quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Nelson Vaz - LINGUAGEAR NOS TORNOU HUMANOS


Nelson M. Vaz

FILOGÊNESE OU ONTOGÊNESE Como nada parte do zero, exceto o Big-Bang, como quer a maioria dos cientistas, podemos discutir a gênese da vida humana de muitos pontos de partida, com diversas escalas de tempo, atualidade e complexidade. Se o adjetivo "humano" é o que nos importa mais, podemos nos afastar de problemas sérios como a gênese molecular da vida, a gênese das células, a gênese dos animais na explosão Cambriana, para nos concentrarmos nos últimos 6-8 milhões de anos. Ou podemos decidir que a paleoantropologia está além de nossos limites e não nos determos naquilo que separou o humano do chimpanzé e dos bonobos. Se partirmos do Homo sapiens sapiens já constituído como uma linhagem, poderemos considerar aquilo que, afinal, o distingue de outras linhagens de primatas.
Em resumo, por um lado, temos a opção de considerar problemas evolutivos básicos sobre a origem das diversas linhagens de seres vivos, entre as quais nos incluímos como mais uma linhagem. Incluídos nessa opção estão problemas fundamentais à bioquímica, na genética e na biologia propriamente dita. Por outro lado, temos a opção de discutir o que temos de especial nas origens (na gênese) do ser humano já configurado como linhagem. Mesmo aí, há uma dicotomia: podemos considerar o Homo sapiens sapiens ainda nômade, no pastoreio pré-agrícola, ou tomar como ponto de partida o chamado grande salto para a frente (the great leap forward) que deu origem à cultura, à religião, às artes, à civilização, enfim. Todas essas são preocupações para o lado, digamos, filogênico da gênese da vida humana.
Finalmente, há ainda sua dimensão ontogênica, que levanta um debate com profundo significado ético e muito atual, que Francisco Mauro Salzano discute em detalhe (pp. 57-59 desta edição). No outro extremo da vida humana, aquele próximo a seu fim, há um dilema semelhante em relação às pessoas atingidas por lesões ou enfermidades que as colocam em estados ditos "vegetativos", sem possibilidade de recuperação. Embriões humanos, que ainda não viveram uma vida autônoma, e seres humanos que perderam totalmente sua autonomia ao viver podem ser objeto de considerações éticas semelhantes — embora possa haver casos, dentre os últimos, em que já se tenha optado durante a vida normal sobre o que fazer com o próprio corpo nessas situações.
A meu ver, as discussões sobre a gênese da vida humana dependem da definição de diferenças entre nosso viver como Homo sapiens sapiens, como organismos de primatas com características zoológicas especiais, e nosso viver como pessoas, como seres humanos no conviver com outros seres humanos. De certa forma, Salzano indaga onde colocar um limite ontogênico entre um embrião de H. sapiens e um ser humano em formação. Para isso, é importante explicitar um consenso sobre aquilo que nos caracteriza como seres humanos, como pessoas. Similarmente, no decurso da filogênese, podemos indagar como e por que surgiram os seres humanos com sua conduta característica.
A PERGUNTA ZERO Nenhum de nós tem a pretensão de responder cabalmente à pergunta sobre a gênese da vida humana, uma pergunta que pode ser entendida como a origem das realidades humanas, ou de nosso entendimento sobre o mundo — enfim, a pergunta que muitos vêem como a maior e mais complexa de todas as perguntas, cuja resposta conteria a explicação de quase tudo. Mas, em meu modo de ver, antes dessa pergunta "número um", há uma "pergunta zero", usualmente negligenciada, que, mesmo quando explicitada, não é compreendida ou aceita por muitos. Essa "pergunta zero" será meu fio orientador.
"Como somos capazes de perguntar qualquer coisa?" — ou seja, "como somos capazes de conversar, ouvir, entender e falar a outros seres humanos?" —, um problema intimamente ligado à linguagem e à natureza do ser humano. Como se dá esse nosso experienciar da realidade? O que tem ele em comum com o experienciar de outras realidades por outros seres vivos? Todos concordamos em que uma mosca enxerga; mexemos a mão, e ela voa. Mas, curioso, o que ela vê? O que é ver? Enfim, nossa tarefa poderia tomar o rumo dessas indagações.
Aceitar ou rejeitar essa "pergunta zero" delineia dois caminhos distintos. Posso não aceitá-la e admitir que o "processamento de informações", a consciência e o conversar são propriedades dos seres humanos. Se faço isso, encontro-me imediatamente colocado em um mundo, uma realidade que quero explicar mas, ao mesmo tempo, me sinto alienado, estranho a essa realidade que habito e, se contemplo meu próprio corpo, ele também me parece algo estranho. Por outro lado, se aceito essa "pergunta zero", me encontro com a minha biologia de Homo sapiens sapiens, isto é, vejo a mim mesmo como um primata linguageante que vive a participar de conversas com outros seres humanos. Posso aceitar que, de alguma forma, preciso explicar essa minha conduta com base em minha biologia deHomo sapiens sapiens, de primata, apoiado em minha dinâmica estrutural e relacional como um sistema vivo.
BIOLOGIA DA COGNIÇÃO E DA LINGUAGEM Se aceito e discuto essa "pergunta zero", a discussão se dará em uma arena que é essencialmente biológica, mas levanta preocupações de natureza ética e trata de temas que preocupam filósofos e profissionais de várias outras áreas. Essa é a postura seguida na biologia da cognição e da linguagem (Maturana, 2002; Maturana & Poerksen, 2004), um corpo de conhecimentos originado do pensamento do neurobiólogo chileno Humberto Maturana, que ele assim define:
A biologia da cognição é uma proposta explicativa que tenta mostrar como os processos cognitivos humanos brotam da operação de seres humanos como sistemas vivos. Como tal, a biologia da cognição envolve reflexões orientadas para compreender os sistemas vivos, sua história evolutiva, a linguagem como um fenômeno biológico, a natureza das explicações, e a origem da humanidade. Como uma reflexão sobre como nós fazemos o que fazemos como observadores, ela é um estudo na epistemologia do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, como uma reflexão sobre como nós existimos na linguagem como seres linguageantes, ela é um estudo em relações humanas (Maturana, 1997).
Maturana é também conhecido como o autor da teoria da autopoiese, mas esta é de certo modo enganadora. A noção de autopoiese (autocriação/manutenção) é central, mas por si mesma insuficiente para expressar as propostas da biologia da cognição e da linguagem e não deve ser entendida como um princípio explicativo:
A autopoiese, a organização autopoiética, em meu modo de ver, como a concebo, é a organização de uma classe de sistemas que satisfazem esta organização. Não é mais que isso. Os sistemas vivos são sistemas autopoiéticos no espaço molecular, i.e., sistemas autopoiéticos cujos componentes são moléculas, nos quais as produções são produções moleculares […]. Nesta maneira de ver, não vejo a autopoiese como um paradigma explicativo para os sistemas (em geral), mas sim como a caracterização de uma certa classe de sistemas, que são exatamente isto: sistemas caracterizados por sua organização autopoiética. Você me pede um paradigma explicativo. Para mim, um paradigma explicativo é o das explicações científicas, no sentido pelo qual entendo paradigmas explicativos como procedimentos capazes de gerar explicações. Portanto, não considero a autopoiese como um paradigma explicativo (Maturana, 1997).
Uma das frases famosas atribuídas a Albert Einstein diz que: "O mais incompreensível a respeito do Universo é que ele seja compreensível". Maturana, por sua vez, diz que o Universo não existiria se não fosse compreensível; na verdade, ele não fala do Universo, mas sim de multiversa, de múltiplas realidades em que podemos estar imersos em nosso viver humano. Ele diz que seu objetivo não é explicar "o que é a realidade", mas sim explicar como fazemos o que fazemos e que a "pergunta zero" é: "Explicar o observador em seu observar". Outro pensador importante do século XX, Heinz von Foerster, é conhecido como o criador da "cibernética de segunda ordem", ou seja, aquela que inclui o observador na observação. Maturana diz que isso é um adiamento do problema, pois, para caracterizar o observador na observação, é necessário invocar um meta-observador colocado em um meta-meio, que por sua vez também requer um meta-meta-observador, e isso cria uma regressão infinita. É necessário, portanto, darmos conta do que se passa conosco, humanos, quando observamos, isto é, fazemos distinções de objetos e fenômenos enquanto participamos do linguagear com outros seres humanos (Maturana & Mpodozis, 1987). Ou, em termos mais gerais: "Como experienciamos a realidade humana?".
Perguntas desse tipo, em geral, são encaradas como pertinentes à neurobiologia, ao estudo do sistema nervoso e, mais particularmente, do cérebro e da consciência humana. Mas é evidente que experienciar realidades não se restringe a seres humanos ou a animais dotados de um sistema nervoso; plantas e seres unicelulares também exibem condutas que, evidentemente, são "cognitivas", ou seja, expressam como ações efetivas alguma forma do conhecer. Maturana afirma que um protozoário tem um "sistema nervoso" molecular, não-neuronal, com o qual ele se mantém em congruência com suas circunstâncias (conserva sua "adaptação"). Enfim, temos um espaço no qual podemos discutir "as bases biológicas do conhecer" — encarado como o desempenho de ações efetivas. Ou seja, um ser vivo "sabe" continuar vivo; nós, como seres humanos, dotados desses organismos de Homo sapiens sapiens, sabemos conversar.
Assim como Gregory Bateson (1973), Maturana não está em busca de "princípios explicativos" (Maturana, 1987) e se detém em explicitar a natureza das explicações, em geral, e daquilo que caracteriza as explicações científicas (Maturana, 1990). Um aspecto peculiar em sua abordagem é a descrição de sistemas "fechados" em sua organização, dos quais os sistemas vivos, como sistemas autopoiéticos, são apenas um exemplo. Para ele, o sistema nervoso é uma rede neuronal fechada, na qual estados relativos de atividade neuronal podem apenas conduzir a outros estados relativos de atividade neuronal. Ele assim descreve um rádio como um sistema "fechado" em si mesmo:
Considere um rádio portátil. É um sistema fechado no fluir da eletricidade. A antena não traz a corrente elétrica. A antena encontra ondas eletromagnéticas (um domínio), estas afetam o fluir da eletricidade (um domínio diferente) e isto produz um som (um terceiro domínio). O rádio não recebe corrente elétrica da antena. A corrente elétrica não é um input. Nada externo penetra no rádio (comunicação pessoal ao autor).
Na obra de Maturana "viver, como um processo, é um processo cognitivo" e descrever como um ser vivo conhece equivale a identificar quais são as ações eficazes que ele desempenha, segundo o ponto de vista de um observador humano. Uma aranha conhece várias coisas: sabe fazer uma teia, sabe achar um parceiro sexual, sabe fugir de predadores, andar pelo chão da floresta… sabe, enfim, "aranhar". Então, o conhecer, nesse modo de ver, é o conjunto de ações efetivas. Por isso, discutir a origem da vida — e da vida humana, em particular — implica descrever as ações que constituem o conhecer. Essa preocupação está explícita no título de um livro recente: Do ser ao fazer (Maturana & Poerksen, 2004). Para Maturana (1985), "a mente não está na cabeça: a mente está na conduta".
E, se vamos falar da vida humana, se vamos enfatizar esse ponto, temos de adentrar a filogênese, quando aparecem condutas e características que vamos chamar de, efetivamente, humanas. Os chimpanzés e os bonobos são nossos primos mais próximos, e a grande pergunta seria: "o que aconteceu nesses 4 a 6 milhões de anos atrás, durante os quais nós nos transformamos em primatas que conversam, que falam uns com os outros, enquanto os chimpanzés não fazem isso?". Porque é desse conversar, é a partir dessa coordenação de condutas consensuais que nós transformamos o planeta da maneira que transformamos e criamos a cultura humana; primeiro a agricultura, depois cidades, e agora somos assim, como uma doença de pele em volta de todo o planeta.
Como seres humanos, vivemos imersos em um fluir incessante de ações que Maturana chama de "linguagear". A linguagem é usualmente entendida como a transmissão de informação simbólica. Mas, em seu trabalho, Maturana deixa o conceito de informaçãocompletamente de fora; diz que os símbolos são secundários ao ato de linguagear, que é essa coordenação de condutas. Então, o linguagear é um modo de viver caracteristicamente humano, no qual somos imersos desde crianças. Em nossa educação, aprendemos e nos transformamos nessa coordenação de condutas com outros seres humanos. Eu consigo, eventualmente, coordenar condutas e coordenar coordenações de condutas com o meu cachorro. Mas o meu cão não vive em coordenação de condutas; ele não vive na linguagem; ele não linguageia com outros cães. Mas eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora, continuamente. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desse tipo de atividade.
Somos imersos nesse linguagear desde crianças. Em nossa educação, aprendemos, nos transformamos durante essa coordenação de condutas com outros seres humanos. E eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desta atividade: o conversar. Então, a "gênese da vida humana", para mim, é a gênese do conversar. O conversar é uma fusão do linguagear — que é essa coordenação de coordenação de condutas —, com o emocionar. As emoções são estados do corpo. Chego em casa depois de um engarrafamento de uma hora e meia gritando com o cachorro, empurrando a cadeira e minha mulher diz: "Você nem me beijou?". Eu respondo: "Ah, eu vou me mudar dessa cidade" —, porque nesse estado emocional eu não consigo beijar ninguém.Quer dizer, as emoções são estados do corpo que delimitam os domínios de ação. Então, ao coordenar condutas com outros seres humanos, eu gero emoções, vivo emoções, e vou nessa cadeia de coordenações com emoções. E vou conversando. E quem não conversa não é humano. Isso lembra um pouco o Abelardo Chacrinha, não é? — que dizia: "Quem não se comunica, se estrumbica". Mas, para Maturana, a comunicação não existe; o que existe é essa coordenação de condutas. E, se não houver um acoplamento estrutural entre os parceiros, não acontece nada.
Como se situam essas afirmações em relação aos grandes campos da pesquisa biológica, tais como a genética e a teoria evolutiva?
A GENÉTICA A genética sempre foi importante na discussão das questões biológicas mais profundas, desde que a semente e o ovo são objetos tentadores como possibilidades de estudar o viver, nos quais o viver parece condensado em uma essência. Ultimamente, a genética molecular e a genômica alcançaram uma grande proeminência na biologia, graças a experimentos possibilitados pela metodologia de análise e manipulação de ácidos nucleicos. O projeto Genoma Humano, que pode ser considerado um marco na biologia, levantou uma grande coleção de novas perguntas e teve um aspecto frustrante por não revelar nada espetacular, ou particular, em relação à natureza humana (Keller, 2002).
A grande importância da genética se traduz na composição do painel de cientistas reunidos pela SBPC para discutir "A gênese da vida humana": dos seis cientistas presentes, dois são geneticistas conhecidos (Antonio Cordeiro e Francisco Salzano) e um terceiro, bioquímico (Hernan Chaimovich), estuda soluções coloidais e a importância de ácidos nucleicos na origem da vida. Dos três cientistas restantes, dois estão ligados a temas biomé­dicos: um é microbiologista (Isaac Roitman), e eu mesmo (Nelson Vaz) sou imunologista. O cientista restante, um físico, presentemente estuda a teologia e a ciência das religiões (Eduardo da Cruz). Então, é natural que uma parte significativa dos temas abordados durante nossa discussão envolva problemas genéticos. No entanto, a perspectiva genética se modificou tanto nos últimos anos que o próprio significado do termo "gene" foi posto em discussão (Keller, 2002). Trata-se, portanto, de entender os problemas genéticos por novos enfoques.
No âmbito da biologia da cognição e da linguagem, Maturana fala de um "genótipo total", que inclui muito mais que o DNA; diz que tudo o que se passa no ser vivo precisa ser permitido pelo genótipo, mas argumenta que: "o genótipo determina apenas a possibilidade inicial"; todo o resto é determinado (especificado, orientado, guiado) pela maneira de viver, por uma dinâmica de um "fenótipo ontogênico" em um "nicho ontogênico" (Maturana & Mpodozis, 2000).
A EVOLUÇÃO A discussão sobre a gênese da vida humana está também muito relacionada à teoria da evolução, uma área que atravessa um período de intenso interesse. Devemos a Darwin dois importantes apercebimentos: primeiro, que todos os seres vivos estão relacionados por uma descendência comum (propinquity of descent); segundo, que uma explicação inicial para o surgimento dos seres vivos que encontramos atualmente adaptados aos mais diferentes meios é o processo que ele denominou seleção natural. Em meados do século XX, um grupo de cientistas de diversas áreas, variando da genética de populações à paleontologia (T. Dobzhansky, E. Mayr, G. Gaylord Simpson e G. L. Stebbins), acrescentou muitos aspectos às idéias de Darwin, criando o neo-darwinismo, ou teoria sintética da evolução, um conjunto de postulados que, de certa forma, representa o esqueleto central do pensamento biológico contemporâneo tradicional.
Muitos pesquisadores ressaltam que algo que a teoria sintética deixou flagrantemente de fora foi a biologia do desenvolvimento e sua subdisciplina, a embriologia, que prosseguiram como disciplinas isoladas, até que nos anos 1990 surgiu o campo hoje denominado "evo-devo" (evolutionary developmental biology), impulsionado pela nova metodologia desenvolvida na genética molecular, mas buscando resultados mais amplos que os anteriormente contemplados. Os pesquisadores em "evo-devo" se notabilizaram por enfrentar problemas como os da origem de estruturas biológicas complexas, como olhos, asas, corações e cérebros.
Esse grande progresso na "evo-devo" teve como contrapartida o recrudescimento de movimentos antievolucionistas, apoiados em crenças religiosas ou místicas (o criacionismo). Massimo Pigliucci (2001) afirma não compreender
porque a existência de fenômenos naturais que são atualmente difíceis de explicar, por um lado, reforçam a opinião de que "há algo errado com a teoria" (como querem os criacionistas que defendem o "intelligent design" e, por outro lado, tornam vocais os defensores da teoria sintética, que insistem em que "não há nada errado e tudo já foi explicado". Por sua própria natureza, a ciência lida com coisas e fenômenos para os quais nós não dispomos de explicações.
Ou seja, devemos admitir que há problemas para os quais não temos explicações, mas que isso não nos obriga a aceitar uma solução transcendente (divina ou extraterrestre) para os mesmos.
Nosso problema não é o de um "projeto inteligente", mas sim um processo inteligível. A nova maneira de formular a problemática biológica, que enfatiza a flexibilidade somática, tem sido amplamente descrita em livros recentes (Pigliucci, 2001; West Eberhard, 2003; Kirschner & Gehart, 2005; Jablonka & Lamb, 2005; Pigliucci & Kaplan, 2006; entre muitos outros).
Antes do surgimento do "evo-devo", a teoria evolutiva tinha deficiências mais sérias, tais como um exagero sobre a importância de genes individuais como unidades determinantes do desenvolvimento, além de crenças incorretas, como a que ficou conhecida como "lei biogenética" de Haeckel, hoje rejeitada pela maioria dos biólogos. Exagerando semelhanças entre embriões de espécies animais diferentes durante o chamado "estágio filotípico", Haeckel propôs que "a ontogênese recapitula a filogênese", afirmando, por exemplo, que um embrião humano atravessa o desenvolvimento de outros animais, que tem guelras de peixes e exibe uma cauda. Na realidade, houve uma confusão entre o que foi proposto por Von Baer, ao estabelecer aspectos comuns em formas de embriões de uma dada classe, enquanto Haeckel propôs que organismos de surgimento mais recente na evolução passavam por estágios em que se assemelhavam ao estágio adulto de organismos mais primitivos. Darwin apoiava a visão de Von Baer, mas sua opinião foi eclipsada pela interpretação de Haeckel1. Maturana diverge radicalmente de todos os biólogos em sua interpretação do processo evolutivo, que ele define como uma deriva natural. Juntamente com Mpodozis, ele propõe que a seleção natural pode ser legitimamente encarada como o resultado do processo evolutivo, mas não como seu mecanismo (Maturana & Mpodozis, 2000). Mas esta é uma outra história.

Nelson M. Vaz é professor-titular aposentado do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG). É membro da Academia Brasileira de Ciências, sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Imunologia e membro honorário da Sociedade Portuguesa de Imunologia.


NOTAS
1. Haeckel tinha opiniões ainda mais radicais, precursoras do nazismo. Ele propunha, por exemplo, que: "As raças inferiores estão fisiologicamente mais próximas dos mamíferos — macacos e cães — que dos europeus civilizados. Devemos, portanto, atribuir um valor totalmente diferente às suas vidas" e "Ele (Jesus) é geralmente considerado como sendo puramente judeu. Porém, as características que distinguem Sua personalidade elevada e nobre, que conferem uma impressão distinta à sua religião, certamente não são judias. São aspectos da raça ariana superior" (Haeckel apud Gilbert, 2001).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATESON, G. 1973. Steps to an ecology of mind. Nova York: Ballantine Books.
GILBERT, Scott. 2001. Teaching evolution through development. 61st Annual Meeting of the Society for Developmental Biology. Madison, Wisconsin.
JABLONKA, E. & LAMB, M. J. 2005. Evolution in four dimensionsGenetic, epigenetic, behavioral and symbolic variation in the history of life. Cambridge: MIT Press.
KELLER, Evelyn Fox. 2002. O século do gene. Tradução de Nelson M. Vaz. Belo Horizonte: Crisálida.
KIRSCHNER, M. W. & GERHART, J. C. 2005. The plausibility of life: resolving Darwin’s dilemma. New Haven: Yale University Press.
MATURANA, H. R. 1985. "The mind is not in the head". J. Social Biol. Struct. 8, pp. 308-311.
____. 1987. "Everything is said by an observer". In Gaia: a way of knowing. Political implications of the new biology. Edição de W. I. Thompson. New York: Lindisfarne Press.
____. 1990. "Science and daily life: the ontology of scientific explanations". In Self-organization: portrait of a scientific revolution. Edição de W. Krohn, G. Kuppers e H. Nowotny. Dordrecht: Kluwer Academic.
____. 1997. "Autopoiese: núcleo duro e cinturón protector hace mucho, muchíssimo, tiempo". Entrevista realizada por Victor Bronstein e Alejandro Piscitelli, Buenos Aires [disponível em www.matriztica.org].
____. 2002. "Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition". Cybernetics & Human Knowing 9 (3-4), pp. 5-34 [pdf disponível por meio de maturana@matriztica.org].
MATURANA, H. R. & MPODOZIS, J. 1987. "Perception: behavioral configuration of the object".Arch. Biol. Med. Exp. (Santiago) 20 (3-4), pp. 319-324.
____. 2000. "The origin of species by means of natural drift". Revista Chilena de Historia Natural, 73, pp. 261-310 .
MATURANA, H. & B. POERKSEN. 2004. From being to doing: the origins of biology of cognition. Heidelberg: Carl-Auer.
PIGLIUCCI, M. 2004. Phenotypic evolution, beyond nature and nurture (syntheses in ecology and evolution). Baltimore: The John Hopkins University Press.
____. 2006. "Have we solved Darwin’s dilemma?". American Scientist, 94 (3), pp. 272-273.
PIGLIUCCI, M. & KAPLAN, J. 2006. Making sense of evolution: the conceptual foundations of evolutionary biology. Chicago: University of Chicago Press.
WEST EBERHARD, M. J. 2003. Developmental plasticity and evolution. Oxford: Oxford University Press.



segunda-feira, 5 de outubro de 2015

[ O conhecer e o conhecimento ] - por Edson Pereira & Luiz Andrade


O conhecer e o conhecimento: comentários sobre o viver e o tempo

Luiz Antônio Botelho Andrade, Edson Pereira da Silva

Resumo


Com base nas idéias de Humberto Maturana e Francisco Varela, é mantido que todos os organismos vivos são sistemas cognitivos e, portanto, capazes de conhecer o mundo em que vivem. No entanto, nem todos os organismos são capazes de fazer uma referência à história, utilizando os recursos da linguagem. A esta atividade denominamos conhecimento, ou seja, a produção de enredos explicativos, restrito ao mundo humano. Nesta definição reside a novidade proposta por este artigo, à distinção entre conhecer e conhecimento, pela associação da história à teoria da autopoiese. Segue-se uma discussão sobre a linguagem e sua relevância para produção de qualquer que seja o sistema de conhecimento.

Palavras-chave


conhecer; conhecimento; linguagem; aprendizagem; ensino; epistemologia.
e/ou
http://www.biolinguagem.com/ling_cog_cult/andrade_silva_2005_conhecer_conhecimento.pdf





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[ O que é ser humano? ] - por Edson Pereira & Luiz Andrade


O que é ser humano?

Luiz Antonio Botelho Andrade, Edson Pereira da Silva, Eduardo Passos

Resumo


Este artigo tenta mostrar que o humano do ser humano é mais o resultado de um devir do que o apogeude um acabamento biológico capturado e engessado por uma concepção tipológica de espécie. A partir do processo evolutivo e de algumas etapas da evolução humana, ressalta-se a importância da sociabilidade para o surgimento da linguagem articulada e desta para a explosão da inventividade humana, o surgimento da cultura e a emergência da autoconsciência.

© Ciências & Cognição 2007; Vol.12: 178-191.

Palavras-chave


australopithecus; autoconsciência; cultura; evolução; linguagem; ser humano

Texto completo:

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http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/636/418



4.2. O amor como emoção fundamental para a sociabilidade

Para discutir a assertiva explicitada acima, é importante entender que as emoções, diferentemente do que a nossa tradição cultural costuma associar com sentimentos, são disposições corporais (ou estados do corpo) que nos abrem ou nos fecham à possibilidade de realizar certas condutas (Bloch, 2002; Maturana e Bloch, 2003). Assim, por exemplo, não se espera uma conduta gentil no âmbito emocional do ódio. Destarte, quando o amor é apontado como emoção fundamental para a construção da sociabilidade, não se está falando de sentimento, mas apontando a disposição corporal que permitiu, ao primata bípede, a aceitação do outro, de forma mais intensa e perene, na convivência. E porque o amor seria assim tão importante para a sociabilidade e para a humanização? Fundamentalmente, porque o amor permitiu o prazer na espontaneidade dos encontros e dos reencontros e, assim, a convivência ininterrupta entre humanos (Maturana, 1997). Seguindo essa linha de raciocínio que considera o amor como emoção fundamental para a convivência (Maturana, 1997), retornaremos ao ponto de discussão sobre o nascimento precoce do bebê e a expansão da neotênia. Se considerarmos que durante o processo evolutivo da linhagem humana houve um marcante estreitamento da pélvis e, por conseguinte, do canal vaginal, podemos inferir que o nascimento precoce significou uma vantagem adaptativa em face de uma alta taxa de mortalidade durante o nascimento. Se assim o foi, tornou-se fundamental uma maior atenção dos pais para com a prole excessivamente frágil. Se aceitarmos que a expansão da neotênia e tudo que ela implicava (e ainda implica) desencadearam mudanças emocionais mais perenes, de aceitação sem maiores exigências, e que essas mudanças foram conservadas transgeracionalmente, isto explicaria o aumento da sociabilidade entre humanos e, de acordo com o que estamos defendendo aqui, o ambiente adequado ao surgimento da linguagem. O correspondente dessa emoção fundamental de aceitação do outro, enquanto legítimo outro, na convivência, é denominado, na nossa cultura, de amor.

Gênese da vida humana - Ciência e Cultura

Ciência e Cultura

On-line version ISSN 2317-6660

Cienc. Cult. vol.60 no.spe1 São Paulo July 2008

 



INTRODUÇÃO
Isaac Roitman

Os artigos aqui reunidos, sob o título "Gênese da vida humana", originaram-se de um Grupo de Trabalho (GT) que se formou à volta desse mesmo tema. 

A idéia partiu de uma questão que propus ao Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), feita mais ou menos nos seguintes termos: "Não existiria ciência nenhuma se não existisse o ser humano, espécie animal com capacidade de formular perguntas e tentar obter as respostas". 

A proposição era de que, paralelamente às discussões sobre importantes temas de todas as áreas de conhecimento, poderíamos ter um espaço dentro da Reunião Anual da SBPC para elaborar perguntas, discutir e fazer reflexões sobre a vida humana. A sugestão foi acatada e fui convidado para coordenar esse GT.

Como tal temática é ampla, seria lógico focá-la em sua problemática inicial, ou seja, a gênese da vida humana. A primeira questão que surgiu se relacionava às dimensões em que o tema deveria ser discutido. 

Como a origem da vida humana está ligada à origem da vida, seria pertinente incluir na discussão as teses sobre a origem dos primeiros seres vivos. 

Presume-se que a vida microscópica tenha precedido a dos seres mais complexos, plantas e animais. Os microrganismos mais primitivos teriam se formado a partir de macromoléculas (DNA, RNA, proteínas etc.) que teriam sido originadas a partir de gases primordiais. Biólogos (sobretudo geneticistas), bioquímicos, biofísicos, físicos e químicos têm discutido a origem da vida, havendo demonstrações experimentais da síntese de macromoléculas a partir de gases que supostamente existiriam quando da origem da vida. 

Porém, apesar da incontestável importância da participação de especialistas dessas áreas de conhecimento na discussão do tema, seria também importante que este fosse discutido em outras dimensões como a da filosofia, da antropologia e da teologia. Para isso, foram, convidados ilustres acadêmicos: 

Francisco Mauro Salzano, 

Nelson Monteiro Vaz, 

Antonio Rodrigues Cordeiro, 

Eduardo Rodrigues da Cruz 

e Hernan Chaimovich, 

que poderiam contribuir na discussão da temática em múltiplas dimensões.



Durante a 58ª Reunião da SBPC, realizada em Florianópolis na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o GT reuniu-se no dia 18 de julho de 2007. A reunião teve a duração aproximada de oito horas e foi realizada em recinto fechado. Além dos participantes do GT, permaneceram na sala um monitor da SBPC e um estudante do curso de comunicação da UFSC, que registrou em vídeo toda a reunião. No dia seguinte, foi realizado um simpósio sobre o tema em um dos auditórios da UFSC, com duração de duas horas.
Os textos aqui apresentados procuram sintetizar as posições dos participantes nos debates que ocorreram nesses dois dias.



Hernan Chaimovich, graduado em química pela Universidad de Chile e doutor em bioquímica pela Universidade de São Paulo (USP), tem trabalhado em aspectos biofísicos e bioquímicos de micelas, vesículas, catálise micelar e enzimática. Em seu artigo "Origem da vida", o autor procura discutir esse tema em uma escala de tempo a partir da origem do planeta Terra em termos de origem das primeiras moléculas e as propriedades de uma célula, assim como as principais características que diferenciam um sistema vivo de um objeto inanimado.



Francisco Mauro Salzano, graduado em história natural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em genética pela Universidade de São Paulo (USP), tem trabalhado em vários aspectos da genética humana: ameríndios, polimorfismos genéticos e demografia. Em seu artigo "O conceito de pessoa — aspectos biológicos e filosóficos", o autor procura discutir onde deve ser estabelecido o limiar que caracteriza o ser moral, com direito à vida. Essa discussão se desenvolveu sob a ótica dos estágios do desenvolvimento ontogenético humano.



Antonio Rodrigues Cordeiro graduou-se em história natural na UFRGS e é doutor em ciências pela USP. Tem larga experiência em vários campos da genética, destacando-se a variabilidade genética de Drosophila e biotecnologia vegetal (plantas transgênicas). Em seu artigo "Gênese da vida humana", o autor discute a evolução dos Hominidae até Homo sapiens sapiens, tomando por base recentes descobertas paleontológicas, que defendem a origem do ser humano ora pela via monofilética, ora pela multifilética.



Nelson Monteiro Vaz, graduado em medicina pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é doutor em bioquímica e imunologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem trabalhado em várias áreas da imunologia, com destaque para seus aspectos epistemológicos, temas como tolerância oral e imunoglobulinas naturais. É também um estudioso do filósofo e bió­logo Humberto Maturana. Em seu artigo "O linguagear é o modo de vida que nos tornou humanos", Nelson Vaz discute a natureza humana sob o ponto de vista filogênico e ontogênico. A partir de uma pergunta que denomina "pergunta zero" — "Como somos capazes de perguntar qualquer coisa?" —, o autor desenvolve suas idéias na área da biologia da cognição e da linguagem.



Eduardo Rodrigues da Cruz, graduado em física pela USP, é doutor em teologia sistemática pela University of Chicago e tem trabalhado nas áreas de epistemologia, teologia sistemática e ciências naturais e teologia. Em seu artigo "Origens, míticas e científicas", o autor destaca o assunto — o sentido da vida, quando a vida começa, quando a vida termina, Deus existe? — como tema recente de revistas de divulgação científica. E ainda discute e aponta diferentes interpretações sobre a explosão cultural humana e as vertentes do evolucionismo e do criacionismo na origem do ser humano. Termina seu texto pregando o diálogo permanente entre cientistas e teólogos nas grandes questões relativas à origem.



O GT não esgotou as perguntas nem as respostas sobre o tema a que se propôs. Provavelmente todo ser humano em uma etapa de sua vida fez uma ou mais perguntas, tais como: 1. Quem somos nós? 2. Qual é o significado da vida? 3. De onde viemos? 4. Para onde vamos? 5. Existe um ser superior? 6. Quero saber se te criaram ou se és obra da criação? (tentando conversar com Deus) 7. Existe uma inteligência cósmica? 8. Qual o significado da espiritualidade? 9. Qual a razão da consciência? 10. Quando começa a consciência humana? 11. Existe vida fora da terra? etc. Oxalá possamos no futuro avançar e responder a algumas dessas perguntas.

Isaac Roitman, microbiologista, é professor aposentado da Universidade de Brasília (UNB) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências.

A ÁRVORE DO CONHECIMENTO - Prefácio de Humberto Mariotti



Prefácio do livro:

A ÁRVORE DO CONHECIMENTO
de Humberto Maturana e Francisco Varela








por Humberto Mariotti



O ponto de partida desta obra é surpreendentemente simples: a vida é um processo de conhecimento; assim, se o objetivo é compreendê-la, é necessário entender como os seres vivos conhecem o mundo. Eis o que Humberto Maturana e Francisco Varela chamam de biologia da cognição. O modo como se dá o conhecimento é um dos assuntos que há séculos instiga a curiosidade humana. Desde o Renascimento, o conhecimento em suas diversas formas tem sido visto como a representação fiel de uma realidade independente do conhecedor. Ou seja, as produções artísticas e os saberes não eram considerados construções da mente humana. Com alguns intervalos de contestação (como aconteceu logo no início do século 20, por exemplo), a idéia de que o mundo é pré-dado em relação à experiência humana é hoje predominante – e isso talvez mais por motivos filosóficos, políticos e econômicos do que propriamente por causa de descobertas científicas de laboratório.

Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe passivamente informações vindas já prontas de fora. Num dos modelos teóricos mais conhecidos, o conhecimento é apresentado como o resultado do processamento (computação) de tais informações. Em conseqüência, quando se investiga o modo como ele ocorre (isto é, quando se faz ciência cognitiva), a objetividade é privilegiada e a subjetividade é descartada como algo que poderia comprometer a exatidão científica. Tal modo de pensar se chama representacionismo, e constitui o marco epistemológico prevalente na atualidade em nossa cultura. Sua proposta central é a de que o conhecimento é um fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo. A mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo conteria "informações" e nossa tarefa seria extrai-las dele por meio da cognição. Como aconteceu com muitas outras, essa posição teórica também produziu conseqüências práticas e éticas. Veio, por exemplo, reforçar a crença de que o mundo é um objeto a ser explorado pelo homem em busca de benefícios. Essa convicção constitui a base da mentalidade extrativista – e com muita freqüência predatória – dominante entre nós. A idéia de extrair recursos de um mundo-coisa, descartando em massa os subprodutos do processo, estendeu-se às pessoas, que assim passaram a ser utilizadas e, quando se revelam "inúteis", são também descartadas. Como todos sabem, a exclusão social alcança hoje em muitos países proporções espantosas, em especial no continente africano e na América Latina. Ao nos convencer de que cada um de nós é separado do mundo (e, em conseqüência, das outras pessoas), a visão representacionista em muitos casos terminou desencadeando graves distorções de comportamento, tanto em relação ao ambiente quanto no que diz respeito à alteridade.

O representacionismo é um dos fundamentos da cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo, inclusive as Américas. A esse respeito, lembremos um dado histórico comentado por Hannah Arendt1 em relação aos bôeres, europeus em sua maioria descendentes de holandeses que iniciaram a colonização da África do Sul no século 17. O contato com os nativos sempre os chocava, diz Arendt. Para aqueles homens brancos, o que tornava os negros diferentes não era propriamente a cor da pele, mas o fato de que eles se comportavam como se fizessem parte da natureza.




Não haviam, como os europeus, criado um âmbito humano separado do mundo natural. Do ponto de vista dos bôeres, essa ligação tão íntima com o ambiente transformava os nativos em seres estranhos. Era como se eles não pertencessem à espécie humana. Por serem parte da natureza, eram vistos como mais um "recurso" a ser explorado. Por isso, era "justo" que fossem amplamente utilizados como produtores de energia mecânica no trabalho escravo, ou então simplesmente massacrados. Eis um exemplo do tipo de alteridade gerado pelo modelo mental fragmentador. A fragmentação traduz a separação sujeito-objeto, principal característica da concepção representacionista. Hoje, mais do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiência. Foi exatamente para mostrar que as coisas não são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore do Conhecimento. Eis a sua tese central: vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós. Ao contrário das tentativas anteriores de contestar pura e simplesmente o representacionismo, as idéias de Maturana e Varela têm nuanças que lhes proporcionam uma leveza e uma perspicácia que constituem a essência de sua originalidade. Para eles, o mundo não é anterior à nossa experiência. Nossa trajetória de vida nos faz construir nosso conhecimento do mundo – mas este também constrói seu próprio conhecimento a nosso respeito. Mesmo que de imediato não o percebamos, somos sempre influenciados e modificados pelo que vemos e sentimos. Quando damos um passeio pela praia, por exemplo, ao fim do trajeto estaremos diferentes do que estávamos antes. Por sua vez, a praia também nos percebe. Estará diferente depois da nossa passagem: terá registrado nossas pegadas na areia – ou terá de lidar também com o lixo com o qual porventura a tenhamos poluído. Do mesmo modo, as águas de um rio vão abrindo o seu trajeto por entre os acidentes e as irregularidades do terreno. Mas estes também ajudam a moldar o itinerário, pois nem a correnteza nem a geografia das margens determinam isoladamente o curso fluvial: ele se estrutura de um modo interativo, o que nos revela como as coisas se determinam e se constróem umas às outras. Por serem assim, a cada momento elas nos surpreendem, revelando-nos que aquilo que pensávamos ser repetição sempre foi diferença, e o que julgávamos ser monotonia nunca deixou de ser criatividade. Tomemos ainda outra metáfora: não são só os timoneiros que dirigem os navios.

O meio ambiente também pilota as embarcações, por meio das correntes marítimas, dos ventos, dos acidentes de percurso, das tempestades e assim por diante. Dessa forma os pilotos guiam, mas também são guiados. Não há velejador experiente que não saiba disso. Portanto, pode-se dizer que construímos o mundo e, ao mesmo tempo, somos construídos por ele. Como em todo esse processo entram sempre as outras pessoas e os demais seres vivos, tal construção é necessariamente compartilhada. Para mentes condicionadas como as nossas não é nada fácil aceitar esse ponto de vista, porque ele nos obriga a sair do conforto e da passividade de receber informações vindas de um mundo já pronto e acabado – tal como um produto recém saído de uma linha de montagem industrial e oferecido ao consumo. Pelo contrário, a idéia de que o mundo é construído por nós, num processo incessante e interativo, é um convite à participação ativa nessa construção. Mais ainda, é um convite à assunção das responsabilidades que ela implica. Não se trata, porém, de uma escolha retórica, e sim do cumprimento de determinações que derivam da nossa própria condição de viventes. Maturana e Varela mostram que a idéia de que o mundo não é pré-dado, e que o construímos ao longo de nossa interação com ele, não é apenas teórica: apóia-se em evidências concretas. Várias delas estão expostas – com a freqüente utilização de exemplos e relatos de experimentos – nas páginas deste livro.

Em suma: se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação. Aprendem vivendo e vivem aprendendo. Essa posição, como já vimos, é estranha a

quase tudo o que nos chega por meio da educação formal.

As teorias de Maturana e Varela constituem uma concepção original e desafiadora, cujas conseqüências éticas agora começam a ser percebidas com crescente nitidez. Nos últimos anos, por exemplo, tal compreensão vem se ampliando de modo significativo e tem influenciado muitas áreas do pensamento e atividade humanos. A Árvore do Conhecimento tornou-se um clássico, ou melhor, recebeu o justo reconhecimento de seu classicismo inato. Por isso, é importante contar aqui as linhas gerais de sua história.

Tudo começou na década de 1960, quando Maturana, professor da Universidade do Chile, intuiu que a abordagem convencional da biologia – que basicamente estuda os seres vivos a partir de seus processos internos – podia ser fertilizada por outro modo de ver. Tal abordagem os concebe em termos de suas interações Um pouco de História com o ambiente, no qual, é claro, estão os demais seres vivos. Em meados dos anos 60, Varela tornou-se aluno de Maturana. A seguir, já também professor, continuou a trabalhar com ele na Universidade do Chile. Juntos escreveram um primeiro livro: De Máquinas y Seres Vivos: Uma Teoría de la Organización Biológica Tempos depois, a instauração do regime militar no país, a partir de 1973, fez com que os dois autores fossem para o exterior, onde continuaram a trabalhar separadamente.

Em 1980, de volta ao Chile, retomaram a colaboração. Por essa época, a organização dos Estados Americanos (OEA) buscava novas formas de abordar a comunicação entre as pessoas e o modo como ocorre o conhecimento. Por intermédio de Rolf Behncke, também chileno e ligado a essa instituição, Maturana e Varela começaram a expor os resultados de suas pesquisas em uma série de palestras, assistidas por pessoas de formação heterogênea. A transcrição e edição dessas apresentações resultou num livro, publicado em 1985 em edição não-comercial para a OEA. Essa obra constitui, com algumas modificações, o que é hoje A Árvore do Conhecimento. Desde a sua primeira edição destinada ao público – em 1987 –, ela jamais deixou de despertar atenção, gerando comentários, resenhas, análises, pesquisas, outros livros. Tudo isso compõe hoje uma ampla bibliografia, espalhada por áreas tão diversas como a biologia, a administração de empresas, a filosofia, as ciências sociais, a educação, as neurociências e a imunologia.

O centro da argumentação de Maturana e Varela é constituído por duas vertentes. A primeira, como vimos, sustenta que o conhecimento não se limita ao processamento de informações oriundas de um mundo anterior à experiência do observador, o qual se apropria dele para fragmentá-lo e explorá-lo. A segunda grande linha afirma que os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores – capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. A autonomia dos seres vivos é uma alternativa à posição representacionista. Por serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente informações e comandos vindos de fora. Não "funcionam" unicamente segundo instruções externas. Conclui-se, então, que se os considerarmos isoladamente eles são autônomos. Mas se os virmos em seu relacionamento com o meio, torna-se claro que dependem de recursos externos para viver. Desse modo, autonomia e dependência deixam de ser opostos inconciliáveis: uma complementa a outra. Uma constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular.

Mas o que fazer para que o ser humano se veja também como parte do mundo natural? Para tanto, é preciso que ele observe a si mesmo enquanto observa o mundo. Esse passo é fundamental, pois permite compreender que entre o observador e o observado (entre o ser humano e o mundo) não há hierarquia nem separação, mas sim cooperatividade na circularidade. Na verdade, Maturana e Varela dão – não apenas com este livro, mas com o conjunto de suas respectivas obras – uma contribuição relevante à compreensão daquilo que talvez seja o maior problema epistemológico de nossa cultura: a extrema dificuldade que temos de lidar com tudo aquilo que é subjetivo e qualitativo. Mas temos outra limitação. Para nós, não é fácil aceitar que o subjetivo e o qualitativo não se propõem a ser superiores ao objetivo e ao quantitativo; e que não pretendem descartá-los e substitui-los, mas sim manter com eles uma relação complementar. Não entendemos que todas essas instâncias são necessárias, e que é essencial que entre elas haja um relacionamento transacional, uma circularidade produtiva. Tal situação tem produzido, como foi dito, conseqüências éticas importantes. Parece incrível, mas muitas pessoas (inclusive cientistas e filósofos) imaginam que o trabalho científico deve afastar de suas preocupações a subjetividade e a dimensão qualitativa – como se a ciência não fosse um trabalho feito por seres humanos. Maturana e Varela mostram, com abundância de exemplos e constatações, que a subjetividade (tanto quanto a objetividade), e a qualidade (tanto quanto a quantidade), são na verdade indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência. Hoje, os dois autores seguem caminhos diferentes. No entanto, a diversidade de suas linhas de trabalho atuais não elimina um traço básico do ideário original: o que sustenta que os seres vivos e o mundo estão interligados, de modo que não podem ser compreendidos em separado.

Outro ponto de convergência é o que diz que, se o conhecimento não é passivo – e sim construído pelo ser vivo em suas interações com o mundo –, a postura de só levar em conta o que é observado deixa de ter sentido. A transacionalidade entre o observador e aquilo que ele observa, além de mostrar que um não é separado do outro, torna indispensável a consideração da subjetividade do primeiro, isto é, a compreensão de como ele experiência o que observa. Maturana permanece no Chile, de onde sai periodicamente para cursos, conferências e seminários em vários países do mundo, inclusive o Brasil. Aprofunda seu pensamento sobre a biologia do conhecimento e a respeito de sua concepção de alteridade, que chama de biologia do amor. A transacionalidade da biologia do conhecimento com a biologia do amor compõe a base do que ele denomina de Matriz Biológica da Existência Humana.




Varela trabalha em Paris, onde desenvolve duas linhas complementares de pesquisa. A primeira consta de estudos experimentais sobre a integração neuronal durante os processos cognitivos. A outra consiste em investigações sobre a consciência humana Tais pesquisas proporcionam contribuições à sua escola de estudos cognitivos – a ciência cognitiva enativa (teoria da atuação). Em linhas gerais, essa teoria sustenta que é preciso levar em conta não apenas a objetividade, mas também a subjetividade do observador, que havia sido preterida pelos modelos teóricos representacionistas de ciência cognitiva. Ou seja, pretende lançar uma ponte sobre o fosso que separa a ciência (o universo da objetividade) da experiência humana (o domínio da subjetividade).




Há anos que a Associação Palas Athena, por meio de sua Editora, pretende lançar uma tradução d'A Árvore do Conhecimento. Esse desejo sempre traduziu a certeza não apenas da importância da obra, mas também da afinidade entre as idéias dos cientistas chilenos e os princípios da Associação. Eis por que agora a concretização do projeto é para todos nós um acontecimento da maior importância, que queremos compartilhar.







Humberto Mariotti



Fonte: http://cerebromente.blogspot.com.br/2008/09/prefcio-do-livro-rvore-do-conhecimento.html

[ Quem veio primeiro: o Ovo ou a Galinha? ] - por Edson Pereira & Luiz Andrade



O dilema do ovo e da galinha ainda não tem uma solução consensual. Assim, para discuti-lo, é conveniente apresentar os principais caminhos e abordagens dos programas de pesquisa que abordam a questão da origem da vida.



A hipótese do ovo


Em 1953, o biólogo norte-americano James Watson e o físico inglês Francis Crick publicaram o modelo da dupla hélice, que explicava a estrutura da molécula de DNA, e sugeriram que ela preenchia os requisitos para servir como um código, armazenando informação sobre a constituição e o funcionamento do organismo, e para transferir tal informação, por cópia, aos descendentes dele. No final do artigo, publicado na revista científica Nature, eles afirmam: “O pareamento específico que postulamos sugere de pronto um possível mecanismo copiador para o material genético.”


Era o começo daquilo que chamamos aqui de a hipótese do ovo (origem da vida com base em compostos moleculares de ácidos nucléicos ou similares). A partir desse momento, começou a ruir a idéia de que a vida teria se originado de um coacervado protéico, já que se tornou difícil imaginar como tais estruturas poderiam evoluir até uma forma de vida, por mais primitiva que fosse, sem um código genético.


Antes mesmo da descoberta de Watson e Crick, o químico irlandês John Bernal (1901-1971) afirmara, em 1951, que o ‘polímero primordial’, com o qual a vida teria começado, deveria ser capaz de estocar informação e de se autoduplicar. O DNA e as proteínas eram os candidatos naturais a esse papel. Sabia-se que era possível obter polímeros similares a proteínas e com atividade catalítica a partir do aquecimento de misturas de aminoácidos. Era impossível, porém, imaginar como esses ‘precursores’ manteriam um mecanismo eficiente de estoque e transmissão de informações, já que se formavam em um processo altamente aleatório.


Após 1953, desvendada a estrutura do DNA, as moléculas de ácidos nucléicos (DNA/RNA) ganharam papel central nos estudos sobre a origem da vida. Elas estocam e replicam a informação genética, mas precisam das proteínas para a autoduplicação. Isso significa que, nas condições da Terra primitiva, não serviriam de molde para uma ‘cópia’ sem a ajuda de enzimas. O DNA é ainda altamente resistente à decomposição por hidrólise, o que, no caso de polímeros precursores semelhantes ao DNA, dificultaria a reciclagem dos monômeros, ou seja, a reutilização ou rearranjo deles. Portanto, parece improvável a colonização do ambiente aquático da Terra primitiva por polímeros primordiais de DNA.


Nos anos 70, nos Estados Unidos, as equipes do bioquímico Thomas Cech (norte-americano) e do biólogo Sidney Altman (canadense) comprovaram, em estudos independentes, que certas seqüências de RNA (chamadas de ‘introns’) eram capazes de acelerar a velocidade de algumas reações. Ou seja, atuavam como enzimas. Esses trabalhos inauguraram aquilo que se convencionou chamar de estudos sobre a origem da vida a partir de ‘um mundo de RNAs’.


Em 1986, descobriu-se que os introns participavam do autoprocessamento do RNA precursor: introns purificados, postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, mostraram-se capazes de retirar uma base de um deles e transferi-la para outro. Assim, a partir de duas moléculas de mesmo tamanho (n), o intron produz uma molécula acrescida de uma base (n+1) e outra diminuída de uma (n-1) e assim sucessivamente (n+2 e n-2, n+3 e n-3, n+4 e n-4 etc.) (figura 3).


Essa síntese não se dá ao acaso: depende, em parte, da seqüência de bases do intron, de modo que a nova seqüência é semelhante à do intron que a sintetiza. Este, por atuar como enzima, foi chamado de ‘ribozima’. Isso abriu a perspectiva teórica de um RNA capaz de copiar a si próprio, o que solucionaria o dilema do ovo e da galinha. No final dos anos 80, porém, cientistas como o bioquímico Robert Shapiro e o biólogo molecular Gerald Joyce indagaram: nas condições da Terra primitiva, o RNA poderia ser sintetizado a uma velocidade maior que a da sua decomposição por radiação ultravioleta, por hidrólise ou por reações com outras moléculas? A resposta foi não.


A partir daí, tem sido procurado outro polímero primordial com capacidade de auto-replicação. No momento, as pesquisas envolvem compostos com comportamento semelhante ao dos RNAs – os ‘análogos de RNA’, como aciclonucleosídeos deriva-


Figura 3. Quando purificados e postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, os íntrons (seqüências de RNA) retiram uma base e a transferem para outro fragmento



Vger= ∆[C] dos de glicerol. Tais compostos atraem grande interesse porque são muito mais resistentes que a ribose (presente no RNA). Portanto, podem ter se acumulado, nos ambientes aquáticos da Terra primitiva, em quantidade suficiente para a formação posterior dos ácidos nucléicos. O problema, nesse caso, é demonstrar a possibilidade da passagem de ‘um mundo de análogos de RNA’ para ‘um mundo de RNAs’.


Como se vê, a proposta da origem da vida a partir de um ‘polímero primordial’ de ácidos nucléicos ou análogos (o ovo) é rica em respostas que geram novas perguntas.




A hipótese da galinha


Mesmo após a descoberta do DNA, a hipótese da galinha (a origem da vida com base em compostos moleculares protéicos) manteve-se viva, graças ao trabalho de seus defensores, que buscaram argumentos a seu favor. O primeiro foi obtido em 1953 por um estudante de química norte-americano, Stanley Miller. Ele reproduziu, em laboratório, as condições que se acreditava serem as da atmosfera primitiva da Terra, conseguindo a formação de mais de 12 aminoácidos, alguns deles descritos depois em meteoritos. Hoje, esse experimento é contestado, pois moléculas orgânicas só se formariam se a atmosfera fosse quimicamente redutora, algo que não se considera possível na Terra primitiva.


Na época, o experimento gerou nova pergunta: os aminoácidos primordiais, nas condições pré-bióticas, poderiam ter se ligado para formar peptídios (os


‘tijolos’ das proteínas)? A resposta foi dada pelo biofísico norte-americano Sidney Fox e seu grupo em estudos sobre a polimerização de misturas de aminoácidos pela ação do calor. Ele aqueceu, a 170oC, uma mistura seca de aminoácidos por três horas, e obteve um sólido com aparência de plástico. Ao moer o material e misturá-lo à água, descobriu que uma parcela (até 15% do peso) era solúvel e continha cerca de 50 aminoácidos combinados. Fox chamou esse produto solúvel de ‘proteinóide’ e vem seguindo essa linha de pesquisa por toda a sua vida.


O grupo de Fox verificou depois que os proteinóides eram capazes de formar vesículas (microesferas). Estas, segundo Fox, teriam servido como fronteiras para células primitivas. Essa idéia é contestada por muitos, mas o citologista belga Christian De Duve (Nobel de medicina em 1974) ressalta sua importância: os proteinóides têm alguma atuação catalítica fraca e sua composição em aminoácidos é relativamente constante e reproduzível, apesar das condições aleatórias da receita. Isso indica que as ligações entre os aminoácidos da mistura inicial não ocorreriam só ao acaso, mas certas associações seriam privilegiadas.


Outro argumento é o de que, devido à natureza estritamente físico-química dos fatores envolvidos, a formação de proteinóides pode ter permanecido constante nas prováveis condições (calor intenso) anteriores ao surgimento de seres vivos, até que tais condições se alteraram. Ainda que a formação do ‘proteinóide’ pudesse aumentar, na Terra primitiva, restava um problema: haveria suficiente diversidade de ‘proteínas precursoras’ (ou ao menos de peptídios) com atividade catalítica?


A resposta foi fornecida, antes que a pergunta surgisse, pelo químico alemão Heinrich Wieland (1877- 1957), quando este demonstrou que aminoácidos contendo grupamentos do tipo tiol (tioésteres) podiam formar peptídios em temperaturas mais baixas que as usadas por Fox e na ausência de catalisadores. A importância do achado seria notada quando o bioquímico alemão (naturalizado norte-americano) Fritz Lipmann (1899-1986) descobriu que certos peptídios bacterianos (como o antibiótico gramididina-S) são sintetizados na natureza a partir de tioésteres. O próprio Lipmann sugeriu que o mecanismo de formação de peptídios, dependente de tioésteres, pode ter precedido o mecanismo sintetizador de proteína, dependente de RNA, na evolução da vida.


De Duve, no livro Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, argumenta que tioésteres são relevantes para a formação de peptídios por duas razões principais: 1) tioésteres são essenciais no metabolismo atual (razão que chamou de ‘congruência’); e 2) o grupamento tiol deriva do ácido sulfídri-


Figura 4. Sistema isocitrato/ octanol, onde micelas artificiais se auto-replicam, ou seja, mostram-se capazes de efetuar uma síntese orgânica a partir das propriedades estruturais definidas pelo próprio sistema co (H2S), o gás pútrido que impregnava o cenário físico-químico do berço da vida. Ele acrescenta ain- da o achado recente do grupo de Miller que mostra a viabilidade da síntese pré-biótica de dois tióis naturais, a coenzima-M (importante em bactérias produtoras de metano) e a cisteamina (componente indispensável da coenzima-A, essencial a todos os seres vivos atuais).


Mesmo aceitando o papel-chave dos tioésteres, resta uma dúvida: sua formação exigiria um aporte de energia. O próprio De Duve propôs uma solução: tioésteres se formariam espontaneamente a partir dos ácidos livres e dos tióis em um meio aquoso quente e ácido. Um meio assim é pouco aconchegante para seres vivos, mas trabalhos recentes indicam que bactérias termoacidófilas, de origem muito antiga, vivem em hábitats parecidos, perto de jatos hidrotérmicos submarinos.


Nem ovo, nem galinha: o chocar


Uma solução possível para o dilema ‘ovo/galinha’ – a autopoiese – desvia o eixo de discussão do problema, que passa de ‘como a vida se originou’ para ‘como a vida funciona’. Essa idéia orienta outros grupos de pesquisa que contribuem para o debate sobre a origem da vida. A autopoiese, como visto, é definida como uma rede de produção de moléculas constitutivas que regenera a si mesma, continuamente, e ao mesmo tempo especifica, através de uma fronteira física, o domínio onde essa rede se realiza. Essa definição não destaca qualquer molécula ou função.


Vários grupos usam esse referencial teórico em suas pesquisas. Um trabalho muito interessante, liderado pelo químico italiano Pier Luigi Luisi na Suíça, envolve a chamada ‘vida mínima sintética’: a tentativa de realizar a autopoiese usando apenas sistemas de reações químicas. Luisi produziu, com um sistema formado por isocitrato e octanol, micelas (pequenos agregados de compostos) que se auto-replicam, ou seja, efetuam uma síntese orgânica autônoma a partir das propriedades do seu sistema molecular. Tais micelas (figura 4) devem ser consideradas ‘vida sintética mínima’.


Tal afirmação parece um anticlímax, diante das discussões já apresentadas. É importante salientar, porém, que seu caráter radical baseia-se exatamente no desvio da questão (de como a vida começou para como a vida funciona, ainda que em uma condição sintética mínima). Luisi de fato conseguiu demonstrar um operar autopoiético mínimo, que não invoca moléculas ‘especiais’, como proteínas ou ácidos nucléicos.


Outra abordagem interessante é a do biólogo norte-americano Stuart Kaufman. Ele também propõe que a origem da vida nas condições da Terra primitiva pode estar associada a dinâmicas coletivamente ordenadas em sistemas complexos de reações químicas, descartando a necessidade de uma hierarquia molecular para isso.


A descoberta de seres como os micoplasmas, que têm em torno de 600 genes codificantes e um metabolismo baseado em, talvez, mil pequenas moléculas, levou Kaufman a afirmar que nenhuma molécula se auto-replica, e sim o sistema como um todo. Assim, a reprodução de um micoplasma (e de todos os seres vivos conhecidos) seria uma autocatálise. Essa hipótese considera que o problema da origem da vida deve passar pela autocatálise do sistema, como um todo, e não de uma molécula em especial. Kaufman argumenta que sistemas de reações químicas suficientemente complexos, como os que provavelmente existiram nos oceanos primitivos, poderiam alcançar uma diversidade molecular tal que levaria à formação de subsistemas que fossem autocatalíticos – ou seja, vivos.


Segundo o cientista, a razão entre reações e moléculas cresce à medida que aumenta a diversidade molecular de um sistema. Assim, quando essa diversidade atingir certo nível, quase todo polímero irá catalisar pelo menos uma reação. Em um nível crítico de diversidade, emergem do sistema geral inúmeros conjuntos de reações catalíticas conectadas. Se os polímeros que atuam como catalisadores forem também os produtos das reações catalisadas, cada subsistema que emerge pode se tornar coletivamente autocatalítico, ou seja, realizar a auto-reprodução.


John Bernal definia o ‘polímero primordial’ como aquele que deveria apresentar a capacidade de ‘autoduplicação e estocagem de informação genética’. Com base nesse argumento, é legítimo perguntar: como sistemas coletivamente autocatalíticos mantêm sua informação genética? Ou seja, tais sistemas podem evoluir, no sentido darwiniano da palavra? Esse é, certamente, o ponto mais frágil de hipóteses sobre a origem da vida como a de Kaufman. No entanto, alguns acreditam que, dentro de um amplo conjunto de sistemas autocatalíticos, podem ter surgido subsistemas moleculares que evoluíram no sentido de produzir ácidos nucléicos, ou seja, um código genético.


Esse talvez seja mais um dos momentos da história da biologia em que uma contradição (o dilema do ovo e da galinha) é ultrapassada por um novo modo de olhar o problema. No entanto, ainda parece cedo para avaliar, com o distanciamento necessário, o verdadeiro impacto desse novo ponto de vista sobre os programas de pesquisa e as soluções propostas para o problema da origem da vida na Terra.


Sugestões para leitura


DUVE, C. Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1997. 


EL HANI, C. N. & VIDEIRA, A. A. P. (org.) O que é a vida? Para entender a biologia do século XXI, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000. 


MARGULIS, L. & SAGAN, C. O que é vida? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002. 


MATURANA, H. & Varela, F. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo, Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. 


MURPHY, M. P. & O’Neill, L. A. J. (org.). O que é vida? 50 anos depois: especulações sobre o futuro da biologia, São Paulo, Ed. Unesp, 1997.


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Obs: trecho extraído de
O Que é Vida?

Luiz Antônio Botelho Andrade 
Departamento de Imunobiologia, Universidade Federal Fluminense

Edson Pereira da Silva 

Departamento de Biologia Marinha, Universidade Federal Fluminense 

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CIÊNCIA HOJE • vol. 32 • nº 191 • Março de 2003 • pag 16

Artigo publicado na Revista CIÊNCIA HOJE, Vol. 32, nº 191; 
tratando sobre as discussões sobre as origens da vida no planeta

Fonte: http://filosobio.blogspot.com.br/2015/10/o-que-e-vida-edson-pereira-luiz-andrade.html


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Porque as galinhas cruzam as estradas?
de Luiz Andrade

https://vimeo.com/40129504

Luiz Andrade e Edson Pereira da Silva - autores do livro intitulado "Porque as galinhas cruzam as estradas" - foram entrevistados por Jô Soares no dia 19 de março de 2012. O Programa foi veiculado pela Rede Globo de Televisão no dia 3 de abril de 2012. Neste video (editado) foi introduzido uma imagem do Cubo de Necker e a ilusão que pode ser provocada pelo mesmo quando o observador (câmera) se desloca.



https://twitter.com/vieiralent/status/187571693424877568


[ O Que é Vida? ] - por Edson Pereira & Luiz Andrade


O Que é Vida?



Luiz Antônio Botelho Andrade 
Departamento de Imunobiologia, Universidade Federal Fluminense

Edson Pereira da Silva 

Departamento de Biologia Marinha, Universidade Federal Fluminense 

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CIÊNCIA HOJE • vol. 32 • nº 191 • Março de 2003 • pag 16
Artigo publicado na Revista CIÊNCIA HOJE, Vol. 32, nº 191; 
tratando sobre as discussões sobre as origens da vida no planeta

Fonte: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAcyIAK/que-vida

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[Texto adaptado via OCR]

A vida constitui apenas uma parte ínfima do universo conhecido.

A origem dos seres vivos intriga o homem desde que o fenômeno vida ganhou, no século 19, uma ciência inteiramente dedicada a ele, a biologia. O estudo dessa questão baseou-se, por muito tempo, na idéia de que a vida teria surgido a partir de ‘moléculas precursoras’, sejam elas proteínas ou ácidos nucléicos (DNA/RNA). No final do século passado, porém, um novo modelo mudou o foco do problema – de ‘como a vida apareceu’ para ‘como a vida funciona’ –, levando a novas perguntas, que inspiram pesquisas com resultados instigantes.

(...)

A singularidade do fenômeno "vida" é perturbadora. A vida faz parte dos chamados ‘sistemas complexos’, para os quais o tempo é irreversível e construtivo – ou seja, pode-se reconstruir a história da evolução dos seres vivos e da própria vida, mas é impossível definir sua trajetória futura.


A vida é ainda um sistema altamente organizado, em contraste com um universo que sempre tende ao aumento da desordem (entropia), como afirma a segunda lei da termodinâmica. A contradição, porém, é apenas aparente. O aumento da organização do mundo vivo é local: diz respeito só aos seres vivos e não a todo o universo. Assim, tais seres absorvem do meio a energia (alimentos, no caso dos heterotróficos, e luz solar, no caso dos autotróficos) necessária para suas atividades e para manter sua organização, mas no balanço final o universo continua tendendo à desordem.

Mas, afinal, o que é vida? É uma pergunta difícil. Para entendê-la integralmente e assumir criticamente as conseqüências de qualquer de suas possíveis respostas, é necessário percorrer a história, já longa, da própria pergunta.

Uma pergunta sem lugar

As idéias sobre o mundo vivo não mudaram muito da Antigüidade até o Renascimento. Isso porque, nesse longo período, a pergunta ‘o que é vida?’ não teve um lugar próprio na filosofia ou na ciência, ou seja, o fenômeno vivo não foi concebido como uma questão em si. Nesse período, o interesse restringiu-se ao entendimento da ordem do universo – o vivo era apenas mais uma manifestação dessa ordem.

Os filósofos gregos mais antigos pretendiam compreender o universo pela arché (origem, princípio): para Tales (c. 624-545 a.C.), a origem de tudo era a água; para Anaxímenes (morto em torno de 500 a.C.), era o ar. Partindo deles, e passando por sábios como Aristóteles (384-322 a.C.), com seu sistema de causas (material, formal, motriz e final) que explicariam a essência das coisas, chegouse ao Renascimento ainda com a concepção de que cada corpo do mundo (estrela, pedra, planta, animal) seria sempre o produto de uma combinação específica de matéria e forma.

Por esse ponto de vista, a natureza – que coloca forma na matéria para criar astros, minerais ou seres vivos – é apenas um princípio que atua sob a condução de Deus. Logo, todo o universo tem uma só ordem e esta deve ser desvendada pela leitura cuida dosa da vontade divina. Tal leitura é uma decifração dos signos, ou seja, as formas do mundo. Podese dizer que, até o século 16, o papel do homem era o de decifrar um universo cifrado por Deus. A vida não suscitara uma discussão específica. A pergunta ‘o que é vida?’ não faz sentido nesse mundo. É uma pergunta sem lugar.


Uma pergunta fora do lugar

Na época clássica (séculos 17 e 18), ocorre uma ruptura com a idéia do universo como um conjunto de signos. Todas as coisas, inclusive os seres vivos, ganham uma especificidade. A forma visível deixa de ser um signo que pode informar sobre uma essência oculta, um testemunho das intenções da natureza, e passa a ser, ela mesma, o objeto de estudo. O conhecimento agora se dá pela observação e análise cuidadosa da natureza. O que importa é a vontade humana de saber, não a vontade do criador. O que se quer desvendar não é mais a ‘criação’, mas o ‘funcionamento’ da natureza.

Entretanto, embora nesse mundo os seres vivos sejam reconhecidos, seu estudo é parte das ciências físicas, hegemônicas na época. Conhecer o vivo implica entender seu funcionamento, com base no modelo de uma máquina. O vivo integra a grande mecânica que faz o universo girar e deve ser entendido pelas leis físicas.

Nesse período surge o animismo, ou seja, a idéia de continuidade entre matéria bruta e matéria viva. Os dois componentes presentes nas idéias animistas são uma valorização do vivo e de sua singularidade e uma reação ao mecanicismo dominante. A partir dessa reação surge a idéia de uma ‘força vital’ – notase, nessa expressão, que a natureza da explicação ainda vem das ciências físicas (força), mas já se busca uma especificidade, com o adjetivo (vital).

Assim, na época clássica, dominada pelo mecanicismo cartesiano, a vida passa a ser compreendida como mais uma máquina. Por isso, a pergunta ‘o que é vida’?, nesse período, está fora do lugar.

O lugar da pergunta

A analogia entre o ser vivo e uma máquina a vapor, surgida no século 18, ainda como herança do mecanicismo, será fundamental para a elaboração do conceito do vivo como um conjunto organizado e de qualidades específicas. A partir dessa analogia e das posições animistas, surgirá no final do século 18 uma concepção – o vitalismo – decisiva para a separação dos seres vivos do mundo das coisas e para a constituição de um novo campo do conhecimento: a biologia.

Se em seu início o estudo do funcionamento dos seres vivos – a fisiologia – usa métodos e conceitos da física e da química, as analogias e modelos usados acabam por transformar radicalmente a representação que se faz desses seres. Assim, o corpo vivo deixa de ser um conjunto de elementos (os órgãos) que funcionam e torna-se um conjunto de funções, cada uma com exigências precisas. O que confere ao vivo suas propriedades é um sistema de relações que produz um todo, não se reduz às partes. Surge então a idéia de um conjunto de qualidades específicas, que o século 19 chamará de vida.

Para o vitalismo, há uma descontinuidade intransponível entre a matéria bruta e a viva. O vitalismo, por assim dizer, cria a vida. Mas o que esta vem a ser? O século 19 contrapõe o vivo ao inanimado a partir da idéia de ordem que vence o caos. Para vencer o caos, o vivo conta com forças de formação e regulação – o que o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) chamou de “princípios interiores de ação”. Com isso, surge um objeto de conhecimento novo: a vida. Um novo campo exige renovados métodos, conceitos e linguagem, ou seja, demanda uma ciência nova: a biologia. É aí que a pergunta ‘o que é vida?’ fará sentido, será ouvida e produzirá respostas.

Três diferentes respostas, ou tendências, sustentaram, no século 20, a maioria dos estudos sobre a origem da vida. Essas tendências, descritas a seguir, têm grande número de adeptos (em livros didáticos, na mídia e em programas de pesquisa) e são, portanto, importantes para qualquer discussão sobre ‘o que é vida’.

Vida: um ‘pacote’ de predicados

Para alguns, a vida pode ser definida como um conjunto de propriedades ou funções dos seres vivos. Assim, bastaria identificá-las para considerar vivo um sistema ou organismo. Entre esses predicados típicos do vivo destacam-se as capacidades de nascer, crescer, viver e morrer. Outros, na mesma linha de raciocínio, defendem que essa lista deve ser estendida para explicar um fenômeno tão complexo quanto a vida. A lista ampliada teria mais propriedades (metabolismo, reprodução, código genético, evolução) e até estruturas ditas essenciais (ácidos nucléicos, células e outras).

Em princípio, ninguém discordaria com veemência dessas listas, mas elas têm duas fragilidades. Primeiro, muitos outros sistemas complexos exibem uma ou várias dessas características. Estrelas, por exemplo, nascem, crescem e morrem. Os vírus são um caso especial: eles seriam vivos (nesse caso, a definição acima estaria incorreta), pré-vivos (seriam

Escultura de criança andróide por Pierre Jaquet-Droz (c.1772). Na época clássica, a vida era entendida como uma máquina algo anterior à vida, na evolução), paravivos (seriam parasitos celulares) ou pós-vivos (teriam evoluído a partir de estruturas genéticas)? O segundo ponto frágil decorre do primeiro: como definir o momento da transição de inanimado para vivo? Imaginar um momento em que todos os predicados surgissem a um só tempo é muito próximo de imaginar o instante da ‘criação divina’.

A vida como um código

Em 1943, o austríaco Erwin Schrödinger (1887- 1961), que 10 anos antes havia recebido o prêmio Nobel de física, fez uma série de palestras sobre a vida. O conteúdo de suas palestras (reunidas no livro O que é vida?, de 1944) teve grande influência nos meios científicos, inclusive na descoberta da estrutura da molécula de DNA e no desenvolvimento da biologia molecular. Mais que tudo, esse trabalho é um testemunho da influência, no campo da biologia, de idéias reducionistas, tendo como arauto um dos melhores filhos da ‘ciência por excelência’, a física moderna.

Schrödinger falou sobre dois temas básicos: a natureza da hereditariedade e a ordem a partir da desordem. Na essência, suas idéias são simples: o gene deveria ser um tipo de cristal aperiódico, que armazenaria informação através de um código em sua estrutura. Essa profética afirmação seria confirmada com o modelo de dupla hélice do DNA. Quanto ao segundo tema, Shrödinger ressaltou que o ser vivo mantém sua ordem interna aumentando a desordem no meio externo, e portanto sem contrariar a segunda lei da termodinâmica.

Em um desdobramento dessas idéias, o bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976), que ganharia o Nobel de medicina em 1965, definiu a vida, no livro O acaso e a necessidade (de 1970), como um sistema capaz de se perpetuar no tempo graças à manutenção de sua informação. Esta, segundo ele, estaria situada em um programa genético. Assim, todo ser vivo tem: 1. um projeto interno, que se realiza em suas estruturas (propriedade chamada de ‘teleonomia’); 2. capacidade de realizar tais estruturas, sem interferência de forças externas (isso depende, portanto, de interações ‘morfogenéticas’ internas); e 3. poder de reproduzir e transmitir, inalterada, a informação sobre a própria estrutura (propriedade chamada de ‘invariância’).

Esse ponto de vista enfatiza a importância do código e do programa genético para explicar o fenômeno complexo da vida. Isso influenciou fortemen- te os avanços da biologia molecular e fortaleceu a idéia, dominante até hoje, de que a compreensão da vida se reduz ao conhecimento da estrutura e do funcionamento dos genes.



A vida como um operar

Um modelo alternativo para explicar o que é vida – a ‘autopoiese’ – foi proposto pelos neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1947-2001). Pode-se condensar a nova idéia em dois aforismos: ‘viver é conhecer’ e ‘conhecer é fazer’. Para eles, todo ser vivo, ao interagir com o meio, é capaz de conhecer, ou exibir uma conduta adequada (um ‘operar efetivo’), mas sua identidade (organização) não se altera nos limites ou domínios de sua existência (ver ‘Sistema, organização e estrutura’).


Segundo o modelo da autopoiese, todos os seres vivos (os organismos atuais e aqueles que já existiram) têm uma mesma organização. Isso poderia explicar por que se usa, desde sempre, apenas uma palavra – vida – para distinguir todos os seres que denominamos vivos. Todo ser vivo é considerado, nesse modelo, uma unidade autopoiética (um sistema), cuja organização é definida por uma rede de interações moleculares concatenadas, que produz: 1) os próprios componentes que participam das




Sistema, organização e estrutura


O modelo da autopoiese exige uma redefinição de termos como sistema, organização e estrutura. ‘Sistema’ seria qualquer coleção de elementos que, através de suas interações preferenciais, estabelece uma fronteira operacional, que o separa de outros elementos com os quais também pode interagir. Já a ‘organização’ é dada pelas relações (entre componentes) que devem existir ou ocorrer para que algo exista. A organização confere a um conjunto de elementos sua unidade de classe. Para designar um objeto (uma cadeira, por exemplo) precisamos reconhecer as relações entre seus componentes (pernas, encosto e assento) que tornam o ‘sentar’ possível. Já a ‘estrutura’ (cujo conceito deriva do conceito de organização) é o conjunto das relações efetivas entre os componentes de uma organização ou de um sistema. No exemplo da cadeira, ela pode ser descrita especificando-se, além das relações entre seus componentes (pernas, assento e encosto), os diferentes materiais (madeira, plástico, couro, ferro, alumínio) de que é feita. Assim, a mesma organização pode ser efetivada por diferentes estruturas.


Na maioria dos textos sobre o metabolismo, o programa genético (código), está hierarquicamente acima do resto das biomoléculas participantes da rede metabólica. Assim, os ácidos nucléicos (genes) ganham posição de destaque nessa percepção linear e unidirecional do metabolismo: ‘DNA e/ou RNA Proteínas.’ O modelo da autopoiese, porém, enfatiza a circularidade, ou fechamento operacional, da rede metabólica, levando a nova representação: ‘DNA e/ou RNA Proteínas.’

Essa idéia pode ser visualizada em uma concepção do organismo na qual o código não tem posição ‘superior’ e pode ser representado por pontos indiferenciados (figura 1). Não são destacados, nessa concepção, este ou aquele ponto ou mesmo a complexidade das reações pontuais de catálise (aceleração de reações bioquímicas por enzimas). O que é ressaltado é o sistema que emerge, como um todo, e que assume uma configuração autocatalítica, já que várias biomoléculas atuam, simultaneamente, como catalisadores e como substratos para reações. 



Nutrientes Membrana


Excreções pare a célula do entorno, também é essencial para a existência do vivo: inúmeras reações catalíticas e autocatalíticas só ocorrem de modo eficiente e concatenado dentro dos limites da célula. Fora deles, com os componentes diluídos no meio, algumas dessas reações nunca ocorreriam, por razões termodinâmicas ou pela improbabilidade de encontros efetivos. Assim, toda célula viva tem uma membrana plasmática contínua, delgada e permeável, que permite trocas entre ela e o meio, mas preserva sua identidade molecular (figura 2).


Em suma, a autopoiese vê a organização do vivo como uma rede de produção de moléculas constitutivas que se regenera continuamente e, ao mesmo tempo, define (através de uma fronteira) o domínio onde tal rede se realiza. É importante ressaltar que tudo isso são ‘comentários de um observador’. Para Maturana, as explicações que criamos sobre o mundo real não são ‘a realidade’, mas ‘ recortes da realidade’.







O ovo ou a galinha?


A observação das formas atuais de vida indica que mesmo o mais simples dos seres vivos é um sistema altamente complexo, onde se destacam duas classes de moléculas: 1) as ‘proteínas’, que constituem a maquinaria enzimática que realiza as reações catalíticas que mantêm a vida; e 2) os ‘ácidos nucléicos’, responsáveis pela manutenção e herança das informações do operar do ser vivo.


Proteínas realizam as reações vitais, mas só operam segundo o código contido no DNA, e este também é inoperante sem o aparato protéico/enzimático especificado por ele próprio. A total interdependência entre essas moléculas essenciais remete a uma das principais questões ligadas à origem da vida: o chamado ‘dilema do ovo e da galinha’. Na origem da vida na Terra, quem veio primeiro: os genes ou as proteínas?


É possível imaginar a presença, nos oceanos primitivos, de sistemas organizados de reações enzimáticas, do tipo coarcevados (gotículas ricas em certos compostos que surgem por separação de fase em soluções coloidais), mas como se perpetuariam e evoluiriam sem um código genético? Os ácidos nucléicos também poderiam surgir nas condições da Terra primitiva, mas como formariam um sistema complexo e organizado sem interagir com o aparato protéico/enzimático?


O dilema do ovo e da galinha ainda não tem uma solução consensual. Assim, para discuti-lo, é conveniente apresentar os principais caminhos e abordagens dos programas de pesquisa que abordam a questão da origem da vida.


Figura 1. Representação de uma rede metabólica circular que produz, para um observador, um fechamento operacional


Figura 2. A organização do vivo como uma rede circular de produção de moléculas constitutivas que no seu operar especifica uma fronteira




A hipótese do ovo


Em 1953, o biólogo norte-americano James Watson e o físico inglês Francis Crick publicaram o modelo da dupla hélice, que explicava a estrutura da molécula de DNA, e sugeriram que ela preenchia os requisitos para servir como um código, armazenando informação sobre a constituição e o funcionamento do organismo, e para transferir tal informação, por cópia, aos descendentes dele. No final do artigo, publicado na revista científica Nature, eles afirmam: “O pareamento específico que postulamos sugere de pronto um possível mecanismo copiador para o material genético.”


Era o começo daquilo que chamamos aqui de a hipótese do ovo (origem da vida com base em compostos moleculares de ácidos nucléicos ou similares). A partir desse momento, começou a ruir a idéia de que a vida teria se originado de um coacervado protéico, já que se tornou difícil imaginar como tais estruturas poderiam evoluir até uma forma de vida, por mais primitiva que fosse, sem um código genético.


Antes mesmo da descoberta de Watson e Crick, o químico irlandês John Bernal (1901-1971) afirmara, em 1951, que o ‘polímero primordial’, com o qual a vida teria começado, deveria ser capaz de estocar informação e de se autoduplicar. O DNA e as proteínas eram os candidatos naturais a esse papel. Sabia-se que era possível obter polímeros similares a proteínas e com atividade catalítica a partir do aquecimento de misturas de aminoácidos. Era impossível, porém, imaginar como esses ‘precursores’ manteriam um mecanismo eficiente de estoque e transmissão de informações, já que se formavam em um processo altamente aleatório.


Após 1953, desvendada a estrutura do DNA, as moléculas de ácidos nucléicos (DNA/RNA) ganharam papel central nos estudos sobre a origem da vida. Elas estocam e replicam a informação genética, mas precisam das proteínas para a autoduplicação. Isso significa que, nas condições da Terra primitiva, não serviriam de molde para uma ‘cópia’ sem a ajuda de enzimas. O DNA é ainda altamente resistente à decomposição por hidrólise, o que, no caso de polímeros precursores semelhantes ao DNA, dificultaria a reciclagem dos monômeros, ou seja, a reutilização ou rearranjo deles. Portanto, parece improvável a colonização do ambiente aquático da Terra primitiva por polímeros primordiais de DNA.


Nos anos 70, nos Estados Unidos, as equipes do bioquímico Thomas Cech (norte-americano) e do biólogo Sidney Altman (canadense) comprovaram, em estudos independentes, que certas seqüências de RNA (chamadas de ‘introns’) eram capazes de acelerar a velocidade de algumas reações. Ou seja, atuavam como enzimas. Esses trabalhos inauguraram aquilo que se convencionou chamar de estudos sobre a origem da vida a partir de ‘um mundo de RNAs’.


Em 1986, descobriu-se que os introns participavam do autoprocessamento do RNA precursor: introns purificados, postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, mostraram-se capazes de retirar uma base de um deles e transferi-la para outro. Assim, a partir de duas moléculas de mesmo tamanho (n), o intron produz uma molécula acrescida de uma base (n+1) e outra diminuída de uma (n-1) e assim sucessivamente (n+2 e n-2, n+3 e n-3, n+4 e n-4 etc.) (figura 3).


Essa síntese não se dá ao acaso: depende, em parte, da seqüência de bases do intron, de modo que a nova seqüência é semelhante à do intron que a sintetiza. Este, por atuar como enzima, foi chamado de ‘ribozima’. Isso abriu a perspectiva teórica de um RNA capaz de copiar a si próprio, o que solucionaria o dilema do ovo e da galinha. No final dos anos 80, porém, cientistas como o bioquímico Robert Shapiro e o biólogo molecular Gerald Joyce indagaram: nas condições da Terra primitiva, o RNA poderia ser sintetizado a uma velocidade maior que a da sua decomposição por radiação ultravioleta, por hidrólise ou por reações com outras moléculas? A resposta foi não.


A partir daí, tem sido procurado outro polímero primordial com capacidade de auto-replicação. No momento, as pesquisas envolvem compostos com comportamento semelhante ao dos RNAs – os ‘análogos de RNA’, como aciclonucleosídeos deriva-


Figura 3. Quando purificados e postos em presença de pequenos fragmentos de RNA, os íntrons (seqüências de RNA) retiram uma base e a transferem para outro fragmento



Vger= ∆[C] dos de glicerol. Tais compostos atraem grande interesse porque são muito mais resistentes que a ribose (presente no RNA). Portanto, podem ter se acumulado, nos ambientes aquáticos da Terra primitiva, em quantidade suficiente para a formação posterior dos ácidos nucléicos. O problema, nesse caso, é demonstrar a possibilidade da passagem de ‘um mundo de análogos de RNA’ para ‘um mundo de RNAs’.


Como se vê, a proposta da origem da vida a partir de um ‘polímero primordial’ de ácidos nucléicos ou análogos (o ovo) é rica em respostas que geram novas perguntas.




A hipótese da galinha


Mesmo após a descoberta do DNA, a hipótese da galinha (a origem da vida com base em compostos moleculares protéicos) manteve-se viva, graças ao trabalho de seus defensores, que buscaram argumentos a seu favor. O primeiro foi obtido em 1953 por um estudante de química norte-americano, Stanley Miller. Ele reproduziu, em laboratório, as condições que se acreditava serem as da atmosfera primitiva da Terra, conseguindo a formação de mais de 12 aminoácidos, alguns deles descritos depois em meteoritos. Hoje, esse experimento é contestado, pois moléculas orgânicas só se formariam se a atmosfera fosse quimicamente redutora, algo que não se considera possível na Terra primitiva.


Na época, o experimento gerou nova pergunta: os aminoácidos primordiais, nas condições pré-bióticas, poderiam ter se ligado para formar peptídios (os


‘tijolos’ das proteínas)? A resposta foi dada pelo biofísico norte-americano Sidney Fox e seu grupo em estudos sobre a polimerização de misturas de aminoácidos pela ação do calor. Ele aqueceu, a 170oC, uma mistura seca de aminoácidos por três horas, e obteve um sólido com aparência de plástico. Ao moer o material e misturá-lo à água, descobriu que uma parcela (até 15% do peso) era solúvel e continha cerca de 50 aminoácidos combinados. Fox chamou esse produto solúvel de ‘proteinóide’ e vem seguindo essa linha de pesquisa por toda a sua vida.


O grupo de Fox verificou depois que os proteinóides eram capazes de formar vesículas (microesferas). Estas, segundo Fox, teriam servido como fronteiras para células primitivas. Essa idéia é contestada por muitos, mas o citologista belga Christian De Duve (Nobel de medicina em 1974) ressalta sua importância: os proteinóides têm alguma atuação catalítica fraca e sua composição em aminoácidos é relativamente constante e reproduzível, apesar das condições aleatórias da receita. Isso indica que as ligações entre os aminoácidos da mistura inicial não ocorreriam só ao acaso, mas certas associações seriam privilegiadas.


Outro argumento é o de que, devido à natureza estritamente físico-química dos fatores envolvidos, a formação de proteinóides pode ter permanecido constante nas prováveis condições (calor intenso) anteriores ao surgimento de seres vivos, até que tais condições se alteraram. Ainda que a formação do ‘proteinóide’ pudesse aumentar, na Terra primitiva, restava um problema: haveria suficiente diversidade de ‘proteínas precursoras’ (ou ao menos de peptídios) com atividade catalítica?


A resposta foi fornecida, antes que a pergunta surgisse, pelo químico alemão Heinrich Wieland (1877- 1957), quando este demonstrou que aminoácidos contendo grupamentos do tipo tiol (tioésteres) podiam formar peptídios em temperaturas mais baixas que as usadas por Fox e na ausência de catalisadores. A importância do achado seria notada quando o bioquímico alemão (naturalizado norte-americano) Fritz Lipmann (1899-1986) descobriu que certos peptídios bacterianos (como o antibiótico gramididina-S) são sintetizados na natureza a partir de tioésteres. O próprio Lipmann sugeriu que o mecanismo de formação de peptídios, dependente de tioésteres, pode ter precedido o mecanismo sintetizador de proteína, dependente de RNA, na evolução da vida.


De Duve, no livro Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, argumenta que tioésteres são relevantes para a formação de peptídios por duas razões principais: 1) tioésteres são essenciais no metabolismo atual (razão que chamou de ‘congruência’); e 2) o grupamento tiol deriva do ácido sulfídri-


Figura 4. Sistema isocitrato/ octanol, onde micelas artificiais se auto-replicam, ou seja, mostram-se capazes de efetuar uma síntese orgânica a partir das propriedades estruturais definidas pelo próprio sistema co (H2S), o gás pútrido que impregnava o cenário físico-químico do berço da vida. Ele acrescenta ain- da o achado recente do grupo de Miller que mostra a viabilidade da síntese pré-biótica de dois tióis naturais, a coenzima-M (importante em bactérias produtoras de metano) e a cisteamina (componente indispensável da coenzima-A, essencial a todos os seres vivos atuais).


Mesmo aceitando o papel-chave dos tioésteres, resta uma dúvida: sua formação exigiria um aporte de energia. O próprio De Duve propôs uma solução: tioésteres se formariam espontaneamente a partir dos ácidos livres e dos tióis em um meio aquoso quente e ácido. Um meio assim é pouco aconchegante para seres vivos, mas trabalhos recentes indicam que bactérias termoacidófilas, de origem muito antiga, vivem em hábitats parecidos, perto de jatos hidrotérmicos submarinos.


Nem ovo, nem galinha: o chocar


Uma solução possível para o dilema ‘ovo/galinha’ – a autopoiese – desvia o eixo de discussão do problema, que passa de ‘como a vida se originou’ para ‘como a vida funciona’. Essa idéia orienta outros grupos de pesquisa que contribuem para o debate sobre a origem da vida. A autopoiese, como visto, é definida como uma rede de produção de moléculas constitutivas que regenera a si mesma, continuamente, e ao mesmo tempo especifica, através de uma fronteira física, o domínio onde essa rede se realiza. Essa definição não destaca qualquer molécula ou função.


Vários grupos usam esse referencial teórico em suas pesquisas. Um trabalho muito interessante, liderado pelo químico italiano Pier Luigi Luisi na Suíça, envolve a chamada ‘vida mínima sintética’: a tentativa de realizar a autopoiese usando apenas sistemas de reações químicas. Luisi produziu, com um sistema formado por isocitrato e octanol, micelas (pequenos agregados de compostos) que se auto-replicam, ou seja, efetuam uma síntese orgânica autônoma a partir das propriedades do seu sistema molecular. Tais micelas (figura 4) devem ser consideradas ‘vida sintética mínima’.


Tal afirmação parece um anticlímax, diante das discussões já apresentadas. É importante salientar, porém, que seu caráter radical baseia-se exatamente no desvio da questão (de como a vida começou para como a vida funciona, ainda que em uma condição sintética mínima). Luisi de fato conseguiu demonstrar um operar autopoiético mínimo, que não invoca moléculas ‘especiais’, como proteínas ou ácidos nucléicos.


Outra abordagem interessante é a do biólogo norte-americano Stuart Kaufman. Ele também propõe que a origem da vida nas condições da Terra primitiva pode estar associada a dinâmicas coletivamente ordenadas em sistemas complexos de reações químicas, descartando a necessidade de uma hierarquia molecular para isso.


A descoberta de seres como os micoplasmas, que têm em torno de 600 genes codificantes e um metabolismo baseado em, talvez, mil pequenas moléculas, levou Kaufman a afirmar que nenhuma molécula se auto-replica, e sim o sistema como um todo. Assim, a reprodução de um micoplasma (e de todos os seres vivos conhecidos) seria uma autocatálise. Essa hipótese considera que o problema da origem da vida deve passar pela autocatálise do sistema, como um todo, e não de uma molécula em especial. Kaufman argumenta que sistemas de reações químicas suficientemente complexos, como os que provavelmente existiram nos oceanos primitivos, poderiam alcançar uma diversidade molecular tal que levaria à formação de subsistemas que fossem autocatalíticos – ou seja, vivos.


Segundo o cientista, a razão entre reações e moléculas cresce à medida que aumenta a diversidade molecular de um sistema. Assim, quando essa diversidade atingir certo nível, quase todo polímero irá catalisar pelo menos uma reação. Em um nível crítico de diversidade, emergem do sistema geral inúmeros conjuntos de reações catalíticas conectadas. Se os polímeros que atuam como catalisadores forem também os produtos das reações catalisadas, cada subsistema que emerge pode se tornar coletivamente autocatalítico, ou seja, realizar a auto-reprodução.


John Bernal definia o ‘polímero primordial’ como aquele que deveria apresentar a capacidade de ‘autoduplicação e estocagem de informação genética’. Com base nesse argumento, é legítimo perguntar: como sistemas coletivamente autocatalíticos mantêm sua informação genética? Ou seja, tais sistemas podem evoluir, no sentido darwiniano da palavra? Esse é, certamente, o ponto mais frágil de hipóteses sobre a origem da vida como a de Kaufman. No entanto, alguns acreditam que, dentro de um amplo conjunto de sistemas autocatalíticos, podem ter surgido subsistemas moleculares que evoluíram no sentido de produzir ácidos nucléicos, ou seja, um código genético.


Esse talvez seja mais um dos momentos da história da biologia em que uma contradição (o dilema do ovo e da galinha) é ultrapassada por um novo modo de olhar o problema. No entanto, ainda parece cedo para avaliar, com o distanciamento necessário, o verdadeiro impacto desse novo ponto de vista sobre os programas de pesquisa e as soluções propostas para o problema da origem da vida na Terra.


Sugestões para leitura


DUVE, C. Poeira vital – A vida como um imperativo cósmico, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1997.


EL HANI, C. N. & VIDEIRA, A. A. P. (org.) O que é a vida? Para entender a biologia do século XXI, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.


MARGULIS, L. & SAGAN, C. O que é vida? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002.


MATURANA, H. & Varela, F. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo, Porto Alegre, Artes Médicas, 1997.


MURPHY, M. P. & O’Neill, L. A. J. (org.). O que é vida? 50 anos depois: especulações sobre o futuro da biologia, São Paulo, Ed. Unesp, 1997.



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Luiz Antonio Andrade e Edson Pereira da Silva 
(UFF)

O que é vida? Qual a sua origem? Essas questões fundamentais ainda estão em aberto. Contudo, tão instigantes quanto as possíveis respostas são as reflexões e hipóteses provisoriamente construídas e eventualmente abandonadas com o objetivo de respondê-las. A história desse percurso - que envolve muitas idas e vindas em temas da biologia, genética e epistemologia - é o assunto do livro “Por que as galinhas cruzam as estradas?”,  lançado no final de 2011 pelos biólogos  Luiz Antonio Botelho Andrade e Edson Pereira da Silva, e do nosso próximo Colóquio, 3 de julho, terça-feira, às 16 horas.

Uma revisão das teses e antíteses surgidas no rastro dos debates sobre o surgimento da vida e a evolução das espécies, “Por que as galinhas cruzam as estradas?” é uma indicação bem humorada dos autores, ambos professores e pesquisadores da UFF, de que as diversas teorias evolutivas da vida apontam para uma estrada que qualquer ser vivo tem que cruzar - a evolução darwiniana – e procuram uma resposta final para o conhecido dilema do ovo e da galinha – afinal, quem veio primeiro?

Luiz Antonio Botelho de Andrade tem doutorado em Imunobiologia pela Universidade de Paris VI e Instituto Pasteur, França (1990). É graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com mestrado em Bioquímica e Imunologia também pela UFMG, em 1983. Trabalha nas áreas de Imunologia, Educação e Epistemologia, e atua principalmente nos seguintes temas: Imunologia, Biologia do Conhecimento e Ensino de Ciências.

Edson Pereira da Silva tem doutorado em Genética pela University of Wales-Swansea (1998) e pós-doutorado em Genética Molecular pela University of Swansea. É graduado em Biologia Marinha pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (1988), com mestrado em Genética também pela UFRJ, em 1991. Trabalha na área de Genética, com ênfase em Genética de Populações de Organismos Marinhos, atua principalmente nos seguintes temas: Genética Molecular, Conservação, Bioinvasão, Teoria Evolutiva, Epistemologia e Ensino de Ciências.
Os encontros do Ciclo de Colóquios acontecem semanalmente, sempre às 16 horas, no auditório do 6. andar do CBPF, localizado na rua Dr. Xavier Sigaud, 150, Urca, próximo ao shopping Rio Sul. A programação do evento pode ser acompanhada em www.coloquioscbpf.blogspot.com.

Fonte: http://portal.cbpf.br/coloquio/porque-as-galinhas-cruzam-as-estradas-historia-das-ideias-sobre-a-vida-e-sua-origem/952

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