quarta-feira, 1 de julho de 2015

A questão epistemológica da cientificidade atual – por Hilton Japiassú.

A questão epistemológica da cientificidade atual
– por Hilton Japiassú.

Na visão ocidental da antiguidade, o mundo era entendido a partir de um esquema de um Cosmos organizado hierarquicamente no interior de um espaço fechado, pensamento este, traduzido pela síntese aristotélica O mundo formava um Cosmos físico e bem ordenado, criado e garantido por Deus. A terra ocupava o centro do Universo sendo o homem o centro e causa da criação divina. Ao homem cabia ser o expectador da criação divina e não lhe era dado o direito de intervir nas questões da natureza.
Cabe à Renascença, enquanto movimento de revisão de uma época e não só movimento nas artes, o mérito de ter destruído essa síntese. Despojado das coisas em que acreditava, o homem acossado pela dúvida foi dominado pela credulidade. Porém a destruição da síntese aristotélica foi fundamental para o nascimento da ciência moderna.
Galileu rompe com a Renascença através de sua física. Por isso, o fundador da ciência moderna foi incontestavelmente Galileu. Foi ele quem introduziu um corte epistemológico na história do pensamento universal. Inaugura-se um novo tipo de inteligibilidade. Galileu descobre a linguagem da natureza, que segundo ele, é a linguagem da matemática. A natureza pode ser conhecida através da experiência, desde que a ela se aplique a interpretação da matemática para se obter as respostas às questões que lhe colocamos. Está, assim, decretada a destruição da visão grega representada pela síntese aristotélica. É a geometrização do espaço. O universo, doravante, será compreendido sob a forma de fatos físicos e
matematicamente calculáveis. O campo epistemológico deve subordinar-se às disciplinas da Razão. A matemática e a Física são as ciências que emprestam seu modelo de inteligibilidade. Nascem as ci6encias naturais no sentido de se libertarem da tutela da filosofia.
Após Galileu, entretanto na era moderna, o homem se define essencialmente como razão. O centro de interesse deixa de ser Cosmos para ser o próprio homem o centro do conhecimento. No novo mundo, dá-se uma leitura antropológica e, ao mesmo tempo, antropocêntrica. A verdade surge como uma obra humana, cujas estruturas devem ser examinadas. Tudo começa com Descartes, com a filosofia do sujeito pensante, e encontra sua consagração em Hegel. Descartes se estabelece na consciência certeza de si mesma. Hegel vem consagrar esse ponto de vista, pois para ele a consciência encontra sua realização no Espírito, enquanto Saber e Razão absoluto. E esta é a base clássica do pensamento filosófico, moderno. Vivem-se, neste momento de representação, onde representante é igual a representado, ou seja, constitui o período de um equilíbrio entre a idéia teórica e a proposição empírica dos fatos. As constatações empíricas confirmam com as idéias.
Nosso próximo ponto de reflexão vai ao nascimento das ciências humanas, marcado pelas primeiras tentativas da teoria geral das até então conhecidas como ciências morais. Foi Augusto Comte que, de fato, elaborou
Essa teoria geral fruto de sua concepção filosófica da história, e de sua classificação das ciências e de sua concepção da sociologia como ciência englobante. O essencial da epistemologia de Comte está contido em sua lei dos Três Estados e em sua classificação das ciências. A lei dos Três Estados consiste na afirmação de que cada ramo de nosso conhecimento passa sucessivamente por três estados históricos distintos. O estado teológico, o metafísico e o positivo, o único que levará ao verdadeiro conhecimento.
Para Comte, a ciência é conhecimento que procura descobrir as leis dos fenômenos. Ao se classificar as ciências, Comte as classifica em cinco ciências fundamentais: a astronomia, a física, a química, a fisiologia e a física social. Portanto a sociologia é, ao mesmo tempo, uma ciência particular (física social cujo objeto de estudo é a análise dos fenômenos sociais) e, ao mesmo tempo, uma ciência geral, (englobando todas as disciplinas que denominamos humanas), e uma ciência filosófica (cujo objetivo é explicar a evolução de uma sistematização do conjunto das ciências e das instituições, do saber e da ação). Na visão, a sociologia só tem acesso à cientificidade ao se tornar positiva. As ciências humanas nasceram em oposição ao saber filosófico, sob o qual estavam subordinadas. Pelo modelo de toda cientificidade, se acreditava que o atraso das disciplinas humanas poderia ser recuperado, contanto que estas adotassem as mesmas normas e os mesmos métodos já em vigor no domínio das ciências naturais. Pensava- se que se bastaria naturalizar os fenômenos de ordem humana para se estar em condições de explicá-lo. Assim, pelo caráter englobante da sociologia as ciências sociais nascem positivas. Aqui, são duas as questões:
1) O problema do positivismo, como método para as ciências humanas, é que ele seja explicativo da conduta humana observável. O caso é que fenômenos e processos humanos são apenas representantes de algo que não pode ser explicado desde ali, da observação imediata, mas sim apreendendo e
compreendendo segunda a maneira de discursividade do sujeito.
2) De outro lado, o valor do positivismo para as ciências humanas é superar a determinação idealista do sujeito pensante enquanto consciente de si. A idéia clara passa a ser considerada como enganadora, e é na experiência do engano que vai se comprovar ou não a idéia.
A próxima ruptura epistemológica ocorre sob a responsabilidade de Marx, Nietzsche e Freud, os três “mestres da suspeita”, no sentido de terem denunciado a consciência como falsa, enganadora. O que eles atacam em primeiro lugar é a ilusão da consciência de si. As coisas não são o que parecem, são duvidosas. Temos o direito de duvidar do que a consciência nos apresenta. O que pretendem não é a destruição da consciência, mas sua amplitude enquanto tarefa de tornar-se consciente. A partir desses autores é uma nova relação que se instaura entre representante e representado, patente e latente. Tal relação corresponde aquilo que a consciência instaura entre a aparência e a realidade da coisa. Assim, a categoria essencial da consciência passa a ser a relação oculta mostrada. Para Paul Ricoeur no projeto que esses três autores tentaram construir por caminhos diferentes houve um esforço de fazerem coincidir seus métodos, “consciente” de decifração com o trabalho “inconsciente” que atribuem ao homem. Coloca ainda o mesmo autor que: “o que pretende Marx é liberar a pré-existência pelo conhecimento da necessidade; mas essa liberação é inseparável de “uma tomada de consciência “que é uma réplica vitoriosa, às mistificações da consciência falsa. O que pretende Nietzche é o aumento do poder do homem, a restauração de sua força. O que pretende Freud é que o analisado, ao fazer seu sentido que lhe era estranho, amplie seu campo de consciência, viva melhor e, finalmente, seja um pouco mais livre e se possível, um pouco mais feliz. Está a partir desses três autores decretado o fim da base clássica do pensamento filosófico. Para Japiassu, a questão da deposição do sujeito pensante é uma questão dupla:
a) Para a epistemologia das ciências humanas, deixando a base kantiana de lado para a sua epistemologia, as ciências humanas pretendem encontrar um sujeito real na sua condição humana, sendo a principal característica, este ser que encerra em si mesmo uma dupla dimensão, consciente e inconsciente.
b) Para a filosofia, porque doravante não se pode mais introduzir-se na filosofia pelo princípio cartesiano que a conduz à consciência- consciente de si.
Foi, certamente, Freud quem atingiu de cheio a filosofia idealista do sujeito pensante, pois é com ele, pela utilização de um método rigoroso que o inconsciente galga o lugar de uma verdadeira descoberta científica. Sua interpretação dos sonhos revela a existência de um conteúdo latente que se encontra despistado pelo conteúdo manifesto. Donde a necessidade de se decodificar a mensagem inconsciente vinculada pelo próprio discurso consciente. E, aí, a consciência não pode mais ser autônoma. A acessibilidade ao inconsciente não algo fora, ao lado ou abaixo da consciência, não pode mais ser feita diretamente. E preciso calar a censura para que o sujeito fale, para que fale sua consciência no mesmo lugar em que fala seu inconsciente. Inconsciente que diz o que o sujeito não quis dizer, mas é onde está a significação do seu ato humano. E, portanto, pela discursividade do sujeito que se apreende algo dele.
E a esse ponto que a ciência de Freud vem colocar as ciências humanas em um impasse e, ao mesmo tempo, dar-lhe uma resposta. Se o sujeito não é mais aquele que poderíamos acreditar, o sujeito- pensante, trata-se, pois, de um sujeito consciente e inconsciente que só é compreensível por um método que interpenetre os estados de consciência.
3) A questão epistemológica propriamente dita.
O problema epistemológico das ciências humanas consiste em saber se podemos excluí-las de toda a assimilação aos modelos explicativos das ciências naturais ou se devemos fazer uso de outros modelos. Na origem desse problema encontra-se a identidade do sujeito científico com o objetivo de estudo. O que se afirma é que a situação existencial desse sujeito não pode ser posta entre parênteses. A situação é a seguinte: de um lado, os fenômenos a serem estudados só podem ser atingidos através da compreensão que deles tem o sujeito; e tal compreensão é determinada pelo conjunto da situação existencial do sujeito; e é essa situação que se tenta compreender; do outro, o sujeito modifica o objeto de seu conhecimento, pois o conhecimento que ele adquire dele mesmo enquanto objeto e vai transformá-lo o mesmo tempo enquanto sujeito e enquanto objeto. Assim, no processo de conhecimento das ciências humanas há uma circularidade. A realidade humana é constituída apenas de uma mistura inextricável de fatos de consciência e de situações objetivas. Donde a necessidade de um método compreensivo, suscetível de penetrar no interior dos estados de consciência. Todavia, a pré-compreensão utilizada pelo sujeito interpretante não se reduz a uma simples pré-compreensão metodológica, pois não visa a um esquema operatório e objetivável, mas à vida de uma subjetividade. E nesse sentido que todo ato de pré-compreensão pertence ao desdobramento de um projeto existencial, e o coloca em questão em sua efetuação. Em outras palavras: toda tentativa de um comportamento dotado de sentido é ao mesmo tempo interpretação de si e interpretação de outrem. E a partir do modo como o sujeito se compreende que pode chegar à compreensão dos outros, seja mediante suas obras, seja mediante seus comportamentos. E é por isso, que toda compreensão implica uma autocompreensão.
O grande risco de tal método reside em cair no subjetivismo. Como se construir um saber crítico a partir de uma situação de conhecimento marcada pelo relativismo? Como atingir um saber verdadeiramente fundado? Bastariam as explicitações dos princípios de interpretação invocados pelo sujeito? Pode o sujeito invocar critérios de interpretação que se imponham como criticamente válidos? Há princípios de interpretação ao mesmo tempo claros e capazes de se justificarem plenamente? Se existirem, podemos elucidar verdadeiramente o sujeito cognoscente, vale dizer, de um lado, torná-lo capaz de compreender a si mesmo de modo consciente e fundado, do outro elaborar claramente princípios de interpretação adequados para a compreensão do objeto.

Fonte: http://ensaiospsiquicos.com.br/?p=1233

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