quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Doenças mentais surgem Epigeneticamente – como todas as demais



Uma nova biologia vem se impondo na era pós-genômica com a frustração do Projeto Genoma Humano, que supunha que mapear todos os genes de nossa espécie equivaleria a decifrar os segredos de nossa vida e morte. Entendeu-se que o problema é muito mais complicado; entendeu-se que os genes estão conectados a outros mecanismos além dos genéticos; alguns e dão “acima” (epi) do genético. Essa é  uma história antiga no pensamento humano. O que causa as doenças? Causas internas? Causas externas? O ambiente é importante? Ou a herança é mais importante? Estas perguntas são profundas porque refletem o que entendemos do mundo, dos processos que resultam na saúde e na doença, gerando o tipo de tratamento que é dispensado às populações de acordo com esses modelos te´ricos. No projeto genoma humano o tiro saiu pela culatra e acabou apontando evidências experimentais irrefutáveis de que os processos genéticos estão integrados permanentemente a outros processos, proteínas se conectam a outras proteínas, formam redes que atravessam as células os tecidos, afetam os fluídos corporais de todo o organismo. Nossa imensa comunidade de bactérias residentes (grande parte de nossa massa corporal) nossa dieta, nossas relações afetivas, nossos corpos, nossas famílias, comunidades, cidades, países, destinos políticos, práticas culturais que se configuram historicamente momento a momento, não estão determinados a priori como acreditavam os geneticistas. Nós nos construímos historicamente. Essa visão em biologia se chama Epigênese (há outros usos deste mesmo termo e isto pode confundir o entendimento). É um campo importantíssimo que devia estar recebendo atenção estratégica em nossa saúde pública, na educação médica e científica, assim como em nossos programas de pesquisa e desenvolvimento.
    A visão epigenética oferece um modo útil e eficiente de explicar a saúde e a doença, com ênfase nas interações entre o organismo e seu meio, demonstrando como nossas ações, nossa cultura e nossa biologia corporal estão profundamente conectadas. Isto revolucionaria e reforçaria campos da medicina onde o tratamento de doenças é excessivamente farmacêutico (molecular), mecânico e determinista.
  Por exemplo as doenças mentais que acometem grande parte de nossa população faz uso de medicamentos “tarja preta”, psicotrópicos que são responsáveis por lucros alarmantes  das indústrias farmacêuticas, todos os anos em todo o mundo ocidental. Na visão hegemônica de nosso tempo onde o paradigma genético ainda prevalece, as doenças são causadas por defeitos no gene, ou no neurônio, ou no receptor de dopamina”, há sempre “uma causa (específica) determinável” e essa era a motivação do Projeto Genoma Humano. Dizia-se que uma vez obtido esse mapa de nossas unidades genéticas, poderíamos evitar as doenças substituindo essas unidades por outras saudáveis. Pela mesma lógica, usamos substâncias químicas específicas para corrigir problemas estruturais moleculares como anormalidades nos canais de cálcio que atravessam as membranas das células e assim controlam os fluxos de átomos carregados eletricamente para dentro e fora das células realizando movimentos que em ultima análise movem nosso corpo e desempenham nossas funções biológicas. Assim, o doente mental, provavelmente herdou de sua família aberrações genéticas, e estruturais, que devem ser corrigidas com drogas que atuem nestes defeitos moleculares e eventualmente eletrochoques que ajudarão a corrigir a atividade bioelétrica do cérebro do doente.
    No entanto, a Epigenética nos ensina que o destino biológico não está determinado, que ao contrário, a importância da experiência e do curso histórico é imensa. E que doenças graves carregam histórias graves, de miséria, que marcam o corpo biológico ao longo das gerações e vão produzindo alterações epigenéticas que se acumulam até gerar formas gravíssimas de miséria humana como as que se podem observar em Hospitais Psiquiátricos.
Mas a experiência desenvolvida dentro desses próprios Hospitais psiquiátricos hoje podem ganhar muito mais luz graças a uma biologia integrativa, orientada por paradigmas mais contemporâneos como a epigenética, que valorizam a experiência e o trabalho na produção da doença mental, e de como modificações de ordem simbólica e cultural são capazes de modificar significativamente a evolução clínica mesmo de casos graves. Experiências de psiquiatras famosos como Nise da Silveira no Rio de Janeiro, Franco Basaglia na Itália, Ronald Laing na Inglaterra,  Thomas Szasz nos Estados Unidos, e muitos outros no Brasil e no mundo alinham-se com a visão epigenética da biologia para nos relembrar que 
a única constância é a mudança e que o homem, afinal, é o destino do homem. 
E que doenças são produções culturais e políticas, através de modificações históricas epigenéticas que moldam nossos corpos. Mas modificando nossas práticas culturais e políticas, todas essas experiências científicas acumuladas em nosso tempo evidenciam que somos capazes de modificar positivamente mesmo os casos mais graves. É necessário que esse debate se instale publicamente pois estamos debatendo o que entendemos sobre nós próprios e como tratamos nossos doentes e o processo de opressão que provocou essa doença. Estamos debatendo democracia na era epigenética. Uma mudança urgente, necessária e possível que destaque a mudança permanente do mundo vivo, da biologia, poderá nos adequar melhor a natureza e à saúde.

Agradeço ao Professor Nelson Vaz pela revisão e correção sempre fiel e atenta.

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