX um desenvolvimento como nunca antes tinha acontecido.
O positivismo defende que só a ciência pode satisfazer a nossa necessidade de conhecimento, visto que só ela parte dos factos e aos factos se submete para confirmar as suas verdades, tornando possível a obtenção de “noções absolutas”.
Do que dissemos decorre que o traço fundamental da filosofia positiva é considerar todos os fenómenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, sendo o fim de todos os nossos esforços a sua descoberta precisa e a sua redução ao menor número possível, e considerando como absolutamente inacessível e vazio de sentido a procura daquilo a que se chama as causas, sejam primeiras ou finais. É inútil insistir muito num princípio que se tornou tão familiar a todos os que estudaram, com alguma profundidade, as ciências de observação. Com efeito, todos nós sabemos que, nas nossas explicações positivas, mesmo nas mais perfeitas, não temos a pretensão de expor as causas geradoras dos fenómenos, dado que nesse caso não faríamos senão adiar a dificuldade, mas apenas de analisar com exactidão as circunstâncias da sua produção e de as ligar umas às outras por normais relações de sucessão e similitude. (...)
Comte, Curso de Filosofia Positiva
O pressuposto fundamental é, pois, o de que há uma regularidade no funcionamento da natureza, cabendo ao homem descobrir com exactidão as “leis naturais invariáveis” a que todos os fenómenos estão submetidos. Essas leis devem traduzir com todo o rigor as condições em que determinados factos são produzidos. Para isso tem de se partir da observação dos próprios factos e das relações que entre eles se estabelecem de modo a chegar a resultados universais e objectivos. Qualquer facto observado é o resultado necessário de causas bem precisas que é importante investigar. Até porque as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos, não havendo na natureza lugar para a fantasia e o improviso, tal como, de resto, acontece com uma máquina que se comporta sempre como previsto. A isto se chama determinismo. O determinismo é, então, uma consequência do mecanicismo moderno e teve inúmeros defensores, entre os quais se tornou famoso Laplace (1749-1827). Escreve ele:
Devemos considerar o estado presente do universo como um efeito do seu estado anterior e como causa daquele que se há-de seguir. Uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem — uma inteligência suficientemente vasta para submeter todos esses dados a uma análise — englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do mais pequeno átomo; para ela, nada seria incerto e o futuro, tal como o passado, seriam presente aos seus olhos.
LAPLACE, Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades
Com efeito, a natureza ainda apresenta muitos mistérios, mas apenas porque não temos a capacidade de conhecer integralmente as circunstâncias que a cada momento se conjugam para o desencadear de todos os fenómenos observados. É, contudo, possível prever muitos deles.
Esta é uma perspectiva que, no fundo, acaba por desenvolver e sistematizar em termos teóricos a concepção mecanicista própria da ciência moderna. Concepção essa que, por sua vez, assenta numa determinada filosofia acerca da natureza do conhecimento: o realismo crítico. Realismo porque defende a existência de uma realidade objectiva exterior ao sujeito, e crítico porque nem tudo o que é percepcionado nos fenómenos naturais tem valor objectivo. É por isso que o cientista precisa de um método de investigação que lhe permita eliminar todos os aspectos subjectivos acerca dos fenómenos estudados e encontrar, por entre as aparências, as propriedades verdadeiramente objectivas. Tal método continua a ser o método experimental.
Os grandes princípios nos quais se apoiava a ciência pareciam, então, definitivamente assentes. As discussões sobre o estatuto ou os fundamentos do conhecimento científico consideravam-se arrumadas e a linguagem utilizada, a matemática, estava também ela assente em princípios sólidos. Restava prosseguir com cada vez mais descobertas, de modo a acrescentar ao que já se sabia novos conhecimentos.
Que a ciência desse respostas definitivas às nossas perguntas, de modo a ampliar cada vez mais o conhecimento humano, e que tal conhecimento pudesse ser aplicado na satisfação de necessidades concretas do homem, era o que cada vez mais pessoas esperavam. Assim, a ciência foi conquistando cada vez mais adeptos, tornando-se objecto de uma confiança ilimitada. Isto é, surge um verdadeiro culto da ciência, o cientismo. O cientismo é, pois, a ciência transformada em ideologia. Ele assenta, afinal, numa atitude dogmática perante a ciência, esperando que esta consiga responder a todas as perguntas e resolver todos os nossos problemas. Em grande medida, o cientismo resulta de uma compreensão errada da própria ciência. A ciência não é a caricatura que Comte apresentou e que o cientismo de alguma forma adoptou.
O sucessor moderno do mecanicismo, como vimos, é o fisicismo. A ideia geral é a de que podemos reduzir todos os fenómenos a fenómenos físicos. Hoje em dia, uma parte substancial da investigação em filosofia e em algumas ciências, procura reduzir fenómenos que à primeira vista não parecem susceptíveis de serem reduzidos: é o caso, por exemplo, dos fenómenos mentais (de que se ocupa a filosofia da mente e as ciências cognitivas) e dos fenómenos semânticos (de que se ocupa a filosofia da linguagem e a linguística). Esta ideia não é nova; já Comte tinha apresentado uma classificação das ciências em que, de maneiras diferentes, todas as ciências acabavam por se reduzir à física. Até à mais recente das ciências, a sociologia, Comte dava o nome de física social. Havia, assim, a física celeste, a física terrestre, a física orgânica e a física social nas quais se incluíam as cinco grandes categorias de fenómenos, os fenómenos astronómicos, físicos, químicos, fisiológicos e sociais.
Assim, é preciso começar por considerar que os diferentes ramos dos nossos conhecimentos não puderam percorrer com igual velocidade as três grandes fases do seu desenvolvimento atrás referidas nem, portanto, chegar simultaneamente ao estado positivo. (...)
É impossível determinar com rigor a origem desta revolução (...). Contudo, dado que é conveniente fixar uma época para impedir a divagação de ideias, indicarei a do grande movimento imprimido há dois séculos ao espírito humano pela acção combinada dos preceitos de Bacon, das concepções de Descartes e das descobertas de Galileu, como o momento em que o espírito da filosofia positiva começou a pronunciar-se no mundo, em clara oposição aos espíritos teológico e metafísico. (...)
Eis então a grande mas evidentemente única lacuna que é preciso colmatar para se concluir a constituição da filosofia positiva. Agora que o espírito humano fundou a física celeste, a física terrestre — quer mecânica quer química —, a física orgânica — quer vegetal quer animal —, falta-lhe terminar o sistema das ciências de observação fundando a física social. (...)
Uma vez preenchida esta condição, encontrar-se-á finalmente fundado, no seu conjunto, o sistema filosófico dos modernos, pois todos os fenómenos observáveis integrarão uma das cinco grandes categorias desde então estabelecidas: fenómenos astronómicos, físicos, químicos, fisiológicos e sociais. Tornando-se homogéneas todas as nossas concepções fundamentais, a filosofia constituir-se-á definitivamente no estado positivo; não podendo nunca mudar de carácter, resta-lhe desenvolver-se indefinidamente através das aquisições sempre crescentes que inevitavelmente resultarão de novas observações ou de meditações mais profundas. (...)
Com efeito, completando enfim, com a fundação da física social, o sistema das ciências naturais, torna-se possível, e mesmo necessário, resumir os diversos conhecimentos adquiridos, então chegados a um estado fixo e homogéneo, para os coordenar, apresentando-os como outros tantos ramos de um único tronco, em vez de continuar a concebê-los apenas como outros tantos corpos isolados.”
Comte, Curso de Filosofia Positiva
Mas não é com classificações vagas que se conseguem realmente reduzir as ciências à física — esta é a forma errada de colocar o problema. Trata-se, antes, de mostrar que os fenómenos estudados pela química ou pela sociologia ou pela psicologia são, no fundo, fenómenos físicos. Mas isto é um projecto que, apesar de alimentar hoje em dia grande parte da investigação científica e filosófica, está longe de ter alcançado bons resultados. E alguns filósofos contemporâneos duvidam que tal reducionismo seja possível.
A distinção entre ciências da natureza e ciências sociais ou humanas tornou-se, progressivamente, mais importante. Apesar dos devaneios de Comte, não era fácil ver como se poderiam reduzir os fenómenos sociais, por exemplo, a fenómenos físicos. A reacção contrária a Comte resultou em doutrinas que traçam uma distinção entre os dois tipos de ciências, alegando que os fenómenos sociais não podem ser reduzidos a fenómenos físicos. Dilthey (1833-1911) dividia as ciências em ciências do homem, ou do espírito, entre as quais se encontravam a história, a psicologia, etc., e as ciências da natureza, como a física, a química, a biologia, etc. Aquelas tinham como finalidadecompreender os fenómenos que lhes diziam respeito, enquanto que estas procuravamexplicar os seus. Esta forma de encarar a diferença entre as ciências humanas e as ciências da natureza é de algum modo simplista. Mas os grandes filósofos das ciências sociais actuais, como Alan Ryan e outros, procuram ainda encontrar modelos de explicação satisfatórios para as ciências humanas. Apesar de admitirem que o tipo de explicação das ciências da natureza é diferente do tipo de explicação das ciências humanas, o verdadeiro problema é saber que tipo de explicação é a explicação fornecido pelas ciências humanas.
As ciências da natureza e as ciências formais do século XIX e XX conheceram desenvolvimentos sem precedentes. Mas porque o espírito científico é um espírito crítico e não dogmático, apesar do enorme desenvolvimento alcançado pela ciência no século XIX, os cientistas continuavam a procurar responder a mais e mais perguntas, perguntas cada vez mais gerais, fundamentais e exactas. E a resposta a essas perguntas conduziu a desenvolvimentos científicos que mostraram os limites de algumas leis e princípios antes tomados como verdadeiros. A geometria, durante séculos considerada uma ciência acabada e perfeita, foi revista. Apesar de a geometria euclidiana ser a geometria correcta para descrever o espaço não curvo, levantou-se a questão de saber se não poderíamos construir outras geometrias, que dessem conta das relações geométricas em espaços não curvos: nasciam as geometrias não euclidianas. A existência de geometrias não euclidianas conduz à questão de saber se o nosso universo será euclidiano ou não. E a teoria da relatividade mostra que o espaço é afinal curvo e não plano, como antes se pensava.
O desenvolvimento alucinante das ciências dos séculos XIX e XX, juntamente com o cientismo provinciano defendido por Comte, conduziu ao clima anti-científico que caracteriza algumas correntes da filosofia do final do século XX. Mas isso fica para depois.
Aires Almeida

Nota

Agradeço a Desidério Murcho a revisão do texto, assim como as variadíssimas imprecisões que me ajudou a eliminar. Sem ele, este texto seria muito diferente.


Fonte: http://criticanarede.com/filos_fileciencia.html





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Mito e filosofia

Continuidade ou ruptura?Delmo Mattos da Silva
Universidade Salgado de Oliveira, Brasil
Pela interpretação tradicional da História da Filosofia, somos persuadidos a crer que a Filosofia emerge entre os Gregos por uma ruptura com o Mito. Não havendo, por assim dizer, uma continuidade dessa forma de se entender a realidade com o afloramento de uma nova atitude frente à realidade puramente racional inaugurada pelos Gregos. Entretanto, existem inúmeras controvérsias quanto a essa interpretação, o que nos leva a crer, por vários motivos, que há evidencias que nos levariam a aceitar uma continuidade significativa do discurso Mítico no interior da Filosofia nascente, e abandonar a difundida tese do "Milagre Grego". (O "Milagre grego" em nada se aproxima do Mito, são visões totalmente divergentes da realidade, de modo que o acontecimento da filosofia deixa transparecer o testemunho de uma mutação no pensamento.)
Não é fácil, contudo, traçar com precisão uma "fronteira temporal", parafraseando Jaeger, que pudesse nos evidenciar o momento exato de que não mais estaríamos a falar do Mito, mas sim do pensamento racional. Este, porém, seria o sinal para aceitarmos uma provável "conexão orgânica" (continuidade) entre esses dois modos de conhecer a realidade. Contudo, não nos é fácil aceitar de antemão tal evidência, pois sabemos que existem diferenças fundamentais entre Mito (Mythos) e Filosofia (logos). Características que levaram, de fato, os intérpretes da História da Filosofia a sustentarem a tese da descontinuidade entre Mito e Filosofia. Sabemos que a constituição Mitológica, como forma de se entender a realidade, estava enraizada no interior da sociedade grega tão profundamente, que seria até obvio que houvesse uma persistência e confluência na fase inicial da Filosofia. Atentemos neste momento, em definir o que era o Mito e qual a sua função na sociedade grega. O Mito, enquanto uma narrativa, corresponde à primeira forma de se pensar o real, ou de representá-lo. Neste caso encontramos uma explicação ou um relato de um acontecimento que teve um lugar no tempo primordial de modo que institui um começo ou uma origem para tal acontecimento. Na verdade, o Mito narra como, graças aos feitos de personagens sobrenaturais, uma realidade veio a existir efetivamente, seja a realidade na sua totalidade — o Cosmos, ou apenas um fragmento dessa realidade. Assim dentro da sociedade grega o Mito destina-se a satisfazer uma curiosidade, que não é científica, de fazer reviver uma realidade original, e, sobretudo, responde a uma profunda necessidade religiosa às aspirações morais, restrições e imperativos de ordem puramente social. O pensamento Mítico guarda em si diferenças que não são acompanhadas pela tradição racional do pensamento — por esse motivo uma leitura filosófica renuncia de bom grado a explicação do Mito. Porém, há um ponto de convergência bastante interessante: o fato de que o Mito se comporta, apesar de suas peculiaridades, como uma explicação simbólica sobre a origem. Esse ponto é fundamental para os intérpretes que procuram um ponto de conexão entre o pensamento Mítico e o racional: A questão da origem. A questão da origem nos remete ao fundamento de algo, daquilo que brota e emerge esse algo. Na verdade, tanto o Mito quanto a Filosofia asseguram para si uma explicação sobre a origem do Universo. Guardada as devidas proporções tanto o Mito quanto a Filosofia possuíam a mesma preocupação sendo que explicada de maneiras diferenciadas.
Procurando distanciar-se dessa concepção, o historiador inglês John Burnet, afirma ser impossível constar algum tipo de continuidade entre o Mito e a Filosofia. Contra essa continuidade, como já havíamos demonstrado acima, Burnet afirma que certas características predominantes no Mito são totalmente contrárias às da Filosofia no seu estágio inicial. Burnet, nesse sentido, assume a interpretação tradicional da História da Filosofia, mais precisamente a interpretação do Filosofo Alemão Hegel. Em sua obra História da Filosofia Hegel enfatiza a distinção entre "Filosofia oriental" e "Filosofia Grega", segundo o qual primeira é representada por ser religião contrastando com a segunda, que Hegel descreve como uma ruptura frente à religião. A interpretação de Hegel sobre o nascimento da Filosofia possibilitou a margem para que, posteriormente, os historiadores da filosofia admitissem que o nascimento da Filosofia significasse uma descontinuidade ou uma ruptura total com a religião e com os Mitos (a tese do "Milagre Grego"). Como exemplo dessa posição vejamos o que Burnet entende sobre esse ponto:
"Os primeiros gregos que tentaram compreender a natureza não eram como homens que entram num caminho que nunca fora percorrido. Já existia uma visão do mundo possivelmente consistente, ainda que apenas pressuposta e implícita no rito e no mito e não distintamente concebida como tal. Os primeiros pensadores fizeram algo muito maior do que um simples começo. Despojando-se da visão selvagem das coisas, renovaram a juventude delas e, com elas, a juventude do mundo, em um tempo em que o mundo parecia abatido pela senilidade". (BUNET, J. O Despertar da Filosofia Grega. São Paulo: Siciliano, p. 34.)
Embora as afirmações de Burnet nos induzam a aceitar tal descontinuidade entre Mito e Filosofia, não nos deixemos envolver tão facilmente pela sua posição. Se realmente há uma ruptura radical como ele propõe o que dizer das autenticas exemplificações contidas nas teorias de Platão e, até mesmo Aristóteles? Contrapondo-se a Burnet o Helenista Cornford contesta a idéia de que o nascimento da Filosofia tem por característica principal uma ruptura direta e total com o Mito. A preocupação fundamental de Cornford foi "estabelecer, entre a reflexão filosófica e o pensamento religioso, que tinha precedido, o fio da continuidade histórica" (VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, pp. 168-86.). Tal pretensão de Cornford foi muito difundida a ponto de se tornar um paradigma para os historiadores da filosofia. A interpretação de Cornford admitira uma transformação no modo de encarar o início da Filosofia. Na base de sua interpretação está a idéia de que o pensamento dos primeiros filósofos não representa, pois, o processo inicial da reflexão grega, mas, ao contrário, o pensamento Grego só pôde atingi-lo com base em uma reflexão anterior. Essa representação anterior é representada, de um lado, pelo Mito, ou melhor, pelas Teogonias que são as primeiras explicações da natureza em seu conjunto, porém, situadas inteiramente no plano do Mito. Na visão de Cornford, as Teogonias Míticas gregas adiantaram-se à Filosofia na tentativa de esclarecer as relações percebidas entre os fatos naturais. Entretanto, Cornford vai até mais longe na sua interpretação, admitindo a presença da estrutura dos Mitos continua presente nos filósofos posteriores, contrariando, por assim dizer, a interpretação de Burnet e da tradição dos historiadores da filosofia. Todavia, os próprios representantes da concepção tradicional sobre o início da Filosofia reconhecem que a meditação filosófica tivera um antecedente nas representações religiosas, que apresentavam, em forma Mítica os mesmo problemas que mais tarde a Filosofia em forma racional levantou. De acordo com R. Mondolfo é justamente a de que a característica essencial de toda Teogonia — e não apenas da grega — é que "seu caráter mítico está determinado pelo fato de se extraem do mundo humano, das experiências da vida e das relações sociais, da geração e da luta, os elementos fundamentais para as suas explicações e interpretações do devir cósmico, e é por isso que representam as relações entre os seres e as forças, os fenômenos e os momentos do imenso processo universal como relações entre personalidades concebidas antroporficamente" (MONDOLFO, R. El pensamento antiquo. Buenos aires, Losada,1952. p. 9-103). Seguindo essa interpretação, podemos traçar um paralelo entre os dois modos de representação: ao recolher a herança de reflexão das Teogonias, a Filosofia incipiente herdou também um concepção da natureza dependente de uma consideração anterior ao mundo humano. Dessa forma Mondolfo explica que "em suas concepções de gênese e da constituição do cosmo, tanto as Teogonias poéticas quanto às cosmogonias filosóficas gregas partem de concepções e representações referentes às relações entre homens e suas gerações" (Idem. Em los orígenes de la filosofia e de la cultura. Buenos Aires, Imán, 1942.). A tese fundamental de Mondolfo são que a primeira reflexão sobre a natureza tanto em sua forma Mítica como em sua forma filosófica, se entrelaça como uma reflexão sobre o mundo humano, que a precede em que se apóia. A frase usada por Vernant para sintetizar tanto o pensamento de Burnet como de Cornford sobre a dependência da Filosofia em relação à mitologia é que "os filósofos não precisaram inventar um sistema de explicação do mundo: acharam-no já pronto". Ora, se por sua argumentação a favor do relacionamento da Filosofia com as formas anteriores de reflexão, expressa de modo poético, Mondolfo torna-se participante, ao lado de Burnet da tese da continuidade. Para estes, os filósofos deram respostas às mesmas perguntas feitas pelos Mitos e seguiram, nas respostas, a mesma estrutura que os Mitos propunham, isto é, a Filosofia continuaria trazendo as mesmas concepções Míticas mais, simplesmente de forma secularizada. Assim o Mito recebe da Filosofia a conceituação lógica, enquanto a Filosofia recebe do Mito os conteúdos que precisam ser pensados, de sorte que "devemos considerar a história da filosofia grega como processo de progressiva racionalização do mundo presente no mito". (BRAVO, B. Philologie, Historie, Philosophie de l'historie, Varsóvia, 1968)
Seguindo as mesmas concepções de Burnet e Cornford, Jaeger considera que a Filosofia nasce passando pelo interior da epopéia homérica e dos poemas de Hesíodo, de tal modo que o começo da filosofia científica não coincide com o princípio do pensamento racional nem com o fim do pensamento Mítico. No entanto, mesmo que estejamos certos dessa continuidade, diz Jaeger, não podemos mais nos contentar com a idéia de que a Filosofia diz o mesmo que o Mito, só de outra forma. O problema do surgimento da continuidade ou não entre Mito e Filosofia volta a se colocar de uma maneira diferente. Assim Vernant diz:
"Já não se trata apenas de encontrar na filosofia o antigo, mas de destacar o verdadeiramente novo: aquilo que faz, precisamente, com que a filosofia deixe de ser mito para ser filosofia. Cumpre, por conseguinte, definir a mutação mental de que a primeira filosofia grega dá testemunho, precisar sua natureza, sua amplitude, seus limites, suas condições históricas". (VILHENA,V.M. Panorama do Pensamento Filosófico,Vol. 2, Lisboa: Cosmos, 1958, p. 34)
Para os intérpretes da descontinuidade, a originalidade da Filosofia em relação ao Mito é conseqüência direta da "laicização do pensamento". Estudando as transformações sociais e políticas ocorridas na Grécia, no período arcaico, Pierre Schuhl acentua a função libertadora que tivera, para o espírito, instituições com a moeda, o calendário, a escrita alfabética; e afirma que práticas como a navegação, de longo curso, e a expansão do comércio deveria causar uma nova orientação do pensamento. Sobre esse ponto comenta Nietzsche:
"Nada há de mais absurdo do que atribuir aos Gregos, uma cultura autóctone, pelo contrario, assinalaram a cultura viva de todos os outros povos e, se chegaram tão longe, foi porque souberam continuar a arremessar a lança onde um outro povo a tinha deixado" (SCHUHL, Pierre Máxime. Essai sur la formation de la pensée grecque. Paris: Press Universitaires de France,1949, p. 123.)
Na verdade, a primeira sabedoria grega, característica dos homens que os Gregos celebraram sempre como seus primeiros e mais autênticos sábios, e que marca o momento de ruptura com a explicação mítica do real, não possui por objeto o universo da Physis, mas o mundo dos homens: que elementos os compõem, que forças o divide contra si mesmos, como harmonizá-las, unificá-las, para que a partir de seus conflitos surja a ordem humana. Ao nascer, a Filosofia se enraíza profundamente nesse novo pensamento político, traduzindo suas preocupações fundamentais e tirando dele parte de seu vocabulário. Diante disso, podemos inferir que, a grande "viragem" do pensamento deu-se, portanto, quando os primeiros sábios começaram a refletir sobre a vida humana tal como se apresenta na pólis. Assim os primeiros filósofos aproveitaram o espaço assim aberto para a reflexão e voltaram-se para a natureza. (Por detrás do "milagre grego" havia embutido um espírito de contestação ao que era divino e decadente. Não existia mais lugar para agentes divinos atuando no mundo natural. A perspectiva do "milagre grego" é acima de tudo uma revolução do pensamento, que brota do espírito especulativo que somente os gregos puderam por em prática.)
Diante do impasse entre as diversas interpretações, isto é, de querer sustentar a tese de que a Filosofia seria um "Milagre Grego" ou a tese da continuidade entre Mito e Filosofia seria mais prudente de nossa parte determinar o próprio ato de filosofar. Para a partir daí, se verificar o que a Filosofia traz de novo em relação ao Mito e o que o pensamento Mítico deixa a desejar para a Filosofia. Na verdade, não há uma conclusão plausível para esta questão: se falarmos de uma total ruptura da Filosofia com o Mito, o que dizer então da tese de Burnet? A tese de Cornford não é tão absurda assim, há elementos evidentes de uma certa continuidade na linha de pensamento entre o Mito e a Filosofia. A grande questão é que o discurso mítico diz diferentemente o que a Filosofia viria a dizer depois. Não há como negar esta evidência, pois tanto o Mito como a Filosofia tratam da mesma preocupação. O que dizer então da tese de Hegel, ou seja, da ruptura radical como o discurso Mítico também, por esse aspecto em nada podemos discordar. Há evidencias textuais que colaboram para essa interpretação. Talvez a solução dessa problemática ainda não foi resolvida de modo suficiente pelos historiadores da Filosofia de modo que ainda há muito que se discutir sobre esse tema. Por outro lado, deve haver uma solução plausível, mas que deixa muito a desejar sob o meu ponto de vista. O interessante nesse meio termo é definir o que exatamente mudou quando o pensamento se deparou com essa nova atitude do pensamento. Por esse lado, não dúvidas o quando a Filosofia se distanciou da explicação Mitológica a ponto de se manter distante o bastante com o surgimento de novos problemas que o Mito ainda não tematizava. Aí entra, uma outra questão: será que sem o discurso Mítico a Filosofia poderia ter surgido? Seria o discurso Mítico o suporte que daria asas ao pensamento racional? Sobre esse ponto não me resta a menor dúvida. O discurso Mítico é a base sem a qual não haveria Filosofia e, aí, retornaríamos a velha questão da continuidade. De certa forma, se o discurso Mítico é a base de sustentação da Filosofia isso não quer dizer que no seu interior a Filosofia carregue consigo as mesmas características do pensamento Mítico. Há sim uma mudança de enfoque oriunda de uma nova mentalidade adquirida pelos Gregos. Esse novo enfoque adquire um estatuto de credibilidade não alcançado pelo discurso Mítico. A originalidade da Filosofia se deve ao fato de que esta se detém no real, ou seja, naquilo que o pensamento apreende sem intervenção alguma. Por isso, pode se falar de um "Milagre Grego", isto é, uma "mutação mental" capaz de penetrar progressivamente numa esfera de relação com aquilo que o real nos oferece. Sob a ótica do racional sem a intervenção do misterioso o deslocamento do olhar do pensador se volta para as raízes acolhidas no plano físico, do factual. Por isso deixa-se de se ater ao que é divino e fantasioso, pois este ponto de vista não esclarece de fato o que podemos contestar, para se voltar sobre o solo especulativo a fim de que, tais evidências sejam colocadas em dúvida. O caráter estritamente especulativo da Filosofia nascente reforça a idéia de que com os gregos inicia-se a gênese do pensamento científico. A Filosofia é grega e a "Filosofia grega" é um "exercício do conhecimento". Não importa se o seu aparecimento seja um começo absoluto — sem passado e sem família — a sua originalidade é de ser uma experiência do pensamento diferente do Mito. Mesmo que haja convergência de idéias ou características, a Filosofia grega será sempre uma experiência do pensar diferente de tudo o que já foi visto. A experiência radical do pensamento só poderia vir de um solo tão firme que o que se ergueria depois, jamais poderia ser demolido tão facilmente.
Delmo Mattos da Silva
Bibliografia
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  • HEGEL, G.W.F. Leçons sur L'historie de la Philosophie. Paris: J. vrin, 1971.
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  • ——. El pensamiento antigo, Buenos Aires: Losada, 1952.
  • ——. Em los orígenes de la filosofia e de la cultura, Buenos Aires: Imán.
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  • ——. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Duas cidades, 1977.
  • ——. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972
  • VILHENA,V.M. Panorama do Pensamento Filosófico, Vol. 2, Lisboa: Cosmos, 1958.

Fonte: http://criticanarede.com/his_mitofil.html

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A epistemologia da ciência

David Papineau
Tradução de Luiz Helvécio Marques Segundo

Fonte: http://criticanarede.com/episciencia.html
A filosofia da ciência pode ser proveitosamente divida em duas amplas áreas. A epistemologia da ciência lida com a justificação da alegação de que temos conhecimento científico. A metafísica da ciência investiga aspectos filosoficamente intrigantes do mundo descrito pela ciência. Com efeito, a epistemologia da ciência pergunta se as teorias científicas são verdadeiras, ao passo que a metafísica da ciência considera aquilo que diremos sobre o mundo se forem verdadeiras.
Os ensaios nesta coletânea voltar-se-ão para a epistemologia da ciência. Perguntarão se temos justificação para acreditar nas teorias científicas, e que atitudes deveremos ter perante elas caso não a tenhamos. Talvez a metafísica da ciência tenha tanto direito ao título de filosofia da ciência quanto a epistemologia da ciência. No entanto, é uma área heterogênea que resiste a qualquer compilação. Os problemas da metafísica da ciência tendem a emergir ou na metafísica geral (como a análise da causalidade, ou da probabilidade, ou das leis da natureza) ou se enquadram na área das ciências específicas (como questões sobre a indeterminação quântica ou sobre as unidades da seleção natural). A epistemologia da ciência, ao invés, lida com problemas que surgem da ciência em geral e não das ciências específicas, sendo, contudo, ao mesmo tempo distinguíveis dos problemas que surgem nas outras áreas da filosofia.
Na década de 1980 ou depois disso, os filósofos de ciência fizeram muito para consolidar e unificar o trabalho na epistemologia da ciência. Na primeira metade do séc. XX a tradição dominante na epistemologia da ciência foi o empirismo lógico de Rudolf Carnap e Carl Hempel, que usaram as técnicas da lógica formal e da matemática para analisar a estrutura das teorias científicas e formular teorias da explicação e confirmação científicas (cf. P. H. Nidditch, org., The Philosophy of Science, Oxford Readings in Philosophy, 1968). No entanto, na década de 1960, essa abordagem baseada na lógica foi posta em causa pelo trabalho de orientação histórica de N. R. Hanson, T. S. Kuhn e Paul Feyerabend, que recorreram a estudos detalhados de casos da história da ciência para defender que as pressuposições do empirismo lógico estavam fatalmente condenadas ao fracasso (cf. Ian Hacking (org.)Scientific Revolutions, Oxford Readings in Philosophy, 1981).
Isso conduziu a uma cisão nos estudos sobre a teorização científica. Alguns filósofos continuaram a trabalhar na tradição de Carnap e Hempel, formalizando padrões ideais de raciocínio científico. Mas muitos se convenceram de que essa abordagem formal tinha pouca relação com a realidade da prática científica, e voltaram-se, ao invés, para a análise histórica, a fim de conseguir uma perspectiva iluminante sobre a estrutura da ciência. Um subproduto dessa viragem histórica foi que muitos filósofos, e mesmo muitos historiadores e sociólogos da ciência, ficaram céticos quanto à existência de quaisquer padrões objetivos da racionalidade científica, acabando por ver as escolhas teóricas como nada mais do que expressões de pressões sociais e institucionais.
Os ensaios desta coletânea, juntamente com muitos outros trabalhos recentes na epistemologia da ciência, ajudam a transpor esse hiato entre os empiristas lógicos e os historicistas. Os epistemólogos da ciência contemporâneos aprenderam com Kuhn, entre outros, que a ciência efetiva está menos ligada a regras do que os empiristas lógicos supunham, embora não concluam que careça completamente de racionalidade. Ou, pondo as coisas de outra forma, ainda que os epistemólogos da ciência contemporâneos mantenham o interesse dos empiristas lógicos pelas questões da objetividade científica, já não estão comprometidos com a abordagem ultraformal dos empiristas lógicos com respeito ao que a objetividade requer.

O realismo e suas antíteses

O debate mais recente na epistemologia da ciência centra-se na questão do realismo científico. As discussões sobre o realismo científico, no entanto, e particularmente no que diz respeito às alternativas ao realismo, estão cheias de confusões terminológicas. Alguma clarificação inicial será útil.
Suponha-se que consideramos que o realismo, para qualquer corpo de suposto conhecimento, científico ou não, envolve a conjunção das duas teses seguintes: 1) umatese da independência: o que confere verdade aos nossos juízos é um mundo que existe independentemente da nossa consciência dele; 2) uma tese do conhecimento: em geral, podemos saber que esses juízos são verdadeiros.
O realismo, definido deste modo, é ameaçado por uma tensão interna: se o mundo é independente da nossa consciência dele, como podemos obter conhecimento seguro dele? Várias soluções dessa tensão são possíveis. Os realistas procuram um meio de sustentar a tese do conhecimento e a tese da independência. Mas há duas alternativas tradicionais ao realismo, definidas pela rejeição de uma dessas teses. A tradiçãoidealista ou verificacionista abandona a tese da independência, argumentando que a própria noção de um mundo adicional, para lá do mundo tal como o percepcionamos, é incoerente. Os céticos, pelo contrário, abandonam a tese do conhecimento, e argumentam que não podemos conhecer a verdade sobre o mundo.
Na epistemologia contemporânea da ciência, o ceticismo é a principal alternativa ao realismo. Isso contrasta com a epistemologia do conhecimento cotidiano. Quando os filósofos atuais consideram o nosso conhecimento cotidiano de objetos como árvores e mesas, tomam como alternativa mais séria ao realismo uma versão de idealismo ou verificacionismo. Assim, por exemplo, os “fenomenistas” argumentam que é impossível que um conceito represente algo mais que um padrão de sensações, e que é uma confusão, portanto, pensar que os juízos humanos possam fazer referência a algo para lá do mundo tal com surge na percepção sensorial. Assim, os fenomenistas podem então argumentar que o conhecimento das árvores e mesas não é problemático, dado não haver dificuldade em conhecer as nossas próprias sensações.
É verdade, com certeza, que muitos livros introdutórios de epistemologia atuais discutem o ceticismo e o fenomenismo lado a lado, como alternativas ao realismo. Mas ninguém fora de uma aula de filosofia questiona seriamente o nosso conhecimento dos objetos físicos de tamanho médio, como as árvores e as mesas. Na epistemologia atual, os argumentos céticos sobre as árvores e as mesas voltam-se para as nossas suposições: uma vez que obviamente temos conhecimento de árvores e mesas, um argumento de que tal conhecimento é impossível nos desafia a encontrar a falha no nosso raciocínio.
O ceticismo na filosofia da ciência, pelo contrário, não é de modo algum apenas um exercício filosófico. Pois não é de todo óbvio que conheçamos as entidades postuladas pelas teorias científicas modernas, tal como as ondas gravitacionais ou os neutrinos. Afinal, nunca temos qualquer indício sensorial a favor dessas entidades. E o historial das teorias do passado que postularam entidades inobserváveis similares não é bom. Considerações como esta têm persuadido uma quantidade significativa de filósofos da ciência contemporâneos de que o conhecimento de tais entidades é na verdade insustentável.
O ceticismo nem sempre tem sido a principal alternativa a uma epistemologia da ciência realista. No passado, muitos filósofos da ciência, de J. S. Mill a Rudolf Carnap no Aufbau (1928), optaram por uma abordagem fenomenista do conteúdo das afirmações científicas, defendendo que é apropriado entender que termos como “massa,” “carga” e “força” representam complexos de circunstâncias observáveis. De fato, essa foi talvez a perspectiva dominante até o início do séc. XX. Mas o surgimento da microfísica, com o seu discurso sobre átomos e campos, tornou essa perspectiva problemática. As tentativas de Carnap de reduzir tal discurso teórico a afirmações observacionais enfrentaram obstáculos técnicos. Em todo caso, a perspectiva é contra-intuitiva. Uma coisa é sustentar que as afirmações sobre árvores são realmente afirmações sobre sensações. Mas é difícil considerar seriamente essa tese no que respeita a afirmações sobre objetos inobserváveis como elétrons.
Conseqüentemente, quase todos os filósofos da ciência contemporâneos aceitam que a ciência visa descrever literalmente um mundo inobservável de partículas microscópicas e ondas intangíveis. E uma quantidade significante tira a conclusão cética de que a ciência não pode ser bem-sucedida nesse objetivo: uma vez que o mundo que a ciência visa descrever está além do alcance da percepção humana, não temos razão para pensar que suas teorias são verdadeiras.
Estas questões podem ser obscurecidas pela terminologia. Os oponentes céticos contemporâneos do realismo científico denominam-se “instrumentalistas” ou “ficcionalistas” ou “empiristas construtivos,” e provavelmente objetariam ao epíteto “cético.” Ainda assim, e ao contrário dos primeiros filósofos da ciência fenomenistas, como Mill ou Carnap, todos esses filósofos da ciência contemporâneos aceitam que as teorias científicas visam retratar literalmente um mundo inobservável, e concluem que por essa razão seria um erro acreditar em quaisquer teorias científicas. Se esses filósofos diferem dos céticos comuns, é apenas por adicionar a essa rejeição da crença a idéia adicional de que as teorias científicas podem não obstante ser “instrumentos” ou “ficções” úteis para propósitos previsivos, e nesse aspecto podem ser “aceites” como instrumentos de trabalho.
Outra fonte de confusão terminológica é o termo “anti-realismo.” O termo foi primeiramente introduzido por Michael Dummett para descrever uma posição na tradição idealista-verificacionista. O “anti-realismo” de Dummett não visa construir o mundo fora das sensações, ao estilo do fenomenismo comum; mas, ainda assim, insiste, com a tradição idealista-verificacionista, que os nossos juízos não podem fazer referência a condições que estejam para lá das capacidades de verificação dos seres humanos. Por outro lado, os filósofos da ciência, principalmente nos Estados Unidos, têm usado o termo “anti-realismo” para se referir a perspectivas céticas, e em particular à atitude cética perante as teorias científicas que é a principal alternativa contemporânea ao realismo científico.
É claro que as pessoas podem definir os seus termos como desejarem, mas há aqui muito espaço para a má compreensão. Note-se que “anti-realismo,” no sentido de Dummett, contradiz diretamente o “anti-realismo,” no sentido dos filósofos da ciência americanos. O anti-realismo de Dummett, assim como a maior parte do idealismo e verificacionismo tradicionais, procura sustentar as nossas alegações de que temos conhecimento, argumentando que não se deve pensar que estas fazem referência a um mundo para lá do nosso alcance. Ao contrário disto, o anti-realismo americano quer rejeitar quaisquer alegações científicas de que conhecemos o mundo inobservável, baseando-se precisamente na idéia de que estas fazem referência a um mundo para lá da nossa capacidade. A única característica comum a estas duas perspectivas são suas rejeições da conjunção de 1 e 2 que usei anteriormente para definir o realismo. No entanto, onde o anti-realismo de Dummett sustenta a tese do conhecimento rejeitando a tese da independência, o anti-realismo americano faz exatamente o oposto.
Tabela 1
CETICISMO
(empirismo construtivo; ficcionalismo; instrumentalismo; anti-realismo americano)
REALISMOIDEALISMO
(verificacionismo; fenomenismo; anti-realismo de Dummett)
MUNDOIndependenteIndependenteDependente
CONHECIMENTONãoSimSim
Vários destes aspectos sobre o realismo científico estão em questão nos primeiros dois artigos desta coletânea. Arthur Fine (Cap. I) argumenta em favor de uma posição a que chama “atitude ontológica natural” (“AON”). Esta posição consiste naquilo que afirma serem truísmos sobre a ciência, comuns ao realismo e ao anti-realismo. Central entre esses truísmos, argumenta Fine, é a doutrina de que as teorias científicas bem confirmadas devem ser aceites como verdadeiras. Fine argumenta que o erro cometido tanto por realistas como por anti-realistas é adicionar teses metafísicas extravagantes sobre a natureza da verdade e da realidade ao núcleo simples de suas suposições compartilhadas.
Alan Musgrave (Cap. II) concorda com Fine que a AON é a atitude correta para a teorização científica. Mas objeta que a AON é em si um espécie de realismo, e não um núcleo que pode ser aceite por realistas e anti-realistas. Afinal, como Musgrave entende o termo, os anti-realistas não aceitam as teorias científicas bem confirmadas como verdadeiras. Musgrave cita Bas van Fraassen e Larry Laudan como dois proeminentes anti-realistas contemporâneos que são bastante explícitos nas suas insistências de que é um erro acreditar na verdade de qualquer teoria científica sobre a estrutura subjacente do mundo inobservável.
Além do mais, argumenta Musgrave, não há razão pela qual um realista, tal como ele o entende, deva adicionar qualquer metafísica duvidosa à aceitação da AON das teorias como verdadeiras. É o bastante para o realismo científico, no sentido de Musgrave, que devemos aceitar que a ciência nos diz a verdade sobre o mundo inobservável. Perspectivas metafísicas adicionais sobre a natureza da verdade e da realidade são adições desnecessárias a essa posição realista.
Essa aparente disputa entre Fine e Musgrave é, em grande parte, simplesmente o resultado de darem atenção a debates diferentes. Fine não está interessado na opção cética, mas, ao invés, está pensando na disputa entre o realismo e o anti-realismo no sentido de Dummett — isto é, do quão distinto o mundo em si pode ser do modo como aparece aos seres humanos. É sobre essa questão que a AON é neutra. Fine pensa que tanto o realista, que insiste que o que confere verdade aos nossos juízos é um mundo de fatos independentes da verificação, quanto o anti-realista ao estilo de Dummett, que o nega, estão fazendo fortes afirmações metafísicas que os filósofos da ciência sóbrios deveriam por bem evitar.
Musgrave concorda de bom grado, mas pensa que a AON de Fine é em si uma forma de realismo. Isso porque está primariamente interessado no ceticismo como alternativa ao realismo científico. Desse ponto de vista, a AON de Fine e as duas perspectivas que medeia podem muito bem serem consideras versões de realismo, uma vez que todas sustentam, contra o ceticismo, que devemos aceitar como verdadeiras as melhores teorias científicas sobre inobserváveis.
Em termos da Tabela 1, podemos dizer que Fine se preocupa apenas com as duas colunas da direita, e deseja sustentar que deveríamos adotar apenas aqueles truísmos que forem comuns a ambas. Musgrave, por outro lado, está interessado na disputa entre a coluna da esquerda e as duas da direita (embora concorde com Fine em favorecer o núcleo comum das colunas da direita e da esquerda).1
Uma lição óbvia desse par de artigos é que os leitores devem ter cuidado com a terminologia. “Realismo” e “anti-realismo” são apenas dois exemplos. Vários termos relacionados, incluindo “empirista,” “positivista,” “pragmatista” e “instrumentalista” variam de significado quando usados por filósofos diferentes. Os leitores cuidadosos dos artigos nesta coletânea notarão como os autores introduzem esses termos e atentarão para quaisquer outras indicações de significados que lhes forem atribuídos.

A subdeterminação da teoria pelos indícios

Um desafio central ao realismo científico advém da subdeterminação da teoria pelos indícios observacionais. Suponha-se que duas teorias T1 e T2 são empiricamente equivalentes, no sentido de fazerem as mesmas previsões observacionais. Deste modo, nenhum corpo de indícios observacionais será capaz de decidir conclusivamente entre T1 e T2.
Note-se que o problema com tais teorias não é apenas que T1 e T2 está subdeterminada pelos indícios atuais. Se os indícios atuais falham ao decidir entre duas teorias, então a resposta óbvia é suspender a crença por enquanto, e procurar experiências científicas que decidirão entre elas. Mas com teorias cuja equivalência empírica seja genuína essa opção não está disponível. Se todas as previsões observacionais de T1 e T2 são idênticas, então não há experiência científica alguma que possa eliminar uma em detrimento da outra.
A tese da subdeterminação da teoria pelos indícios afirma que sempre seremos confrontados com teorias empiricamente equivalentes, por mais indícios que tenhamos acumulado. Há dois argumentos persuasivos a favor dessa tese. Um tem origem na chamada tese de Duhem-Quine, que afirma que qualquer teoria pode reter as suas suposições centrais face a quaisquer indícios anômalos, fazendo-se ajustes para salvar as suposições centrais. Suponha-se que começamos com duas teorias rivais T1 e T2 e olhamos para os indícios futuros para decidir entre elas, como se sugeriu no parágrafo anterior. Dado a tese de Duhem-Quine, segue-se que, mesmo após qualquer quantidade de indícios futuros, ainda teremos duas teorias, T'1 e T'2, derivadas do par original pelas revisões sucessivas ocasionadas pelos indícios, e que esses indícios não permitem decidir entre elas.
Um argumento mais direto a favor da existência inevitável de teorias empiricamente equivalentes começa com determinada T1, e mostra então que podemos sempre obter uma T2 diferente que faz exatamente as mesmas previsões. A versão mais simples dessa estratégia considerará simplesmente T2 que faz todas as afirmações observacionais feitas por T1, negando contudo a existência de quaisquer mecanismos inobserváveis postulados por T1. As versões mais interessantes do argumento não eliminam apenas os mecanismos inobserváveis postulados por T1; substitui-los por estruturas “autocorretivas” concebidas para produzir exatamente as mesmas aparências observacionais. (Por exemplo, se T1 é uma teoria dinâmica, faça-se de T2 a teoria que o universo está se acelerando ao ritmo de um pé por segundo quadrado numa determinada direção, e adicione-se uma força universal agindo sobre todos os corpos para produzir essa aceleração. O resultado será que T1 e T2 prevêem exatamente os mesmos movimentos relativos observáveis.)
O artigo de Lawrence Sklar (Cap. III) trata as questões levantadas pela subdeterminação da teoria pelos indícios. Sklar sente-se inicialmente atraído pela idéia de que, em qualquer par de teorias empiricamente equivalentes, cada uma é apenas, na verdade, uma variante notacional da outra — uma mesma teoria formulada por palavras diferentes, como o Principia de Newton escrito em latim e em inglês. Mas reconhece que esta posição carece de plausibilidade. Trata-se, com efeito, de uma versão da velha perspectiva fenomenista das teorias científicas (a perspectiva “positivista” para Sklar), de acordo com a qual as afirmações sobre as entidades aparentemente inobserváveis, como os elétrons, são na verdade afirmações sobre fenômenos observáveis: pois note-se que as teorias empiricamente equivalentes serão automaticamente variantes notacionais somente se for impossível dar significado (permitindo, portanto, que possam ser contraditas) às afirmações sobre qualquer realidade por trás das aparências observáveis.
O artigo de Sklar trata de explorar as opções deixadas em aberto depois de se aceitar a subdeterminação da teoria pelos indícios (apesar de, no final, ele duvidar que quaisquer dessas teorias sejam aceitáveis). Uma opção é adotar o ceticismo, pela razão de que nunca devemos acreditar em qualquer teoria caso nenhum indício empírico possa eliminar conclusivamente as suas alternativas empiricamente equivalentes. Outra é procurar por meios de se discriminar entre teorias empiricamente equivalentes, argumentando que mesmo quando várias teorias fazem as mesmas previsões observacionais, a crença numa pode ser mais adequada do que a crença nas outras.
O artigo de Bas van Fraassen (Cap. IV) adota a primeira opção. De acordo com o “empirismo construtivo” de van Fraassen (que é elaborado em maior detalhe em van Fraassen 1980), nunca devemos acreditar em qualquer teoria que vá além dos fenômenos observáveis. No máximo, devemos acreditar que a teoria é “empiricamente adequada” — isto é, que é correta no que diz respeito à parte observável do mundo. A maior parte do artigo de van Fraassen trata de mostrar que essa noção de adequação empírica, e a distinção associada entre observável e inobservável, se explica melhor na abordagem “semântica” das teorias científicas, que identifica as teorias com conjuntos de modelos, ao invés da abordagem “sintática” mais tradicional das teorias como conjunto de frases. (Em conexão com a distinção observável-inobservável, é importante observar que um cético como van Fraassen exige muito menos da distinção observável-inobservável do que um fenomenista como Mill ou Carnap: pois, onde os fenomenistas sustentam que não podemos dizer algo dotado de significadosobre os inobserváveis, o cético científico sustenta apenas que seres com as nossas capacidades perceptuais limitadas não devem acreditar em quaisquer afirmações sobre inobserváveis.)
A resposta não cética alternativa à subdeterminação é argumentar que podemos ter bases para acreditar numa teoria em detrimento de outras de um conjunto de teorias empiricamente equivalentes. À primeira vista isto poderá parecer pouco prometedor. Se nada do que observamos pode afastar as teorias alternativas, então como podemos ter justificação para selecionar uma para ser objeto de crença? Mas isto impõe sub-repticiamente um padrão muito alto para a crença justificada. Pressupõe que nos é permitido crer apenas nas conseqüências lógicas das nossas observações (já que passa imediatamente da existência de teorias alternativas consistentes com nossas observações para a inadmissibilidade da crença em qualquer teoria). Esta é, no entanto, uma exigência irrazoavelmente forte de crença justificada. E nem é uma exigência que a maioria dos céticos científicos contemporâneos desejaria impor. Pois implicaria (como van Fraassen fez notar no fim do seu artigo) que nem mesmo estamos autorizados a acreditar na adequação empírica de uma teoria, uma vez que isso em si requer que demos um salto indutivo para lá das conseqüências lógicas do nosso conjunto finito de dados observacionais.
Assim, talvez haja espaço para uma resposta não cética à subdeterminação. A idéia, grosso modo, seria que, dentre as teorias empiricamente equivalentes consistentes com os nossos dados observacionais, algumas são melhores explicações que as outras em virtude da sua maior simplicidade ou elegância ou poder unificador, e que essas virtudes são indicações de que aquelas teorias são verdadeiras. (Compare-se o modo pelo qual nos restringimos a generalizações “projetáveis” ao fazer induções enumerativas simples de dados finitos de nível observacional.)
Uma preferência pela “melhor explicação” certamente parece fazer parte da prática científica. Como vimos, há sempre equivalentes empíricos para qualquer teoria, baseados ou nos mecanismos de “autocorreção” ou na rejeição total dos mecanismos inobserváveis. Mas poucos cientistas praticantes considerariam a existência de tais alternativas desajeitadas uma boa razão para desacreditar as teorias normais. Dado que as explicações dos dados observáveis fornecidos por teorias normais são de longe mais elegantes, os cientistas geralmente se contentam em considerar que as teorias normais são verdadeiras.
Contudo, ainda que a “inferência a favor da melhor explicação” seja parte da prática científica intuitiva, ela não é necessariamente uma boa forma de inferência. Os filósofos da ciência céticos argumentarão que os cientistas extraviam-se sempre que se comprometem com a verdade das suas melhores explicações. Uma objeção óbvia à inferência a favor da melhor explicação é considerada no artigo de Peter Lipton “Is the Best Good Enough?” (Cap. V). Suponha-se que aceitamos que os cientistas comumente fazem juízos comparativos precisos quando julgam que a teoria T1 é provavelmente mais verdadeira do que T2, ..., Tn. Só por si, isto não garantirá que tenham chegado à verdade, pois pode haver ainda mais teorias nas quais nem pensaram. Seria ingênuo inferir que a “melhor” explicação é a verdadeira, se é apenas a melhor entre as que foram consideradas até agora. No século XVII, a teoria de Newton era de longe a melhor explicação disponível do movimento gravitacional. Mas isso se deu porque ninguém ainda tinha sido capaz de formular a relatividade geral.
Em resposta a este argumento, Lipton sugere que às vezes é possível usar juízos científicos comparativos para chegar às exigências absolutas que faz o realismo científico. Pois podemos sempre assegurar que o nosso levantamento das opções teóricas será exaustivo, incluindo Tn+1 como uma alternativa universal, a negação de todas as teorias T1, ..., Tn cogitadas até agora. De fato, os cientistas às vezes julgarão, quando fizerem isso, que Tn+1 é mais provavelmente verdadeira — isto é, que a teoria verdadeira muito provavelmente está entre as que ainda não cogitaram. Mas noutros casos colocarão Tn+1 abaixo das teorias que já cogitaram, e concluirão, portanto, que a “melhor” teoria deles é absolutamente a mais provavelmente verdadeira.

A metaindução pessimista a partir da falsidade do passado

O artigo de Lipton defende, pois, a inferência a favor da melhor explicação (de todas as possíveis) contra uma possível objeção. No entanto, as questões subjacentes quanto ao estatuto filosófico desse tipo de inferência permanecem. Note-se que Lipton começa com a suposição de que os cientistas podem pelo menos produzir juízoscomparativos sólidos de verossimilhança. Mas os céticos não precisam aceitar isto. Os céticos podem, geralmente, invocar a subdeterminação da teoria pelos indícios para questionar qualquer conexão entre a excelência explicativa (simplicidade, elegância, poder unificador) e a verdade. Se há sempre teorias alternativas consistentes com os indícios, que garantia poderia haver de que a teoria mais explicativa será geralmente a verdadeira?
Esse desafio cético levanta várias questões filosóficas delicadas sobre a verdade, a racionalidade e o fardo da prova, aos quais retornarei na próxima seção. Mas primeiro vou considerar um argumento muito mais simples contra a inferência da verdade com base na melhor explicação. Este argumento não invoca sutilezas da subdeterminação, mas sim indícios empíricos diretos de malogros teóricos do passado. Se examinarmos os casos onde os cientistas adotaram as suas melhores explicações como verdadeiras, essas explicações normalmente se tornaram falsas: considere-se, por exemplo, a astronomia ptolomaica, a teoria calórica do calor, a teoria do éter do eletromagnetismo, e assim por diante. Dado este pequeno histórico de melhores explicações, não deveríamos concluir que a inferência a favor da melhor explicação nos conduzirá, em geral, a falsidades, ao invés de verdades?
Esta “metaindução pessimista a partir da falsidade do passado” está subjacente a “A Confutation of Covergente Realism” de Larry Laudan (Cap. VI). Laudan ataca o argumento segundo o qual se alguma teoria científica for “bem-sucedida,” no sentido de gerar previsões confirmadas através de uma diversidade de contextos, então a melhor de todas as explicações possíveis desse sucesso é a verdade da teoria (“Seria um milagre se tudo funcionasse como a teoria previra, e ainda assim a teoria fosse falsa”). Examinou uma ampla gama de teorias que defensavelmente foram bem-sucedidas neste sentido, e mostrou que tal sucesso normalmente não é explicado pela verdade da teoria envolvida. Pois quase todas essas teorias — Laudan fornece uma lista histórica bastante grande — foram posteriormente consideradas falsas.
Uma possível resposta realista (antecipada por Laudan) é argumentar apenas a favor da verdade aproximada das teorias bem-sucedidas, ao invés de sua verdade irrestrita. As teorias bem-sucedidas no que diz respeito à previsão não são, sem dúvida, sempre verdadeiras em todos os detalhes precisos. Mas talvez possam ainda ser consideradaspróximas da verdade, e em geral mais próximas da verdade do que as suas predecessoras.
Uma objeção a esta manobra é que a noção de “verdade aproximada” é extremamente difícil de articular claramente. Uma tradição persistente de pesquisa da noção de “verossimilhança” (veja-se a bibliografia no final deste volume) tem tornado claro que não pode haver uma maneira independente dos nossos interesses de medir a distância entre uma teoria e a verdade. No entanto, afora essa dificuldade técnica, há uma objeção mais óbvia ao apelo realista à verdade aproximada: a saber, que a maioria das teorias do passado que foram bem-sucedidas quanto à previsão não estão nem sequer próximas da verdade, de acordo com qualquer leitura intuitivamente plausível de “verdade aproximada.” A objeção de Laudan ao realismo não é apenas que as teorias do passado se mostraram erradas no que respeita aos detalhes. É, ao invés, que tendem a estar radicalmente em desacordo com a verdade, comprometendo-se com uma gama de entidades explicativas (como esferas cristalinas, ou fluído calórico, ou o éter) que não têm quaisquer contrapartes na realidade.
John Worrall (Cap. VII) explora uma resposta realista diferente ao argumento de Laudan. Concede que teorias do passado que foram mais bem-sucedidas em termos de previsão contêm comumente erros fundamentais. Mas argumenta que isso não exige uma rejeição completa de todas as afirmações científicas sobre os mecanismos inobserváveis por detrás das previsões observáveis. Na perspectiva de Worrall, as lições da história têm implicações diferentes com respeito a componentes diferentes nas teorias científicas. Mais especificamente, argumenta que a história mostra que as teorias do passado estão caracteristicamente erradas sobre a natureza do reino observável, mas não sobre a estrutura do seu comportamento. No seu exemplo central, Worrall argumenta que os cientistas do séc. XIX estavam enganados ao crer que a radiação eletromagnética estava incorporada num “éter,” mas completamente corretos sobre as equações matemáticas que regem o eletromagnetismo. Worrall tira a lição geral de que devemos acreditar na estrutura da realidade inobservável postuladas pelas teorias bem-sucedidas, mas evitar nos comprometermos com quaisquer afirmações sobre a natureza dessa realidade.
A estratégia geral exemplificada pelo artigo de Worrall parece oferecer a melhor esperança para o realismo. Frente aos malogros teóricos do passado, os realistas precisam mostrar que algumas partes das teorias malogradas se mostraram melhor do que outras. Se puderem, portanto, identificar alguma diferença de princípio entre as partes boas e as más, podem recomendar as partes boas das teorias atuais.
Resta saber, contudo, se é um truque o modo específico, proposto por Worrall, de traçar a distinção. Alguns filósofos da ciência argumentariam que, uma vez que o nosso acesso intelectual às entidades inobserváveis é sempre mediado por uma estrutura de suposições teóricas, não sendo uma intuição direta da sua natureza, a restrição proposta por Worrall de crer apenas nas afirmações estruturais não é de fato uma restrição (cf. Psillos 1995). Se isto estiver correto, então os realistas precisam encontrar outro meio qualquer melhor para distinguir as partes das teorias que provavelmente têm de ser desacreditadas das partes que são dignas de crença.

Verdade e racionalidade

Suponhamos que o realismo possa ser bem-sucedido em bloquear a metaindução pessimista de algum modo. Os realistas, portanto, não adotarão as nossas teorias atuais in toto como a melhor explicação do sucesso previsivo, mas apenas aquelas partes cujos indícios da história indicam ser genuinamente responsável por tal sucesso.
No entanto, o realismo ainda precisa lidar como outro desafio cético mencionado anteriormente. Ao inferir a melhor explicação do sucesso previsivo, os realistas supõem que a melhor explicação (a mais simples, a mais elegante, a mais unificadora) é provavelmente a verdadeira. Os céticos põem em causa essa suposição evidenciando que há sempre mais de uma explicação inobservável consistente qualquer corpo de indícios observacionais. Uma vez que não temos acesso independente ao reino inobservável, como poderíamos saber que a “melhor” explicação é geralmente a explicação verdadeira?
Há duas respostas possíveis a este desafio, que correspondem às colunas do meio e da direita da Tabela 1. Ambas são realistas no sentido de Musgrave, rejeitando o ceticismo e sustentado a crença nas teorias científicas. Mas no sentido de Dummett (e de Fine), uma é realista e a outra anti-realista, uma vez que discordam sobre se a verdade envolve a conformidade a uma realidade independente. A opção anti-realista dummettiana está ilustrada no artigo de Brian Ellis (Cap. VIII). Se pensarmos na verdade como correspondência a uma realidade independente, argumenta Ellis, então não há alternativa ao ceticismo de van Fraassen, pois não há modo de se estabelecer que as teorias com virtudes explicativas são geralmente verdadeiras. No entanto, esse hiato entre a excelência explicativa e a verdade pode ser ultrapassado, sublinha Ellis, se considerarmos que a verdade é, por definição, a perspectiva que devemos sustentar racionalmente, dados todos os indícios observáveis possíveis. Pois se é uma norma da racionalidade que devemos acreditar na mais explicativa (simples, elegante, unificadora) dentre as teorias subdeterminadas, então a melhor delas (dados todos os indícios) será por definição uma teoria verdadeira.
A posição de Ellis, que ele caracteriza como “realismo interno,” depende da sua abordagem “pragmática” da verdade como o que quer que seja justificável por normas racionais. Ellis, de fato, considera que as normas racionais são dadas a priori, e então define a verdade em termos dessas normas. A posição resultante é um anti-realismo no sentido de Dummett. Esta não faz os juízos alcançarem a verdade através do reino das sensações, ao estilo do anti-realismo fenomenista tradicional, mas nega que os juízos façam referência a algo independente das normas racionais do pensamento humano.
A abordagem pragmática da verdade proposta por Ellis não é de maneira alguma incontroversa. Note-se que não é um argumento a favor dela a idéia de que ofereceria uma resposta ao desafio cético. (Analogamente, que poderíamos ter conhecimento de árvores caso estas fossem apenas padrões de percepções, não é uma boa razão para pensar que as árvores são padrões de percepções.) Muitos filósofos preferem uma perspectiva alternativa, a de que a verdade deveria ser definida como conformidade a uma realidade independente, ao invés de em termos de normas da racionalidade humana.
Seria um desvio discutir aqui a análise do conceito de verdade propriamente dita. Consideraremos, ao invés, se a perspectiva não pragmática da verdade tem qualquer resposta ao desafio cético. Ellis diz que se a verdade for conformidade a uma realidade independente, então não há modo de se conectar a verdade e a virtude explicativa. Mas isto é demasiado apressado. Uma abordagem não pragmática da verdade não fornecerá qualquer conexão conceitual entre verdade e virtude explicativa, uma vez que não define a verdade em termos de virtude explicativa. Mas deixa em aberto, contudo, a possibilidade de uma conexão empírica entre virtude explicativa e verdade. Se tal conexão empírica pudesse ser defendida, então isso ofereceria um modo diferente de defender as inferências a favor da melhor explicação, contra o desafio cético.
A segunda contribuição de Larry Laudan a esse volume (Cap. IX) aponta para essa possibilidade. Laudan não está preocupado em defender o realismo contra o ceticismo. Mas mostra como os princípios da escolha de teorias científicas, assim como a inferência a favor da melhor explicação, poderiam ser justificados por generalizações empíricas que conectam as virtudes teóricas com as metas da ciência.
O ponto de partida de Laudan é um velho debate sobre a relevância da história para a filosofia da ciência. A “viragem histórica” instigada por Hanson, Kuhn e Feyerabend na década de 1960 conduziu os filósofos da ciência a testar propostas metodológicas contra os indícios empíricos da história da ciência. Caso se pudesse mostrar que Newton violou a metodologia de Carnap, digamos, considerar-se-ia, então, que isso contaria contra a metodologia deste último. No entanto, a lógica desse tipo de argumento é obscura. Por que razão os preceitos do metodólogo se devem adequar aos fatos empíricos da prática de Newton? Como Laudan observa, ainda que aceitemos que Newton seja membro da elite científica, não precisamos também aceitar que todos os aspectos de sua prática sejam metodologicamente exemplares.
Laudan oferece uma explicação diferente da relevância dos indícios históricos para a metodologia. Suponha-se que distinguimos os objetivos da ciência dos meios da prática científica. Os objetivos podem incluir encontrar teorias verdadeiras, ou teorias confiáveis no que respeita à previsão, ou teorias que oferecem provas da existência de Deus. Dado determinado fim x, a prática de se escolher entre teorias que exibem uma certa virtude y pode ser vista como um meio para esse fim. Isso sugere que os principio metodológicos têm a forma de imperativos hipotéticos, especificando um meio para um fim. Desse modo, podem ser avaliados em termos empíricos, como todas as recomendações meios-fim similares: os indícios empíricos mostram que y é de fato um meio eficaz para x? Mais especificamente, no presente contexto, o registro histórico mostra que as teorias com a característica y são uma rota melhor para se chegar a x? Do ponto de vista de Laudan, a prática de Newton é metodologicamente relevante não por causa do estatuto especial de Newton, mas simplesmente porque fornece casos que poderiam ajudar a mostrar se escolher y geralmente conduz a x.
Embora Laudan deixe a questão em aberto nesse segundo artigo, não pensa de fato que a verdade (enquanto algo que se opõe à fiabilidade previsiva, digamos) seja um objetivo sensato para a ciência. Uma vez que defende a metaindução pessimista, Laudan pensa que os indícios históricos demonstram quão ineficazes são quaisquer meios metodológicos usados pelos cientistas para tentar chegar à verdade (cf. Laudan 1984: 137).
No entanto, se formos capazes de bloquear a metaindução pessimista delineada na última seção, então talvez possamos pôr ao serviço do realismo a perspectiva meios-fim da racionalidade científica proposta por Laudan. Talvez os indícios históricos relevantes permitam mostrar que certas estratégias metodológicas são rotas eficazes para chegar a teorias verdadeiras. Uma metodologia deste tipo para a ciência teria afinidades com a tradição fiabilista da epistemologia atual, que sustenta que uma crença se admite como conhecimento se for produzida por um método fiável — isto é, por um método que, por uma questão de fato empírico, geralmente produz crenças verdadeiras. Esta tradição, na verdade, inverte a abordagem exemplificada por Ellis: ao invés de definir a verdade em termos de normas a priori, identifica a metodologia racionalmente correta como aquela que, por uma questão de fato empírico, fornece uma rota eficaz para a verdade.
Richard Boyd desenvolveu esta abordagem para a filosofia da ciência numa série de artigos nas últimas décadas do séc. XX. Boyd oferece um argumento empírico a favor da fiabilidade dos métodos da ciência moderna: a saber, que a única boa explicação para o sucesso previsivo da ciência é que a ciência moderna em geral fornece uma rota eficaz para a verdade (aproximada). Mostra que os procedimentos pelos quais os cientistas desenvolvem e testam novas teorias se baseiam comumente em suposições de fundo fornecidas por teorias já estabelecidas. Boyd sustenta que esses procedimentos para desenvolver novas teorias raramente poderiam produzir sucesso previsivo a menos que essas teorias fossem em grande parte verdadeiras (Lipton, este volume, p. 100).
No artigo reimpresso aqui (Cap. X), Boyd explica como este argumento pode resistir às aparentes implicações céticas da metaindução pessimista. Conclui o artigo respondendo à acusação de que sua posição é circular. Note-se que Boyd parte de indícios empíricos de que a ciência é previsivamente bem-sucedida e conclui, via inferência a favor da melhor explicação, que o método científico moderno é uma rota eficaz para a verdade. Mas a legitimidade desse tipo de inferência é precisamente aquilo que os seus oponentes céticos negam. O desafio original do cético era quanto à legitimidade das inferências de primeira ordem a favor da melhor explicação, como a inferência de que a teoria atômica da matéria é necessária a fim de explicar os dados das experiências químicas. Na realidade, Boyd agora está respondendo a este desafio cético com uma metainferência da mesma forma: a melhor explicação do sucesso previsivo geral da ciência é que a ciência moderna geralmente chega à verdade. Os oponentes de Boyd não tardaram em objetar que isso pressupõe o que quer estabelecer. Afinal, se eles não aceitam que a teoria atômica da matéria seja necessária para explicar os dados químicos, por que deveríamos aceitar que a verdade da ciência seja necessária para explicar seu sucesso previsivo? (Cf. Fine, este volume, pp. 24-25; Laudan, este volume, pp. 133-135).
A resposta de Boyd é que essa última inferência não pode ser considerada isoladamente, mas como parte de um “pacote realista” completo. Esse pacote deve ser comparado totalmente com as alternativas completas. Se o pacote realista for mais defensável do que as alternativas, então afasta-se o ataque de circularidade. Os realistas da estirpe de Boyd consideram que têm uma resposta ao desafio cético quanto à conexão entre a virtude explicativa e a verdade. Afirmam que o sucesso previsivo da ciência é um bom indício empírico para essa conexão. Na verdade, é um bom indício apenas do ponto de vista realista. Mas se se puder mostrar por razões puramente filosóficas que o realismo está correto, então esse é o ponto de vista correto.
Filósofos com Laudan e Boyd defendem uma filosofia naturalizada da ciência. Ao invés de procurar identificar os princípios da racionalidade científica numa base a priori, procuram informação empírica sobre a eficácia de diferentes práticas científicas para decidir a metodologia correta para a ciência. Vale a pena observar que um importante subproduto dessa “viragem naturalista” é a expectativa de uma reconciliação ente filósofos e sociólogos da ciência.
As últimas décadas do séc. XX foram marcadas por uma explosão de trabalhos entusiasmantes na sociologia da ciência. Tradicionalmente, os sociólogos da ciência se contentavam em estudar os aspectos externos da ciência, como o desenvolvimento das instituições científicas, ou a estrutura da educação científica. Mas o trabalho sociológico recente tem se voltado para o interior da teorização científica em si, e visa mostrar como as influências e interações sociais desempenham um papel decisivo na solução de debates teóricos específicos.
Tem-se considerado muitas vezes que este tipo de sociologia debilita qualquer análise epistemológica da ciência, pela razão de que a epistemologia lida com padrões a priori de racionalidade, ao passo que os estudos sociológicos parecem mostrar que as escolhas das teorias científicas não se regem de modo algum desse modo, mas antes por lutas de poder científico e manobras artificiosas.
Essa rejeição da epistemologia pressupõe, no entanto, que a epistemologia lida somente com princípios a priori da avaliação teórica. Mas, pelo contrário, se a epistemologia da ciência for conduzida de maneira naturalista, então o conflito desaparece. Os filósofos da ciência naturalizados não se interessam por princípios metodológicos a priori sobre processos sociais. Podem felizmente aceitar que as escolhas teóricas são geralmente determinadas por processo sociais. A única questão normativa que quererão saber, portanto, é se esses processos são meios eficazes para os objetivos científicos. E essa nem é uma questão que possam responder por si mesmos. Pois é uma questão empírica, e não uma questão a priori, e, portanto, os filósofos da ciência precisaram da ajuda dos sociólogos e historiadores da ciência para lhe responder. (Para leitura adicional sobre esta questão, veja-se as seções sobre a epistemologia naturalizada da ciência e sobre a sociologia da ciência na bibliografia selecionada no fim deste volume).

Teoria da confirmação e bayesianismo

Está a tornar-se cada vez mais comum discutir as questões da epistemologia da ciência no enquadramento da teoria bayesiana da confirmação. A teoria da confirmação procura quantificar questões de crença teórica. Ao invés de simplesmente perguntar se devemos acreditar numa teoria T dados os indícios E, na teoria da confirmação pergunta-se o quanto deveríamos acreditar numa teoria T dados os indícios E.
Os defensores da teoria bayesiana da confirmação argumentam que tais questões se formulam melhor como questões sobre probabilidades subjetivas. Suponha-se que atribuímos uma probabilidade subjetiva Prob (H) a uma hipótese H, e uma probabilidade condicional da Prob (H/I) a H sob a suposição de que o indício I é verdadeiro. Então, I confirmará H caso a sua probabilidade Prob (H/E) seja maior que a sua Prob (H) inicial. De modo semelhante, ao observar I, devemos acrescentar a probabilidade de H à anterior Prob (H/I).
Um teorema simples do cálculo de probabilidades (“o teorema de Bayes”) estabelece que a Prob (H/I) = Prob (I/H)/Prob (I) x Prob (H). Isto significa para os bayesianos que I confirma H — isto é, a Prob (H/I) é maior do que a Prob (H) — se a Prob (I/H) for maior que a Prob (I).
Isto é intuitivo. Se os indícios I são em si surpreendentes (se a Prob (I) é baixa), embora seja o que se esperava caso a hipótese H fosse verdadeira (a Prob (I/H) é alta), então I é com certeza um bom apoio para H. O aparente desvio da luz próximo ao Sol é em si um fato surpreendente, mas é o que foi previsto pela teoria da relatividade. A sua observação em 1919, portanto, forneceu um forte apoio à teoria de Einstein.
Nem todos os filósofos que trabalham na teoria da confirmação são bayesianos. Clark Glymour, por exemplo, desenvolveu uma abordagem alternativa da confirmação (abordagem de “arranque”) em Theory and Evidence (1980). No capítulo reimpresso neste volume (Cap. XII), no entanto, ele se concentra nas críticas à teoria bayesiana. Glymour explica primeiro a estrutura básica da abordagem bayesiana (e em particular o “argumento do livro do holandês” a favor da suposição de que os graus de crença são uma espécie de probabilidade), e então aponta várias deficiências.
Para Glymour, a falha central do bayesianismo é a subjetividade das suas probabilidades. O bayesianismo não impõe limites substanciais nas probabilidades que entram nas relações de confirmação, exceto nas que refletem os graus efetivos de crença. Quão provável é H, ou I, ou I dado H? Para o bayesiano, estas perguntas sobre as atitudes subjetivas dos indivíduos.
Glymour argumenta que isto dá uma plausibilidade espúria ao bayesianismo. Uma vez que o bayesianismo per se não restringe as probabilidades que entram nas relações de confirmação, pode sempre postular como “razoáveis” quaisquer probabilidades de que possa precisar para reproduzir formas comuns de raciocínio científico. Glymour objeta que isso não explica o mérito dessas formas de raciocínio (afinal, o mesmo truque poderia reproduzir quaisquer outras formas de raciocínio). Também critica as tentativas dos bayesianos de identificar princípios adicionais a priori que rejam os graus razoáveis de crença.
“Rationality and Objectivity in Science or Tom Kuhn Meets Tom Bayes” (Cap. XI), de Wesley Salmon, oferece uma resposta naturalista à objeção de que as probabilidades bayesianas são arbitrárias. Em vez de procurar princípios a priori que rejam as probabilidades subjetivas razoáveis, Salmon sugere que devemos olhar para a histórica da ciência para que esta nos diga quais são as freqüências empíricas em que hipóteses de vários tipos se revelaram bem-sucedidas.
Salmon argumenta que esta manobra pode fazer uma reconciliação entre a tradição formalista de Carnap e Hempel e a abordagem historicista incitada por The Structure of Scientific Revolutions (1962) de Thomas Kuhn. Kuhn argumenta que os juízos de plausibilidade dos cientistas desempenham um papel crucial na decisão das suas atitudes para com a hipótese. Muitos dos seguidores de Kuhn (mas não o próprio Kuhn) inferiram que os juízos científicos são, por isso, arbitrários. Salmon sugere que esta acusação de arbitrariedade se rebate melhor entendendo tais juízos de plausibilidade como probabilidades bayesianas, fundamentando depois essas probabilidades nas freqüências empíricas em que as hipóteses do tipo em questão se revelaram bem-sucedidas.
É importante observar que Salmon está vulnerável ao ataque de circularidade análogo ao que foi dirigido contra Boyd. Do mesmo modo como Boyd apelou aos indícios empíricos acerca da prática científica para defender a preferência dos cientistas por certos tipos de explicação, Salmon também apela para indícios similares para defender o uso do raciocínio bayesiano. E assim como a defesa de Boyd foi um caso especial do tipo de inferência que este estava tentando defender, a inferência de Salmon que parte dos indícios empíricos para chegar à conclusão sobre probabilidades também pode ser vista como um caso especial de raciocínio bayesiano. Seria um exercício interessante considerar se a réplica de Boyd a esse ataque de circularidade funcionará para um bayesiano objetivista como Salmon.

São as teorias importantes?

A maioria dos artigos nesta coletânea dizem respeito à verdade, ou sua ausência, das teorias científicas. No entanto, alguns filósofos da ciência contemporâneos argumentaram que este não é necessariamente o ponto crucial dos debates sobre o realismo científico. Nancy Cartwright, em How the Laws of Physics Lie (1983), e Ian Hacking em Representing and Intervening (1983), elaboraram uma posição que denominaram “realismo da entidade” opondo-se ao “realismo da teoria.”
Esta perspectiva reconhece que as ciências físicas modernas são responsáveis por diversos efeitos físicos notáveis, dos lasers e fibras óticas aos microscópios eletrônicos e aos supercondutores. Nega, no entanto, que esses efeitos físicos forneçam bases convincentes para uma teoria física fundamental. Cartwright argumenta que as “derivações” comuns desses efeitos a partir de uma teoria fundamental são mediadas por suposições ad hoc, por atalhos matemáticos e improvisações. Uma vez que a teoria fundamental não fornece em geral qualquer motivação a favor desses artifícios, a derivação não fornece qualquer base indutiva a favor da teoria fundamental. Na verdade, a teoria básica não desempenha qualquer papel nas derivações, por comparação com as simplificações, argumenta Cartwright, e por isso não merece crédito.
No entanto, isto não implica a inexistência de partículas subatômicas ou outras entidades inobserváveis envolvidas nos efeitos físicos relevantes. Para Hacking e Cartwright, o sucesso das nossas tentativas em manipular essas entidades é testemunha profusa da sua existência. Se essas entidades não fossem reais, não poderíamos usá-las para produzir efeitos físicos. Hacking resume a perspectiva na sua conhecida divisa “se as pudemos pulverizar, existem.”
O realismo da entidade apresenta uma alternativa interessante ao realismo ortodoxo, baseado na teoria. Mas enfrenta alguns desafios óbvios. Para começar, é possível duvidar da afirmação de Cartwright de que a teoria física fundamental é na verdade redundante na análise matemática dos efeitos físicos. As simplificações certamente desempenham um papel importante em tal análise. Mas muitas das simplificações são guiadas por considerações teóricas, e, portanto, defensavelmente, contribuem para o crédito da teoria quando são bem-sucedidas. Pode-se também pôr em causa a separação entre o compromisso com entidades e o compromisso com teorias. Na maioria das vezes, pensamos nas entidades inobserváveis da ciência como entidades que desempenham certos papéis teóricos. Isso torna difícil ver como podemos aceitar as entidades sem pelo menos aceitar algumas partes da teoria adjacente.
No artigo reimpresso neste volume (Cap. XIII), Cartwright toma uma postura um pouco menos radical. Aqui, se prontifica a conceder que as leis abstratas da física fundamental recebem apoio indutivo dos efeitos físicos. No entanto, nega que tais leis precisem de ser universalmente aplicáveis. Ainda que caracterizem com precisão o comportamento dos fenômenos físicos em certos contextos laboratoriais cuidadosamente controlados, não se segue que rejam todos os fenômenos.
Os sistemas quotidianos podem se comportar de acordo com suas próprias leis, independentemente das forças e equações da física básica. Cartwright observa que a possibilidade de tais padrões “emergentes” é um tema bem conhecido no pensamento biológico. Mas quer ir além e negar que mesmo os sistemas físicos precisem de ser regidos por leis físicas fundamentais. Talvez o comportamento de uma nota de dólar em queda escape às leis da física tanto quanto o comportamento de um organismo biológico. Cartwright insta-nos a substituir a imagem reducionista de um sistema unificado, fundado numas poucas leis básicas, por uma manta de retalhos de muitas leis, cada uma das quais de alcance limitado.
Uma questão levantada pelo artigo de Cartwright é se acaso em diferentes áreas da ciência se aplicam lições filosóficas diferentes. Talvez devamos ser fundamentalistas em física mas não em biologia. Ou talvez possamos ser realistas da teoria na química, realistas da entidade na geologia, e completamente céticos na paleobiologia. No início desta introdução, afirmei que a epistemologia lida com problemas que surgem na ciência em geral. Sem dúvida que a maior parte dos escritos desta coletânea procuram lições que se apliquem a todas as áreas científicas. Mas talvez valesse a pena o esforço complementar de uma abordagem mais particularizada. Agora que estamos esclarecidos quanto às opções epistemológicas disponíveis, não há razão óbvia para esperar que a mesma alternativa se aplique a toda a disciplina científica.
David Papineau
Retirado de The Philosophy of Science, org. David Papineau (Oxford: Oxford University Press, 1996, pp. 1-20)

Notas

  1. Este diagnóstico do debate não é inteiramente claro. Fine começa o seu artigo rejeitando vários argumentos que são normalmente usados para defender, contra o ceticismo, a crença nas teorias científicas, e nesse ponto pelo menos parece ver o ceticismo como uma alternativa ao realismo científico. Mas no final do artigo parece titubear quando diz explicitamente que os seus anti-realistas aceitam as teorias como verdadeiras (veja-se a p. 36).

Referências

  • Carnap, R. (1928) Der logische Aufbau der Welt. Trad. ing.: The Logical Structure of the World. Berkeley: University of California Press, 1967.
  • Cartwright, N. (1983) How the Laws of Physics Lie. Oxford: Clarendon Press.
  • Glymour, C. (1980) Theory and Evidence. Princeton: Princeton University Press.
  • Hacking, I. (1983) Representing and Intervening. Cambridge: Cambridge University Press.
  • Kuhn, T. (1962) The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press.
  • Laudan, L. (1984) Science and Values. Berkeley: University of California Press.
  • Niddicht, P. (org.) (1968) Philosophy of Science. Oxford: Oxford University Press.
  • Psillos, S. (1995) “Is Structural Realism the Best of the Both Worlds?” Dialectica, 49: 15-46.
  • Van Fraassen, B. (1980) The Scientific Image. Oxford: Clarendon Press.

Fonte: http://filosobio.blogspot.com.br/2014/09/a-epistemologia-da-ciencia.html


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FILOSOFIADo mito ao lógos: a descoberta da filosofia

03/05/2012 por Luciene Félix
O renomado historiador Jean-Pierre Vernant (1914-2007) afirma que pensamento racional possui registro civil. Data: século VI; Local: Grécia. E, se os pré-socráticos são seus pais, os poetas são seus avós.
Iniciando uma nova forma de reflexão sobre a natureza, "Os filósofos jônios abriram o caminho que a ciência não fez depois senão seguir", diz Burnet, apontando o pontapé inicial do que hoje chamamos pensamento científico.
Diferente de Burnet, Cornford fiz que a física jônia não corresponde ao que denominamos ciência, pois não é produto da observação e tampouco faz experimentos, mas na verdade "Transpõe, numa forma laicizada e em um plano de pensamento mais abstrato, o sistema de representação que a religião elaborou." É sobre essa transposição do mito ao lógos que versaremos.
Considerando que o pensamento verdadeiro não poderia ter outra origem senão ele próprio, Vernant afirma que foi na Escola de Mileto que o lógos se libertou do mito.
Inteligência, raciocínio e espírito de observação são qualidades que o distanciamento permite entrever no milagre grego: "através da filosofia dos jônios, reconhece-se a Razão intemporal encarnada no tempo. O aparecimento do lógos introduziria, portanto, na história uma descontinuidade radical.".
O pensamento racional interroga seu passado tentando "estabelecer o liame que une o pensamento religioso e os começos do conhecimento racional.".
Os arcaicos mitos cosmogônicos (a palavra cosmos em grego significa ordem), ou seja, que buscam ordenar a origem (gens) da physis (natureza) são retomados pelos filósofos que estabelecerão a partir daí suascosmologias (ordem lógica).
Os primeiros filósofos utilizaram um material conceitual análogo ao dos poetas inspirados pelas musas (Homero e Hesíodo) e deram uma resposta externamente distinta ao mesmo tipo de pergunta: como pode emergir do caos [ápeiron] um mundo ordenado?
Enquanto o mundo dos aedos (poetas) é ordenado através da partilha dos domínios das instâncias da natureza entre os deuses (Zeus, o Fogo; Hades, o Ar; Poseidon, a Água e Gaia, a Terra), o cosmos dos jônios organiza-se "segundo uma divisão das províncias, uma partilha das estações entre forças opostas que se equilibram reciprocamente.". Não nomeiam divindades.
Vernant esclarece que por detrás dos elementos dos jônios (ar, fogo, terra e água), perfila-se a figura de antigas divindades da mitologia: "Ao tornarem-se natureza, os elementos despojaram-se do aspecto de deuses individualizados; mas permanecem as potências ativas, animadas e imperecíveis, sentidas ainda como divinas.".
Chamando a atenção para o fato de que não se trata de uma vaga analogia, Vernant diz que entre a filosofia de um Anaximandro e a Teogonia [obra sobre a origem dos deuses] de um poeta como Hesíodo (séc. VIII a.C.), as estruturas se correspondem até no pormenor.
Eis então, no mito e no lógos nascente, duas formas de traduzir níveis diferentes de abstração, explicitando o mesmo tema de ordenamento do mundo.
Para o historiador, esse novo "processo de elaboração conceitual [ao invés de deuses, são o úmido, o seco, o quente, o frio] que tende à construção naturalista do filósofo já está em gestação no hino religioso de glória a Zeus que o poema hesiódico celebra".


A filosofia tem um começo absoluto? Teria surgido no mundo sem nenhum passado, sem pais, nem família?


O mito da Teogonia, por exemplo, é a ilustração de um drama ritual, um modelo da festa real da criação do Ano Novo babilônico, no mês de Nisan: "Através do rito e do mito babilônicos, exprime-se um pensamento, que não estabelece ainda entre o homem, o mundo e os deuses, uma nítida distinção de planos." No mito, natureza (deuses) e sociedade (homens) estão confundidas.
Noutra passagem da Teogonia, a emergência do mundo prossegue com sucessivos nascimentos que se operam SEM a intervenção de Eros, ou seja, não por união, mas por segregação, tal como o que relata o aparecimento do mar, que surge da terra.
Eros, esclarece Vernant, é o princípio que aproxima os opostos - como o macho e a fêmea - e que os une: "Enquanto não intervém, a gênese processa-se por separação de elementos previamente unidos e confundidos", como se dá quando, no mito, Gaia (terra) gera Ouranós (céus).
Na Teogonia, diz Cornford, reconhece-se a estrutura de pensamento que serve de modelo a toda filosofia nascente, a física jônia:
 no começo, há um estado de indistinção onde nada aparece;
 desta unidade primordial emergem, por segregação, pares de opostos: quente e frio; seco e úmido, que vão diferenciar no espaço quatro províncias: o céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido;
 os opostos unem-se e interferem, cada um triunfando por sua vez sobre os outros, segundo um ciclo indefinidamente renovado, no nascimento e na morte de todo ser vivo (plantas, animais e homens), na sucessão das estações do ano, enfim, de todo fenômeno.
Vernant aponta que a obra de Cornford tinha por preocupação essencial restabelecer, entre a reflexão filosófica e o pensamento religioso que a tinha precedido, o fio da continuidade histórica: "marca uma virada na maneira de abordar o problema das origens da filosofia e do pensamento racional. Intentando combater a teoria do milagre grego que apresentava a física jônia como a revelação brusca e incondicionada da Razão (...)".
Procurou então, os aspectos de permanência e a insistir o que aí se pode reconhecer de comum: "De tal sorte que, através da sua demonstração, se tem por vezes o sentido de que os filósofos se contentam em repetir, em uma linguagem diferente, o que já dizia o mito".
Resta agora, não mais buscarmos na filosofia o que há de mais antigo, mas de destacar o que há de verdadeiramente novo: "aquilo que fez precisamente com que a filosofia deixe de ser mito para se tornar filosofia.".
Faz surgir um pensamento atrelado a uma nova gramática, com amplitude, limites e condições diversas. Se o conhecimento das coisas, na mitologia, é poeticamente inspirado pelas musas, na filosofia ele é provocado pela racionalização, ou seja, toma a forma de um problema a ser resolvido. O conhecimento de saberes que o mito explicita está dado; na filosofia, deve ser buscado.
A cosmologia (ordenamento do lógos, portanto lógico) dos primeiros filósofos revela que suas noções fundamentais (segregação a partir da unidade primordial, luta e união incessante dos opostos, mudança cíclica e eterna) emergiram de um pensamento mítico, cosmogônico: "Os filósofos não precisaram inventar um sistema de explicação do mundo: acharam-no já pronto.".
O portentoso abismo entre o Céu (Ouranós) e a Terra (Gaia), amainado pelo mito foi aberto pelos pré-socráticos. Da agonia, nos consolam melhor os deuses; À aventura, nos inquieta mais a filosofia.

Fonte: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/do-mito-ao-logos-a-descoberta-da-filosofia/8634