Neurociências e Psicanálise
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Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul
Print version ISSN 0101-8108
Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul vol.25 no.2 Porto Alegre Aug. 2003
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082003000200014
CARTA AOS EDITORES
Mario Gurvitez Cardoni
Médico Clínico e Intensivista
O artigo de Eric R. Kandel, publicado na Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul vol. 25, N.1, JAN/ABR. 2003, A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado, tem o mérito de evidenciar o que o autor julga negligente, precário e sem rigor científico na psicanálise. Kandel é suficientemente respeitoso com o legado cultural fornecido pela visão de mundo psicanalítica, sua weltanschauung, mas deixa explícita sua posição, i.e., sua inconformidade com a falta de verificabilidade e reprodutibilidade desta técnica, considerando-a, por vezes, um exercício intelectual fascinante, porém esgotado na sua evolução. A tentativa de preservar o caráter revolucionário dos paradigmas analíticos e adaptá-los às demandas da neuropsiquiatria, por intervenções biológicas sobre o sofrimento humano e o desamparo faz do texto de Kandel um libelo otimista, porém sem necessidades reais. A aproximação da expressão da subjetividade com determinantes genéticos e bioquímicos não traz nada de novo, podendo eventualmente explicar pontualmente este ou aquele comportamento ou um ou outro aspecto aparente da dor de existir, mas ainda insuficientes para estabelecer um modelo vivencial ou um suporte intelectual que se pretenda amplo, mesmo que incompleto, para dar conta das vicissitudes complexas da relação terapêutica. Kandel propõe implicitamente que devemos avançar na compreensão dos substratos e mecanismos dos insights analíticos. Sem ironia, o título destas descobertas poderia ser, por exemplo, as bases neuroquímicas do complexo de Édipo ou ainda a influência do cromossomo 17 na expressão dos receptores gabaérgicos do striatum sobre os lapsos de linguagem. Acredito que evidências fornecidas por pesquisas como estas serão possíveis no futuro, e isto é altamente desejável, mas não tornará a causa, o fundamento último de que algo surge, mais elevada do que seu efeito. A psicanálise continuará, de qualquer modo, objetivando o fenômeno no sentido kantiano da expressão.
Mesmo se os conceitos analíticos fossem simulações, e esta não é uma acusação do artigo, produzidas ou inventadas para suprir uma carência epistemológica, ainda assim o seu pretenso desmascaramento pela neurociência não atingiria suficiente desenvolvimento para se colocar no seu lugar. Intuímos desta forma que em psicanálise a percepção do todo não deve ser a compreensão da soma das partes.
Seguindo os passos de Karl Popper, poderíamos dizer que o conhecimento avança pela refutação de teorias, criando-se conjecturas que substituam as anteriores até que estas, mais recentes, não resistam aos ataques de novas evidências e, assim, indefinidamente.
Abstraindo-se os argumentos políticos em defesa ou contra a psicanálise, podemos provisoriamente aceitar o argumento de que a psicanálise não foi superada. Aceitar a idéia de sua fragilidade quando confrontada com o método científico é uma atitude prudente; considerar o princípio da incerteza como orientação permanente também.
O ponto de maior significação quando se pretende abordar o tema da validação da análise como conhecimento empírico é o de sua aproximação com a filosofia ou, se quisermos, com a metafísica. Freud sabidamente não desejava que suas descobertas fossem "reduzidas" a meras especulações filosóficas; procurou de todas as maneiras fundamentar a teoria das neuroses, das pulsões e dos sonhos, com demonstrações reprodutíveis, universais, com aplicações terapêuticas irrefutáveis. A distância a que os psicanalistas em geral desejam permanecer da filosofia não deve ser, portanto, subestimada.
Por outro lado, esta é também, oportunamente, a acusação que fazem os detratores da psicanálise: a de se comportar como filosofia ou metafísica quanto à resistência ao rigor metodológico.
Tanto Freud quanto seus detratores cometem, penso eu, uma injustiça com a filosofia. A tradução do que existe, do que é verdadeiro, em categorias estanques do conhecimento contradiz veementemente todas as tentativas honestas de compreender o dilema existencial.
A filosofia tem muito a dizer sobre o pensar, o querer e o julgar, como tentou Hannah Arendt em suas especulações sobre a vida do espírito. Se o pensar é o ponto de confluência de toda psicanálise e de toda neurobiologia da mente, não se pode pretender alijar a filosofia desse desafio. O pensar como tal depende e influi na memória e na memória é que se apóia nossa relação com o mundo, com as coisas, com o sofrimento e a satisfação. A memória, segundo Yerushalmi, não é um arquivo. Um arquivo é estanque, imutável; podemos retirar o arquivo e voltar a colocá-lo em repouso, e ele sempre será o mesmo. A memória não. Ao retirá-la do seu lugar, de seu tempo e espaço, o pensar nestes registros modifica indelevelmente sua natureza original, sua estrutura. O pensamento modifica a memória e é para sempre e, a cada vez que é pensada, novamente modificada. Nesta movimentação da memória, é que reside a tensão da incerteza e o fascínio em descobrir a mudança contínua. Trabalhar com esta incerteza imperativa traz um sentido da coisa em-si, mas que não é mais: o não mais e o não ainda, que transforma a pretensão totalizante da neurobiologia e de suas asserções indiscutíveis em quimeras.
Mas as exigências de Kandel são sérias e implicam um chamamento à ordem, um esforço genuíno para avaliar criticamente a psicanálise e depurá-la no que ela possui unicamente para suprir uma necessidade no mundo das aparências.
Ao contrário, outro autor, Richard Webster, publicou recentemente um amontoado de panfletos sob o título Porque Freud Errou,em que procura, nos detalhes biográficos do fundador da psicanálise, toda uma ordem de falhas de caráter e comportamento fraudulento para refutar suas teorias. À primeira vista, a redação jornalística do texto parece atraente às pessoas com conhecimento superficial do tema e que não possuam nenhuma experiência terapêutica. Porém, com um pouco mais de atenção, verificamos que Webster utiliza os instrumentos da psicanálise, sua técnica e paradigmas, para dissecar as motivações encobertas, inconscientes, de Freud nos relacionamentos com Charcot, Fliess, Jung e Anna, sua filha. Este aparente paradoxo, isto é, argumentar sobre a nulidade de algo confirmando sua existência, não é abandonado sequer quando ele simplifica o caráter messiânico da psicanálise e a roupagem de profeta do seu descobridor. Melhor e com mais erudição, este assunto já foi trabalhado por Yerushalmi e Jacques Derrida, confirmando a assertiva de Freud de que os instintos mais primitivos do homem estão por trás de toda motivação: os estados-da-alma da psicanálise perpassam tudo que cria ou destrói.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Kandel ER: A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado. R. Psiquiatr. RS, 25(1): 139-165, jan/abr.2003
2. Popper KR. A sociedade aberta e seus inimigos. 3nd ed. tomo 2. São Paulo: Editora USP; 1987.
3. Arendt H. A vida do espírito. 5nd ed. Rio de Janeiro. Relume-Dumará; 2002.
4. Derrida J. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro. Relume-Dumará; 2001.
5. Webster R. Por que Freud errou. Rio de Janeiro. Record; 1999.
6. Kant I. Crítica da razão pura. São Paulo. Ed. Martin-Claret. 2001.
7. Freud S. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro. Imago Editora LTDA. 1969.
Endereço para correspondência:
Mario Gurvitez Cardoni
E-mail: cardoni@terra.com.br
Mario Gurvitez Cardoni
E-mail: cardoni@terra.com.br
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Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul
Print version ISSN 0101-8108
Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul vol.25 no.2 Porto Alegre Aug. 2003
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082003000200013
CARTA AOS EDITORES
Carta aos Editores da Revista de Psiquiatria do Rio Grande o Sul
Luiz E. Pellanda
Prezados colegas:
Desejo agradecer o envio do número 1/03 desta prestigiosa Revista, o que me permitiu tomar conhecimento do artigo de Eric M. Kandel, M.D., "A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado." Estou inteiramente de acordo com ele quando, referindo-se à aptidão da biologia em responder a questões básicas sobre memória e desejo, diz que "... essas respostas serão mais ricas e significativas se forjadas por um esforço sinérgico entre biologia e psicanálise".
Gostaria de enfatizar que há muito propugno por uma abertura dos meios Psicanalíticos às demais ciências, muito especialmente à Biologia, Informática e Cibernética, como se pode ver, por exemplo, na edição do livro "Psicanálise Hoje: Uma Revolução do Olhar", onde reunimos, Nize e eu, mais de quarenta cientistas, desde Etchegoyen, Matte-Blanco e Kernberg até biólogos da estatura de Kacelnik e Maturana, para nos falar sobre olhares pertinentes ao nosso tema, ou ainda, no trabalho aceito para o 43º IPAC: "Complex Epistemology and Psychoanalysis: Tensioning the frontiers." Esta introdução é necessária para dizer de onde falo ao concordar em princípio com o autor referido, para então poder assinalar algumas restrições e diferenças.
Imagino que todo psicanalista gostaria de poder escrever um texto equivalente ao "Projeto de uma psicologia para neurólogos", mas sempre reconhecemos que os avanços da biologia ainda não nos permitem tal feito, como aliás reconhece Kandel: "... embora esboçamos o que poderia evoluir para uma significativa fundamentação biológica para a psicanálise, estamos recém nos primórdios deste processo. Ainda não temos uma compreensão satisfatória dos complexos processos mentais." (p.142)
Minha restrição maior deve-se mais ao ponto de vista adotado pelo autor, num evidente neo-behaviorismo, buscando entender "a caixa preta" da mente pela análise dos "inputs e outputs" e sua concepção de Psicanálise, bem ao modo norte-americano de pensá-la como apenas o que existe dentro do território local, ignorando mesmo os esforços de Kernberg para incluir outros olhares. Com esta postura, ficam de fora todos os autores Kleinianos e pós Kleinianos, os franceses todos, e toda a Biologia moderna representada pela Escola de Santiago, fundada por Humberto Maturana e Francisco Varela, que postulam a auto-organização como característica do ser vivo e seu diferencial. Por esta postura é que um autor da importância de Antonio Damásio é citado apenas en passant, quando eventualmente lhe caberia o papel central que o Congresso da IPA lhe pretendia dar no adiado conclave de Toronto.
Espero que ele possa comparecer em março ao de New Orleans, para onde foi re-programado esse Congresso, de modo que possamos todos desfrutar de sua palavra sobre o que vem encontrando na neurologia das emoções, em nada contrariando o já afirmado pela Psicanálise, mas a complementando magistralmente.
Que o tema proposto é atual, nenhuma dúvida, haja vista a discussão sobre "controvérsias", que se propõe pela Internet no site do Int. Journal of Psychoanalysis: http://www.ijpa.org/, onde repressão, transferência e reconstrução estão sendo debatidas.
Fico com a impressão de que Kandel segue se preocupando apenas em explicar o inconsciente (como explicitado no primeiro parágrafo da pg. 143), quando a questão hoje é tentar explicar de onde surge a consciência e como: Damásio tem propostas importantes sobre este tema, especialmente as descritas em seus últimos livros: The Feeling of what Happens (1996) e Looking for Spinoza (2003). Maturana também tem contribuição significativa, a qual em parte está exposta em um dos capítulos do livro que editamos, já citado, e que se chama "Biologia da auto-consciência", onde ele defende a idéia de que consciência não é uma "entidade" que se localize no corpo ou no cérebro: "Considero que consciência ocorre como uma dinâmica relacional particular, quando um organismo opera como participante em um domínio de distinções recursivas na linguagem, e que isto não é uma entidade ou propriedade de uma entidade." (1966, p.601).
Fica de fora do artigo publicado o mais importante na minha opinião: o caráter complexo da função mental (ainda que estas palavras compareçam no texto, como citado acima!). A questão aqui é de mudança de paradigma: abandonar o cartesiano e adotar o da complexidade. Somente uma abordagem multifacetada pode tentar uma aproximação adequada: necessitamos da colaboração de Edgar Morin (1990) e de sua proposta do novo paradigma da complexidade; necessitamos ainda de Maturana e de sua autopoiése, expressão do paradigma da auto-organização, bem como dos neurocientistas como Damásio e de tantos outros. Certamente não será com esta aproximação ainda cartesiana que chegaremos ao que von Foerster, pai da cibernética de segunda ordem, diz ser o ideal: "Não seria acaso recomendável renunciar ao critério de Popper e buscar princípios que se confirmem na práxis? (von Foerster, 1996, p.130).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Pellanda N e Pellanda LE. (1996). Psicanálise Hoje: Uma Revolução do Olhar. Ed Vozes, Petrópolis. Índice em:http://www.portoweb.com.br/pessoal/olhar
2. Damasio A. (1999). The Feeling of What Happens. Body and Emotion in the Making of Consciousness. Hartcourt, Inc. San Diego, New York.
3. ___.(2002). Looking for Spinoza Hartcourt, Inc. San Diego, New York.
4. Maturana H. (1966). Biologia da autoconsciência. IN Pellanda N e Pellanda LE. Psicanálise Hoje: Uma Revolução do Olhar. Ed Vozes, Petrópolis.
5. Morin E. (1990). Introdução ao pensamento complexo. Publicações Intituto Piaget, Lisboa, 1991.
6. Von Foerster H. (1996). Reflexiones cibernéticas. IN: Fischer HR y col. El final de los grandes proyectos. Barcelona: Edisa.
Atenciosamente,
Dr. Luiz E. Pellanda
Porto Alegre – RS – Brasil
http://www.portoweb.com.br/pessoal/pellanda
Porto Alegre – RS – Brasil
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